O ciclo
AH!!! O tombo...
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A água morna desliza sobre meu corpo enquanto eu aproveito os instantes finais de um relaxante banho, giro o registro algumas poucas vezes até que feche e pare de gotejar sem se quer aquela última gota, que é sempre a mais gelada. Pego minha felpuda toalha macia de um rubro vivo ainda não desbotado, meio enxugado ainda, decido escovar os dentes, encaro com um olhar de desprezo o espelho e presto atenção em cada traço de minha face – ainda jovem – reparando nos mais imperceptíveis detalhes, como se estivesse a escolher algo na prateleira.
Descalço, com uma calça larga e confortável para meu descanso, me dirijo ainda sem camisa para o quarto. A água morna do banho, foi extremamente desnecessária, pois decido deitar-me assim mesmo, sem camisa pra dormir devido a temperatura do ambiente. Na cabeceira de minha cama, dividem espaço estátuas da mais estranha e animalesca fauna imaginária, existentes apenas em mundos fantásticos e alguns livros, em sua grande maioria de estudo relacionado a seres vivos, que muito me interessam e instigam a aprender sobre seus instintos, num misto de fé e dúvida se sou também composto por tais ações inconscientes que me levam a fazer o que tem que ser feito.
Deito-me devagar e me cubro apenas com um lençol fino. Agora rente ao planeta, na posição horizontal de meu corpo, sinto um pequeno desconforto pouco abaixo do umbigo, como se tivesse uma corda sendo esticada de meu estômago a minha virilha direita, a dor faz com que meu corpo se contorça até eu achar uma posição em que pareça doer menos, enfim, com as mãos sobrepostas ao umbigo, de costas para a parede e meio curvado sinto o alívio e não demoro a pegar no sono.
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Apesar de óbvio sinto despertar uma impressão tardia que durante quase toda minha vida fiquei parado, não me lembro de como é sentir o calor de um abraço ou a maciez de um afago, eu já tive em minha companhia as lágrimas, as vezes sorrisos, sussurros, suspiros e algumas crianças correndo e vivendo despreocupadamente a fase da vida em que ao menos uma vez, todos já desejamos em nosso íntimo viver de novo . Minha “pele” é rústica, dura e grossa devido ao tempo, mas são frágeis o suficiente pra que eu me encante com a fragilidade da chuva e sinta em minha singular liberdade a união e a força de minha mãe terra e o valor inestimável da água. Com um manto negro, me conforto debaixo das inúmeras estrelas para o meu sono ao ar livre. Compartilho meus dias, com meus semelhantes, vivemos todos da mesma maneira e dependemos uns dos outros, mas vivemos bem se por acaso viermos a crescer sozinhos. A paz é meu principal presente, a união com ambiente, as árvores, os animais, o ar, é tudo o que eu posso aproveitar e aproveito vivendo cada dia intensamente com esse pensamento, uma vez que não posso mais viver da maneira em que nasci primeiramente.
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Ainda deitado em minha cama, sinto novamente como se tivesse um pedaço de barbante dentro de mim sendo puxado pra baixo, é impossível tentar ignorar essa dor, ao menos aqui, ainda deitado. Resolvo então levantar-me e ir ao banheiro, pode ser que não passe de algo que comi e não me fez bem, é isso, só pode ser isso. No corredor, a poucos passos do banheiro sinto as pernas estremecerem e paralisarem como raízes fincadas ao fundo na terra. Com muito custo consigo arrastar minhas pernas lentamente e chegar ao banheiro. Acendo a luz e lavo o rosto, ao pegar a toalha percebo o espelho ainda um pouco embaçado, devido ao vapor do banho. –Nossa!!! Parece que faz tanto tempo que tomei banho, não era pra esse vidro estar embaçado. Com a toalha de rosto eu tento limpar o embaçado refletor na intenção de me ver, mas como se fosse um espelho velho e já fosco, nada funciona. Ainda tentando desembaçar o espelho, sinto novamente o tremor nas pernas, porém desta vez não me sinto firme e duro desabando no gélido chão ainda um pouco molhado. A maldita sensação da corda que é puxada volta e me causa a sensação de sair de meu corpo, no desespero de tentar encontrar algo puxo minha calça e vejo a uns 7 polegares abaixo do umbigo no lado direito acima da virilha uma raiz!!! –Deus!!! Uma raiz. Fina, como uma raiz de feijão e coberta de sangue a raiz brota e parece não parar de sair, nada posso fazer, mal posso mexer o pescoço, minha coluna insiste a me contrariar e permanecer dura e esticada ao chão, somente os braços me restam e mesmo assim, tenho medo em querer puxar a maldita causadora de tudo isso, quando eu penso que tudo já está perdido, e que nada daquilo que eu tinha vivido até hoje faria sentido com minha morte daquele jeito eu sinto o despertar.
Um Pesadelo!!!
- Que alívio! Passo as mãos em minha testa suada e respiro fundo com tal loucura fantasiosa. Decido-me então, levantar e ir ao banheiro lavar o rosto, é então que o desespero acaricia meu ser novamente, quando descubro que agora acordado minhas pernas não funcionam, inertes e inúteis, duras rente a cama completando a forma retilínea de minha coluna. Ao menos ainda tenho os braços e tenho meu espírito invadido de um temor supremo ao me lembrar de checar minha virilha direita, não sinto dor, não deve ter nada e espero que não haja. Misturados numa sensação jamais experimentada antes o pavor e a curiosidade me dominam, mal posso olhar pra baixo com o pescoço, movimentado então com descomunal força apenas meus olhos. Olhando em direção minhas mãos trêmulas que agora parecem também estarem fazendo força para erguerem apenas o suficiente de minha calça, apenas o suficiente. Meu corpo todo relaxa, mãos sobre o umbigo, coluna reta, sinto todos meus músculos se enrijecerem, e nada posso fazer a não ser acreditar estar em outro pesadelo semelhante, maldita raiz, como ela foi parar lá? Eu quero gritar, mas até meus pulmões parecem estar sólidos, mal percebo o ar passar por minhas narinas. Eu quero chorar, com meus olhos agora embaçados tenho a impressão de que isso iria acontecer, mas não sinto lágrimas, e os olhos permanecem embaçados, como o espelho de meu sonho, por mais que eu tente, mas nem piscar eu posso.
A madrugada se esvai lentamente, e a cada instante que sinto perder, perco também uma mínima fração de esperança de que isso possa terminar. Perdi o total controle de meu corpo, não consigo mover um músculo se quer. Ouço pássaros, deve ser de manhã, aos poucos a luz invade o quarto e me mostra o que eu já imaginava: borrões, meus olhos ainda embaçados, agora ardem. Céus!!! Quanto tempo ainda ficarei aqui até que alguém me encontre e possa me ajudar?
7 horas passam e ainda permaneço tão duro quão uma pedra, eis então que alguém entra em meu quarto. Alívio. Enfim ajuda, posso ouvir aquele que me confortava quando eu me encontrava em situações apavorantes (bem diferentes dessa, é claro).
-Filho, acorde! Já é tarde, levante a menos que queira passar a vida toda aí parado!!!
Ele demora pra encostar em mim, pois, julgo eu, que ele deve estar pensando ser uma brincadeira, já que estou de olhos meio abertos. Vagarosamente vejo um vulto chegar mais e mais perto até que sinto tua cabeça em meu peito, isso pai, meu coração!!! Veja que ainda estou vivo!!! Sinto meu ser invadido por uma esperança infindável com tal ação, entretanto, convertendo tal sentimento no mais apavorante calafrio ele grita!!!
-Filho, por que me abandonaste?
Morto? Mas estou consciente!!! Como meu coração não bate? Como pode? Por quê? Seria esse o destino reservado a mim por não crer o suficiente nas divindades? Seria um castigo? Seria só mais um pesadelo e eu acordaria a qualquer momento? Seria mesmo real tal inacreditável situação em que me encontro? Minha mente transborda em questões inúteis e nem percebo que meu pai já não está mais em meu quarto. Fico tentando lembrar quem ele poderia chamar, ou onde poderia ter ido, uma vez que não tínhamos parentes – ao menos eu não conhecia ninguém de minha família, nem mesmo minha mãe - e quando percebo que mais perguntas me completam, sinto tua presença novamente. Um rosto de bochechas molhadas e frias é o que sinto agora, seus gemidos desesperados e inconformados já quase não me envolvem, tamanha era a depressão em que minha alma já se encontrava. Depois de certo tempo, sinto que ele me põe em suas costas e me tira do quarto. Ainda chorando ele parece me colocar em um carrinho de mão, já do lado de fora da casa!!! Meus Deus, um funeral, meu pai me fará um funeral, logo eu que sempre o pedi que me deixasse ser cremado, mas isso está errado, não estou morto!!! Queimado vivo!!! Seria assim que eu deveria morrer? Isso já aconteceu a mais alguém? Por que eu? Não tenho controle de meu corpo, mas ainda o sinto, não posso ter meu pedido atendido, não esse, não dessa maneira.
Nossa casa, se localizava em uma área rural, bem próxima de um córrego, meu desespero é tanto que nem noto uma enxada sendo arrastada de maneira tão lamentável quanto a maneira que meu pai arrasta seu próprio corpo. Nós paramos então e só o que eu posso ver é o azul claro de um céu límpido de sábado. Depois do tempo suficiente pra se fazer uma cova pouco funda, sinto ele de joelhos agarrar minhas mão e se despedir ainda chorando, e perguntando como isso poderia ter acontecido. Cuidadosamente o cadáver é colocado no fundo de sua nova morada, um lenço negro em detalhes brancos, que eu sempre carregava comigo, está agora cobrindo meu rosto. Eis que sinto, como se eu não esperasse por aquilo, os montes de terra sobre meu corpo, o chão é úmido e a terra que me cobre também. 5 palmos, é mais ou menos o que se pode calcular, afinal demorou pra ser cavado, e durante cada pouco de terra que era jogada pra fora, era possível sentir que eram como se fossem seu próprio sangue e carne sendo arrancados de seu corpo, pobre pai, como ele viverá sozinho?
Soterrado, mal posso respirar e já faz tanto tempo que nem ao menos alguma noção de quanto se passou até agora eu tenho. Um dia ou dois? Uma semana? Não, como posso sobreviver sem água e nutrientes necessários, mas estranhamente nem fome eu sinto. Então surpreendentemente eu sinto a maldita raiz doer, como se fosse um cabo de aço fervendo atravessando meu corpo eu a percebo sair e quanto mais sai, maior e mais forte parece ficar. Não!!! Meu corpo está sendo arrastado, e puxado pra cima, mas ainda não consigo me mover, estou subindo, isso!!! Pra fora da cova, fora da terra!! Um caos alucinante confunde minha mente ao perceber que não tenho mais corpo, mas estou preso a esta árvore maldita que não para de crescer instantaneamente, já deve ter uns 5 metros de altura agora, as folhas de um verde-escuro enchem sua copa gigantesca enquanto mais galhos crescem rapidamente, mas ainda não vejo meu corpo. Céus!!! Eu sou a árvore, mas como? Não demorou mais que 30 minutos pra que eu ficasse desse tamanho, homens não viram árvores, o que há comigo?
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Incontáveis alegres primaveras já se passaram desde que eu “nasci” de novo, e mesmo tendo passado tanto tempo, ainda não compreendo como isso veio a me acontecer. Nunca mais eu vi meu pai, e raramente vejo pessoas, ás vezes alguém descansa sentado em minhas raízes, e raros são os pássaros que fazem ninhos em meus galhos, algumas árvores cresceram depois de mim, mas nenhuma se iguala a minha aparência. Como qualquer outra árvore, possuo folhas, flores e frutos, frutos esses que em minha vida humana nunca se quer ouvi falar, mas que são de uma magnitude única. São vermelhos, mas não como uma maçã, são de um vermelho vivo como sangue e tem formato esticado e achatado como uma manga, só que ainda assim diferente disso. Aparentemente cada fruto carrega em si apenas uma única semente, dentro da suculenta carne. Há tempos que ninguém vem colher meus frutos, com exceção de uma linda criança de pele clara e cabelos ruivos há dois dias, aparentava ter uns 8 anos, mas nem por isso teve medo e foi incapaz de escalar meu alto e forte corpo, enquanto ela pegava algumas frutas, outras duas crianças – aparentemente mais novas e com mais medo – ficavam em baixo recolhendo os frutos caídos no chão, jogados pela sardenta criança de cima.
Lembranças atormentadoras de quando meu pai me trouxe até aqui me vieram à tona, quando eu vi desesperado e com uma criança no colo, um homem ruivo e forte chorando descontroladamente. A criança em seu colo, eu a conhecia, era a menininha que apanhou alguns frutos meus, ao lado do homem as outras duas crianças apontavam pra mim, dando um destino a sua raiva. Ele pôs entre algumas de minhas raízes o corpo daquela que aparentemente era sua filha, morta, e com uma raiz que vinha de dentro, uma fina raiz que rasgava sua barriga dois dedos abaixo do umbigo. Agora percebo, eu a matei, e com meus frutos. Ou pior!!! Assim como eu, ela não está morta, apenas não tem mais o controle de seu corpo, como pude? Eu vejo o pai sair com as outras duas crianças e voltar em alguns minutos, sozinho, com uma pá e um machado. O ritual é feito novamente, com lágrimas sinceras de uma dor indescritível ele cava o novo berço daquela criança, vejo nele a tristeza de meu pai, e mesmo assim não consigo ter pena, como não posso seguir o instinto humano e ter dó? Enquanto eu pude, gostava de ler sobre animais e suas atividades que ajudavam a natureza crescer, hoje eu percebo que cada criatura tem seus instintos e também contribuem pro crescimento do grande espírito. Não sinto pena, porque era assim que tinha que ser, pois é pra isso que estou vivo dessa maneira, alimentar a terra, levando almas de encontro a ela. Após cavar o suficiente pra cobrir o pequenino corpo magro de criança, ele prematuramente enterra a semente, cobre com terra colocando uma de minhas grandes folhas no rosto da criança protegendo-a pela última vez.
Depois de tal fúnebre feitio, ele descansa a enxada no chão e pega o machado, uma após outra, eu sinto as lascas saírem de meu corpo enquanto sinto sua fúria crescer. A lâmina que eu sempre apreciei durante minha vida normal, hoje me fazia sangrar. Sangue! Era isso que eu ainda tinha dentro de mim, o sangue espirrava com a força dos golpes vingativos do pai, e completavam de rubro sua face colericamente contorcida. Sinto a dor de meu pai nos olhos de meu assassino, sinto a dor do assassino nos olhos embaçados da doce menina, sinto a dor no corpo da criança, mas ainda não consigo sentir pena, pois era desde o início esse meu destino, era esse meu instinto: ir de encontro a minha mãe, enfim eu a conheci, doce mãe Terra, meu corpo desaba e permanece morto, mas ainda não sinto pena, me sinto contente e satisfeito, pois contribuí com minha parte, cumpri meus instintos e completarei com meu corpo o ciclo da natureza descansando aos pés de minha doce criança. Minha única filha.