Brincando com Palavras

Palavras é uma cidade muito legal. Árvore e Flor, os filhos de Dona Primavera, adoram brincar na Praça Jardim, mas isso apenas quando o rabugento e antipático Inverno resolve ficar trancado em casa, o que sempre ocorre quando Verão, seu malandro e galante irmão saracoteia pelo bairro.

Nessa época, Inverno convida seus velhos companheiros Vento, Gelo e Frio para tomarem chá em sua casa e colocarem o papo em dia, enquanto Lareira, sua esposa, reclama do excesso de trabalho que recai sobre ela. Às vezes, Gripe, uma senhorita muito esperta e espoleta, tenta entrar de penetra na reunião do Senhor Inverno, com objetivo nenhum senão ficar debochando e causando estragos bem debaixo de seus bigodes brancos.

Entretanto, alguns vizinhos mais sensacionalistas, como a Senhora Paranóia, insistem em espalhar que a ingênua Gripe é aprendiz de Dona Morte, uma velha solitária e de humor negro, que vive numa casa bastante singela, de interior idealizado pelo decorador Mórbido, ou um de seus parentes. Talvez seja o primo Sombrio dando o ar de sua desgraça, ou o irmão Macabro planejando tudo de braços dados com a Ironia, sua fiel companheira.

Poucos habitantes do bairro têm coragem ou loucura o bastante para aventurar-se para o canto de Dona Morte. Simpatia, ao passear saltitante pela cidade, cuidava sempre para desviar-se daquela rua tão logo a avistasse, levando Covardia, sua irmã caçula, pela mão, uma vez que esta tremia só de ouvir falar da excêntrica senhora.

Dona Morte tem dois filhos. O mais velho, Sono, vem aprendendo com louvor a seguir os passos da mãe, na difícil e um tanto agoniante tarefa de tirar dos seres humanos a sensibilidade perante a Vida, mulher faceira e sempre com auto-estima elevada, rival mortal da senhora rabugenta. No entanto, os esforços de Sono são sempre passageiros, periódicos, o que leva fofoqueiros como Romance e Amor a presumirem que ele tem uma queda pela senhorita Vida. Todos sabem, entretanto, o quão infundados os boatos são.

O caçula de Dona Morte, na falta de melhores termos, é basicamente o oposto do irmão. Delirante e cheio de vida, Sonho costuma atrapalhar divertidamente as tentativas de Sono, procurando trazer Vida às pessoas, enquanto essas estão perdidas nos encantos de Sono que, ao contrário da mãe, possui uma aparência deveras atraente.

Às vezes, Vida tenta resistir aos puxões de Sonho, e é quando ele ignora seus gritos e coloca a bela dama em seus braços, carregando-a para dentro de seu mundo próprio e mágico. Inevitavelmente, Alegria e Sorriso, duas crianças marotas, os seguem disfarçadamente, até a hora em que os quatro se põem a dançar. Nem é preciso dizer que Dona Morte não tem orgulho das atitudes do filho, mas em raras vezes, quando ninguém está olhando, até mesmo ela se permite receber a visita de Sorriso.

Existem ainda entre os cidadãos de Palavras, muitas outras figuras interessantes. Para começar, há o prefeito, o excelentíssimo senhor Organização. Honesto e metódico, porém sem perder a simpatia, Organização é o prefeito dos sonhos de qualquer cidade, visto que encarregou-se pessoalmente de manter a desonesta Corrupção longe de sua administração que, aliás, vem sendo muito bem sucedida. O único problema se dá quando o prefeito acaba escutando demais seu assistente, Dr. Orgulho, cujos conselhos quase nunca são aproveitáveis.

Outra figura que vale a pena mencionar é uma mulher solteira, de meia-idade, que vive numa casa um pouco afastada do centro. Quando mais moça, houve um tempo em que ela foi o centro das atenções na cidade, todos queriam conversar com ela, a maioria queria elogiá-la. Hoje, no entanto, são poucos os que compreendem seu estilo de vida e suas ações e, embora tenha um número significativo de admiradores, provavelmente não encontraria meia dúzia que seguisse seus passos. Assim vive a senhorita Solidariedade, às vezes soterrada pelas trapaças do Egoísmo, mas sempre resgatada e impelida a seguir em frente por sua amiga Esperança.

Num canto ainda mais perdido e quase intragável, uma outra figura prende a atenção. Seu nome é Saudade, e tudo o que o jovem moço faz o dia inteiro é chorar a perda de seu grande amigo, Passado, que morreu há muito tempo atrás. Saudade sente falta de tudo o que se relaciona com seu amigo, de tudo o que aconteceu quando ele ainda era vivo. Houve um tempo em que Saudade foi feliz, que voltou a andar de cabeça erguida. Foi quando namorou com a alegre Esperança, que apresentou-lhe o Futuro, um jovem tão cheio de vida e oportunidades quanto foi o Passado, acreditando que assim secar-lhe-ia para sempre as lágrimas. Acontece que suas primas, Nostalgia e Tristeza, meteram-se na história e, ainda que sem intenção, estragaram tudo.

Saudade brigou com Futuro, terminou o namoro com Esperança e voltou a resmungar, chorando todas as noites por falta do Passado. Depois de um tempo, os vizinhos desistiram de se importar...

Vez ou outra, a prepotente Solidão sai de seu esconderijo e volta à cidade, a fim de conquistá-la. Ela não acredita que o Senhor Organização e seus auxiliares sejam capazes de administrar a cidade. Segundo ela, ela e somente ela será capaz de fazê-lo. Entende-se ali porque o próprio Egoísmo a largou, incapaz de suportar seus discursos narcisistas. Entretanto, por mais que Solidão se apodere da cidade por um tempo, sempre existe algo que a faça recuar e entocar-se novamente.

A melhor época para a cidade de Palavras é quando recebe a visita de Festa, uma jovemzinha bem senhora de si, cujo maior do, é fazer os outros se divertirem. E ela é tão boa nisso que, entre outras façanhas, já dançou com o Senhor Inverno e tirou Sombrio de seu quarto obscuro. Toda a cidade para quando ela chega, e deixa o agito tomar conta de seus esqueletos, sejam eles novos ou arcaicos.

Todavia, como em qualquer cidade, há também coisas muito ruins em Palavras. Coisas como o que Tristeza vê todo dia da janela de seu quarto. Um bairro pequeno, mirrado e sujo, onde crianças maltrapilhas como Fome, Pobreza e Desemprego correm e brincam, sempre à procura de algo para encher seus estômagos vazios e suas cabeças que anseiam por respostas. Essas, é claro, foram levadas embora há muito tempo atrás, por sua mãe, a Injustiça, quando as abandonou ali. Posso ainda lembrar do dia em que as crianças saíram correndo à procura da Esperança, mas não conseguiram achá-la. Não sei onde ela estava, mas tenho certeza de que preferiu evitá-los, para garantir que seria capaz de seguir em frente.

Palavras é uma cidade fantástica. Uma cidade onde brilha a diversidade, onde a cada dia nascem tantas histórias que precisaria de muito mais folhas do que tem um dicionário para contar todas elas, correndo ainda o risco de esquecer algumas. É a cidade do Brilho, da Esperança, da Alegria, mas também da Solidão, do Egoísmo, da Tristeza. É ao mesmo tempo a cidade da Vida e da Morte. Uma cidade como qualquer outra, com coisas boas e ruins, mas com uma grande diferença: uma cidade que pode ser reescrita por cada um de nós.

Louise
Enviado por Louise em 14/02/2010
Reeditado em 14/02/2010
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