Le Petit Chaperon Rouge

A Menina do Capuz Vermelho

A capa vermelha se insinuava em meio ao cinza. Enquanto o capuz escondia o rosto o vestido curto demais revelava as pernas claras, provocantes. Este disfarce auxiliava Cecille a preservar sua identidade, todo cuidado era pouco. A ordem do tenente-general de polícia Gabriel Nicolas de la Reynie era clara: livrar Paris dos imigrantes indesejados, sem alarde, custasse o que custasse. E ninguém era mais indesejado do que as cortesãs.

Dentre elas, as principais vítimas quase sempre eram pobres, velhas ou desagradáveis demais para subornarem os oficiais com seus serviços. Contudo, naqueles tempos as belas e jovens ou as que tinham a sorte de servirem um cliente rico também não estavam a salvo dos abusos da milícia. Afinal, quando os guardas cobravam sua parte havia apenas duas opções: pagar em dinheiro tendo que trabalhar em dobro para recuperar o prejuízo ou cedendo aos monstros que compunham a força policial parisiense.

Por isso Cecille carregava consigo uma cesta com velas para se passar por vendedora. E ela até conseguia alguns trocados de vez em quando vendendo as velas que roubava da igreja - por Paris vale a pena ir a uma missa. No entanto, a verdadeira finalidade das velas era acobertar seus clientes que acompanhavam-na até os becos escuros. Ao perceberem o que de fato Cecille vendia, alguns fingiam-se ultrajados, mas todos acabavam usando as velas para iluminar seus pecados. Antes do fogo consumir metade das velas a maioria já estava despejando na pele rosada de Cecille um líquido tão quente quanto parafina derretida.

Para aqueles que não sabiam de seu trottoir, uma órfã tão encantadora e meiga perdida nas esquinas como Cecille se arriscando tarde da noite daquela maneira era absurdo. Acreditanto em sua inocência um pobre padre ofecereu a Cecille um quarto em sua residência humilde. Obviamente Cecille aceitou. Dessa maneira conseguir velas quando a preguiça não a permitia ir a missa ficava muito mais fácil. Inconveniente era apenas ter de cuidar da casa. Quando sua falta de vocação para as tarefas domésticas tornavam-se muito evidentes, Cecille propositalmente esquecia-se de trancar-se ao fazer a toalete para permitir que o velho a espiasse.

O Andarilho dos Cães

Poucos na Paris do século XVII se atreviam a desafiar a lei, porque justamente os piores criminosos eram quem a compunha. Contudo os que o faziam, rapidamente tornavam-se conhecidos. Não obstante, apenas um havia se tornado uma lenda: o andarilho dos cães.

Esse homem sempre acompanhado por uma matilha de vira-latas sobrevivia revirando o lixo pela corte dos milagres, lugar que ficou conhecido devido aos desaparecimentos da noite para o dia dos miseráveis. Jamais se dobrou a ninguém. Quando um destacamento foi designado para lhe colocar no lugar, aí então sua fama foi gerada. O que aconteceu possui muitos desfechos, a verdade, todavia, é que esses policiais nunca mais foram vistos novamente.

O homem é o lobo do homem.

O Lobo

Cecille fora traída por sua beleza. Obcecado, o padre a seguiu e flagrou Cecille com dois homens ao mesmo tempo, usando sua boca e seu sexo para lhes arrancar prazer. Tomado de vergonha, ciúme e culpa por se deixar seduzir, o padre procurando vingança foi despejar seu veneno nos ouvidos dos homens da lei como uma raposa alcoviteira. Era tarde, chovia, o padre encontrou apenas um policial. Era o suficiente. Se tratava de ninguém menos que Choufon, célebre estuprador e sádico poupado da forca e recrutado para engrossar as fileiras da polícia.

Chovia forte. O vestido encharcado colava-se como uma segunda pele sobre o corpo delgado de Cecille.

Ela corria com o coração acelerado de um cervo assustado. O predador em seu encalço diminuía cada vez mais a distância entre eles. Choufon conhecia aqueles corredores como ninguém, crescera neles e deles tirava seu sustento. Aqueles becos eram o mais próximo do conceito de lar que conhecia.

Com um único movimento Choufon a jogou contra parede. Não havia saída, três paredes de pedra fria e um homem perverso seguindo seu instinto mais primitivo. Era o fim para Cecille.

Cecille sem chance de se defender e muito menos de rogar misericórdia fechou os olhos rezando para que tudo acabasse rapidamente.

Choufon investiu duramente contra Cecille que mordia os lábios para calar o choro. Contudo, ao invés de violá-la, Choufon desabara sobre ela. Só quando o sangue quente lhe lavou as costas é que Cecille percebeu o que se passava.

O corpo caiu a seus pés como um fantoche. Um outro vulto ocupou o lugar de Choufon. Confusa entre o medo e a gratidão Cecille olhou para trás sem saber se devia sentir-se agradecida ou perdida de vez.

Um homem vestindo apenas um sobretudo e calças rotas fitava Choufon. Cães famintos esperavam obedientemente atrás dele. Segundos intermináveis se passaram até Cecille se dar conta que aquela era sua chance de fugir, devagar ela foi caminhando rente a parede, se afastando ao máximo dos rosnados ameaçadores. Quando finalmente ela se convencera de que conseguiria escapar ilesa, os cães avançaram contra o cadáver. Como que saído de um transe profundo o homem então voltou seus olhos vorazes para ela.

Em suas mãos ele tinha uma adaga como a que os policiais carregavam. Cecille percebeu que se desse mais um passo terminaria exatamente como Choufon. Aquele homem tão assustador e solitário era o infame vagabundo que matara cinco oficiais na corte dos milagres. Os rumores diziam que ele era louco e uivava para a lua vivendo como os cães que o seguiam como um líder.

Cecille baixou a cabeça, ele chegou mais perto. Ele passou o rosto farejando e sentindo sua pele com a língua inclusive colocando o rosto por baixo de seu vestido e provando seu sexo com a boca para reconhecê-la, como um cão. Cecille tremeu, para sua surpresa seu corpo estava úmido naquele ponto e não era em razão da chuva. Ele veio por trás e se jogou por cima dela, forçando Cecille a ficar de quatro. Ele se roçava em Cecille, mordendo-a. Cecille podia sentí-lo procurando seu caminho para dentro dela até que a sensação de que tanto se acostumara lhe preencheu de uma só vez, acertando o centro do seu corpo.

Nenhuma experiência anterior se comparava àquilo. Pela primeira vez ela era mulher e não prostituta, deixava-se currar sem impedí-lo. Cecille não queria que ele parasse, ela acendera-se com a idéia de amar como os cães se adoram. Flagara-se desejando-o e para sua surpresa implorou para que ele continuasse. Por fim ela não saberia dizer por quanto tempo eles ficaram se amando. Cecille e o andarilho dormiram nus e exaustos, aquecidos pelos cães.

Quando Cecille despertou todos haviam desaparecido. Cecille se vestiu e ao encontrar sua cesta viu dentro dela a adaga que degolara Choufon. Olhando para os lados como se aqueles olhos misteriosos ainda a espreitassem ela pegou tudo e retornou para o único homem que não tentara possuí-la.

A Loba e a Raposa

A sujeira, a lama e a água da chuva cobriam Cecille da cabeça aos pés. Sua capa vermelha não atraía mais os olhos de ninguém, tão pouco qualquer um notava suas pernas claras do modo como estavam, cobertas de barro. Sem ser notada Cecille voltou e encontrou o padre em seu aposento, masturbando-se sobre suas roupas, com lágrimas nos olhos, pedindo perdão por tê-la traído.

Não era só o exterior de Cecille que mudara, uma transformação mais profunda e secreta acontecera também em seu interior, algo que não podia ser visto, somente sentido. Cecille sentiu a lâmina fria, suja de sangue. Colocou em silêncio a cesta em cima da mesa e descalça se aproximou. Somente quando o gélido beijo do aço tocou seu pescoço é que ele a percebeu. Sem olhar para ela, com as mãos ainda em si, ele a ouviu ordenar:

_Continua. Faz. Forte.

O velho tentou se explicar, pedir perdão, a voz de Cecille o impediu.

_Uma palavra e você morre.

Ele a obedeceu.

Ele esporrou longe, tendo uma crise de tosse em seguida. Sua saúde era fraca, sua carne decrépita e ainda assim o velho se deixava encantar. Ele podia ser avô de Cecille.

O sangue corría rápido naquelas veias. Por isso quando Cecille lhe abriu a garganta, os jatos de sangue jorraram mais longe do que o gozo fraco, manchando os lençóis em que Cecille costumava dormir. Ela não precisava mais daquilo, de cama ou roupas, de se vender, de dinheiro. Acendeu religiosamente pela última vez suas velas e antes de partir, deixou que uma caísse no chão. A madeira podre daquele lugar queimava rápido, logo todo o cortiço estava em chamas.

Do coração da corte dos milagres os lobos viram a fumaça se erguendo até o céu estrelado e uivaram para a lua cheia. Os cães acompanharam o coral lúgubre; era um momento de celebração para a matilha. Finalmente o andarilho encontrara sua companheira.

Le petit chaperon rouge et le loup vécurent heureux pour toujours

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 24/02/2010
Reeditado em 17/05/2011
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