Esperas
Instante primeiro da manhã elas caiam em grande quantidade do leito da noite, flutuantes, ao acaso do tempo. Havia espera por todos os lugares que se podia alcançar: na cozinha, na sala, pelo chão do quarto, sobre os móveis. Sobrepostas, algumas exalavam um cheiro adocicado de flores mortas, um cheiro mostarda. Outras, recém-nascidas, sopradas pela brisa, tomavam fôlego ali, após leve tremor.
A casa, que ficava no centro do extenso gramado, era cor-de-rosa-quase-despercebida, ladeada por árvores imensas, que descansavam sobre canteiros floridos, abraçadas por trepadeiras antiqüíssimas.
Descrita assim, a casa era só uma casa. Mas, em sua presença, podia-se perceber, por todos os sentidos, a feição, o cheiro, o gosto de coisas idas e recém-nascidas, que impregnavam as altas paredes, janelas e todos os seus arredores.
Na varanda da casa, uma mulher, imóvel. Parecia esculpida por certo tipo de areia, muito clara e fina. Por toda ela havia esperas. Elas se derramavam feito estrelas de fundo de mar tranqüilo. Se mexido fosse o lugar, milímetro, com certeza desarrumaria aquele delicado diagrama de esperas que se estendia para todos os lados, se espalhava pelo chão, entrelaçando portão, grades e jardins. E em algum lugar a mulher trazia esse saber, pois só de olhos ela se movia. O olhar era a única coisa que trazia livre.
As esperas se aninhavam sobre a superfície dura dos corpos silenciosos que a rodeavam. Podia-se identificá-las, uma a uma, em suas existências pacíficas: havia espera de terças-feiras, de domingos, de maio, de anos...
Algumas se penduravam no teto feito morcegos ao claro do dia. Outras brotavam também do chinelo sem uso, do sapato frio que não mais caminhava; outras se agasalhavam nos bolsos e mangas de roupas que vertiam um musgo cinzento e, outras ainda, se deitavam sobre os sofás, imitando os livros e os jornais inertes.
As esperas pareciam sair da respiração da mulher, de cada palavra engolida, de cada gesto não ousado, do suor incômodo que por vezes lhe amolecia os cabelos e lhe iluminava a fronte.
De tempos em tempos, ela parecia se apagar aos poucos como um entardecer, retornando após, despreocupadamente, como se houvesse roubado o destino do tempo e recriado um calendário único, que só mesmo ela podia viver.
Todo mundo do lugar conhecia a Casa da Espera. Para se chegar lá, era preciso subir e descer uma colina, caminhar por um bosque inteiro e atravessar uma pontezinha sobre um riacho de água doce e límpida, que descia de uma fonte e contornava a casa. Na descida da colina, às vezes já se encontrava alguma espera que fora levada por um vento mais forte. Mas já desfeita.
Dizem, que em certa ocasião uma jovem, andando por lá, encontrou ainda viva uma dessas esperas. Receosa, tão lívido parecia o corpo da pequena “coisa”, não ousou tocá-la, até que percebeu um som, quase totalmente inaudível. Nervosa, sem saber o que fazer, a jovem tomou o pequeno corpo em suas mãos e o levou ao peito. Mas, antes que pudesse alguma coisa mais, a espera se foi, deixando três lágrimas bordadas no seu vestido.
Mais comum era ver as esperas quando se chegava ao bosque e, em grande quantidade, a serpentear pelo riacho. Da ponte se podia ver a mulher. Um guia contava aos visitantes toda aquela história sobre a natureza das esperas, sem saber muito bem o que era a tal natureza e o que significavam realmente as esperas.
Explicava que a mulher, quando ainda jovem, pois agora devia contar com quase século, se apaixonara por um moço do lugar. Um moço nem feio, nem bonito. Nem alto nem baixo. Nem bom nem ruim. Um moço que trazia uma incomum cicatriz: o passado tinha devorado seu rosto. Ninguém percebera isso. Só a jovem, porque desde o primeiro instante o reconhecera como sendo o cavalheiro que lhe aparecia em sonhos. E, por força desses sonhos a jovem se aproximou do moço. Com extremado amor e fragmentos tirados de si mesma, em pequenas porções, ela lhe moldou um novo rosto.
Mas, belo dia, após uma estranha frase, ele partiu com seu novo rosto. Foi então que ela se sentou ali...
Se a história era verdadeira, ninguém sabia com certeza. Muitas pessoas que visitavam a Casa da Espera saiam de lá sem nada entender. Outras se emocionavam e levavam para sempre uma parte qualquer da história e tantos permaneciam na casa até o anoitecer, que era o momento mais bonito da visita.
Ao nascer das estrelas, um raio de luz cristalino iluminava o céu imenso, tomando a casa por inteiro. Os passarinhos se inquietavam e as flores exalavam um mesmo perfume, doce, de rosas brancas. Nesse momento, umas esperas morriam, outras renasciam e outras caiam do meio da noite. Então, dos olhos da mulher vertiam três lágrimas: uma cristalina como um diamante, outra verde, feito uma folha tenra e outra vermelha-rubi, que eram interpretadas como sendo a inocência, a esperança e a paixão. Segundo os entendidos, elementos imprescindíveis ao verdadeiro amor.
Depois disso, os olhos da mulher pousavam no infinito da noite, cheios de sua própria alma. E seu corpo cintilava. Cintilava até que se tornasse completamente translúcido, deixando à mostra a perfeita silueta de um coração. Vazio,
Instante primeiro da manhã elas caiam em grande quantidade do leito da noite, flutuantes, ao acaso do tempo. Havia espera por todos os lugares que se podia alcançar: na cozinha, na sala, pelo chão do quarto, sobre os móveis. Sobrepostas, algumas exalavam um cheiro adocicado de flores mortas, um cheiro mostarda. Outras, recém-nascidas, sopradas pela brisa, tomavam fôlego ali, após leve tremor.
A casa, que ficava no centro do extenso gramado, era cor-de-rosa-quase-despercebida, ladeada por árvores imensas, que descansavam sobre canteiros floridos, abraçadas por trepadeiras antiqüíssimas.
Descrita assim, a casa era só uma casa. Mas, em sua presença, podia-se perceber, por todos os sentidos, a feição, o cheiro, o gosto de coisas idas e recém-nascidas, que impregnavam as altas paredes, janelas e todos os seus arredores.
Na varanda da casa, uma mulher, imóvel. Parecia esculpida por certo tipo de areia, muito clara e fina. Por toda ela havia esperas. Elas se derramavam feito estrelas de fundo de mar tranqüilo. Se mexido fosse o lugar, milímetro, com certeza desarrumaria aquele delicado diagrama de esperas que se estendia para todos os lados, se espalhava pelo chão, entrelaçando portão, grades e jardins. E em algum lugar a mulher trazia esse saber, pois só de olhos ela se movia. O olhar era a única coisa que trazia livre.
As esperas se aninhavam sobre a superfície dura dos corpos silenciosos que a rodeavam. Podia-se identificá-las, uma a uma, em suas existências pacíficas: havia espera de terças-feiras, de domingos, de maio, de anos...
Algumas se penduravam no teto feito morcegos ao claro do dia. Outras brotavam também do chinelo sem uso, do sapato frio que não mais caminhava; outras se agasalhavam nos bolsos e mangas de roupas que vertiam um musgo cinzento e, outras ainda, se deitavam sobre os sofás, imitando os livros e os jornais inertes.
As esperas pareciam sair da respiração da mulher, de cada palavra engolida, de cada gesto não ousado, do suor incômodo que por vezes lhe amolecia os cabelos e lhe iluminava a fronte.
De tempos em tempos, ela parecia se apagar aos poucos como um entardecer, retornando após, despreocupadamente, como se houvesse roubado o destino do tempo e recriado um calendário único, que só mesmo ela podia viver.
Todo mundo do lugar conhecia a Casa da Espera. Para se chegar lá, era preciso subir e descer uma colina, caminhar por um bosque inteiro e atravessar uma pontezinha sobre um riacho de água doce e límpida, que descia de uma fonte e contornava a casa. Na descida da colina, às vezes já se encontrava alguma espera que fora levada por um vento mais forte. Mas já desfeita.
Dizem, que em certa ocasião uma jovem, andando por lá, encontrou ainda viva uma dessas esperas. Receosa, tão lívido parecia o corpo da pequena “coisa”, não ousou tocá-la, até que percebeu um som, quase totalmente inaudível. Nervosa, sem saber o que fazer, a jovem tomou o pequeno corpo em suas mãos e o levou ao peito. Mas, antes que pudesse alguma coisa mais, a espera se foi, deixando três lágrimas bordadas no seu vestido.
Mais comum era ver as esperas quando se chegava ao bosque e, em grande quantidade, a serpentear pelo riacho. Da ponte se podia ver a mulher. Um guia contava aos visitantes toda aquela história sobre a natureza das esperas, sem saber muito bem o que era a tal natureza e o que significavam realmente as esperas.
Explicava que a mulher, quando ainda jovem, pois agora devia contar com quase século, se apaixonara por um moço do lugar. Um moço nem feio, nem bonito. Nem alto nem baixo. Nem bom nem ruim. Um moço que trazia uma incomum cicatriz: o passado tinha devorado seu rosto. Ninguém percebera isso. Só a jovem, porque desde o primeiro instante o reconhecera como sendo o cavalheiro que lhe aparecia em sonhos. E, por força desses sonhos a jovem se aproximou do moço. Com extremado amor e fragmentos tirados de si mesma, em pequenas porções, ela lhe moldou um novo rosto.
Mas, belo dia, após uma estranha frase, ele partiu com seu novo rosto. Foi então que ela se sentou ali...
Se a história era verdadeira, ninguém sabia com certeza. Muitas pessoas que visitavam a Casa da Espera saiam de lá sem nada entender. Outras se emocionavam e levavam para sempre uma parte qualquer da história e tantos permaneciam na casa até o anoitecer, que era o momento mais bonito da visita.
Ao nascer das estrelas, um raio de luz cristalino iluminava o céu imenso, tomando a casa por inteiro. Os passarinhos se inquietavam e as flores exalavam um mesmo perfume, doce, de rosas brancas. Nesse momento, umas esperas morriam, outras renasciam e outras caiam do meio da noite. Então, dos olhos da mulher vertiam três lágrimas: uma cristalina como um diamante, outra verde, feito uma folha tenra e outra vermelha-rubi, que eram interpretadas como sendo a inocência, a esperança e a paixão. Segundo os entendidos, elementos imprescindíveis ao verdadeiro amor.
Depois disso, os olhos da mulher pousavam no infinito da noite, cheios de sua própria alma. E seu corpo cintilava. Cintilava até que se tornasse completamente translúcido, deixando à mostra a perfeita silueta de um coração. Vazio,