Anônimo

Estática.

Os milhares de pingos de chuva fina, ao caírem sobre os sacos de lixo e os latões dão a falsa impressão de um rádio fora de sintonia, a vista é embaçada e o cheiro abafado e pesado como o de uma metrópole tem de ser. Já acordado mas ainda zonzo e confuso, o esguio corpo descansa de costas pro chão encarando o céu, com uma sensação nostálgica de algo que não se tem certeza de já ter acontecido. O beco é imundo e além dos ratos, nada mais parece ter vida em meio o cinza gasto, opaco e alheio a tal ser. Descalço, com uma jaqueta e calça jeans, já bem gastas e descoradas pelo tempo desconhecido, ele tenta criar coragem suficiente pra se levantar, tal ação, o faz lembrar da ardência insuportável em suas costas, em vão ele vasculha entre desejos, lembranças e aquilo que é real tentando descobrir a origem de tal queimadura, seriam chicotes? Fogo? Ilusão de querer acreditar que ainda está vivo e sente mesmo essa dor? Deixando para trás a sensação de que esta não é a primeira vez que isso acontece, ele se ergue, ainda cambaleando e se esforça para se manter de pé, tira o longo, bagunçado e molhado cabelo do rosto, olhando pra fora do pequeno espaço onde estava, ele percebe que existem outras criaturas, criaturas semelhantes a ele, mas tão alheias a tua presença que lhe provocam uma incrível curiosidade, ao sair do beco o pouco que se enxerga, são guarda-chuvas que vem e vão aos montes. A pressa é tanta que quase ninguém nota o ser de jaqueta aberta e sem camisa apreciar os quilômetros infindáveis de prédios, e os poucos que notam, são impulsionados a o deixarem devido a pressa. Carros vem, zunidos vão, dos dois lados da rua como formigas caminhando sobre o mesmo espaço a multidão parece ter sincronia e ser uma só com seus guarda-chuvas. Ele se pega de surpresa impressionado com as pessoas, que desenvolve a preocupação de que se ele ainda sabe o que são pessoas. Ensopado e inerte no meio da calçada ele decide caminhar pra frente, sem destino, pois nem mesmo a noção de se ter um nome se passa por sua cabeça, nome, não se lembra nem se tem um, o pouco de lembranças que se tem, é de algo que lateja em suas costas debaixo da jaqueta gelada e com um peso molhado. Ele pensa em tirar tal peso de suas costas, se livrar do que cobre o ferimento, mas algo o interrompe, um instinto, a idéia de segurança, de que não seria bom fazer isso o fazem resistir e manter-se vestido com os grossos trapos.

O tempo não o serve como referência de algo e sem se cansar ele caminha por vários quilômetros na interminável cadeia de gigantes de aço e concreto, o lugar é movimentado o tempo todo e mesmo sem fazer uma curva, sem dobrar em qualquer esquina não se parece ter ido muito longe, o cenário ainda é o mesmo, pessoas apressadas, todas anônimas com suas faces meio baixadas debaixo de seus guarda-chuvas. O barulho de vozes incompreensíveis e dos carros já não o incomodam tanto quanto antes.

Ele percebe que a chuva já é bem mais fraca, quase imperceptível agora, e olha pra cima sentindo a caricia da brisa gelada em seu rosto claro. Como se já tivesse feito isso antes, ele fecha os olhos e respira fundo, procurando uma sensação boa em meio tal poluição de variadas formas. Percebendo alguns poucos raios de sol que tentam abrir seus olhos meio que por força, ele se deixa levar e o faz, e sente o momentâneo prazer de se poder enxergar um céu azul, enfim algo com cores, não tão vivas como deveriam ser, mas já se pode ver um pingo de vida, como se as nuvens, alvejadas, tão longe lhe confortasse tal qual um colo maternal.

Seu estado de quase transe é bruscamente interrompido, por uma sensação de pânico repentina, causada pelo caos de cirenes e tiros que rasgam a pouca esperança de se sentir algo bom. Parado a alguns metros da próxima esquina ele percebe que todo o barulho e terror vem de trás, por ele passa um carro vermelho, com dois homens na frente, parecem uniformizados, no banco de trás, apesar da alta velocidade, se percebe uma refém amordaçada e amarrada, provavelmente a dona do carro que aparenta ser um desses comuns entre famílias, que gostam de no fim de semana, arriscar um pic-nic entre pais e filhos. Logo atrás, dois outros carros, estes de polícia, assim identificados pelas cirenes e por suas cores correspondentes a tal cenário morto monocromático, arriscam tiros, sem se quer preocupar-se com a multidão na rua. Polícia, Uniforme, Família, tudo isso num misto de informações parecem entrar repentinamente em sua cabeça assim como um prego que é martelado sobre uma pedra de sabão. Sem saber o que fazer, mas estranhamente com o sentimento de total controle da situação ele corre em direção a esquina em que os carros se foram, o primeiro dobra a esquina, são os fugitivos, incrívelmente ele já se encontra na frente dos carros policiais, mas ainda sobre a calçada, uma segurança e satisfação invadem seu ser e o fazem sentir diferente, útil, vivo. Ele salta e assume uma posição como se fosse gargula em cima de um hidrante, onde a rua dobra a sua esquerda, impulsionando suas pernas com uma força descomunal e se lança ao ar, com os braços rente ao corpo, subindo cerca de 4 metros em direção, daqueles que aparentemente são os malvados de sua história.

Como num sonho infantil, Asas rasgam sua jaqueta, mostrando o que lhe feria, e o que ele protegia escondendo. Com cerca de uns 2 metros cada asa, ele agora plana bem acima a perseguição, Mas algo há de diferente em suas asas, não são brancas e angelicais, e muito menos inspiram confiança a quem dependa de sua salvação, como as de um morcego, são pontiagudas, de um couro enrrugado marrom escuro, mas grosso, e asqueroso. As inúmeras dúvidas que se tinha o deixaram, assim como sua dor nas costas, ele sabia agora o que deveria ser feito, sem ainda saber como parar um carro com tanta força, a figura angelical com asas de demônio, sobrevoa boa parte da cidade acompanhando os desesperados que fogem e os outros desesperados que parecem mais caçar do que proteger e servir.

Deparando-se com uma bandeira hasteada, de uma propaganda de cigarros qualquer, ele se vê usando esta única saída, ela a rasga tirando de onde estava e voa em direção do primeiro carro, alcançando a frente o carro ele a solta, tapando assim a visão do motorista que agora “cego”, desgoverna e vai de encontro um caminhão de lixo, que vinha na contra-mão. A polícia então, vê sua hora de se fazer útil e com êxito prende os fugitivos. Um manicômio, isso explica o uniforme dos dois, que atônitos o olham e imploram pra morrerem diante de tal “ilusão” que estão vendo, também morrendo de medo a refém sai cautelosa do carro, olhando com receio pra cima, fitando seu medonho salvador. Pronto. Tudo está feito, e bem feito. Ainda no ar como um arcanjo, ele olha pra baixo na mesma direção em que o sol, ainda tímido e fraco dentre algumas nuvens carregadas. Não bastasse sua satisfação em ter ajudado, ele recebe como pagamento, berros e aplausos saudando o alado. Ele gosta e aprecia esses raros instantes antes de levemente voar, rasgando o breu urbano. Tão extasiado se encotra o ser agora que já nem lembra mais de se lembrar do passado.

A chuva fina volta a cair.

Ele sente o cansaço de um verdadeiro ato heróico, seus olhos ardem e se enchem de lagrimas, não sendo possível deixá-los abertos, a cabeça pesa e ainda voando ele apaga. As asas, encolhem, encolhem e se recolhem sob a velha e rasgada jaqueta, longe do local de sua aventura, ele rasga o céu em direção ao chão, sem ao menos ter a chance de sentir aquelas que pareciam ser tão carinhosas nuvens. A altura é grande, e a força que o corpo se encontra agora, faz com que lembremos de um meteoro. Um clarão de relâmpago, o brado trovão que rasga o céu pra que a chuva caia, e o choque o corpo isolado em um beco, tão sujo e fétido como um beco deve ser. Talvez tenha sido o impacto que calou a cidade por poucos segundos, talvez a cidade tenha se calado por apenas segundos devido a “pressa dos guarda-chuvas”.

O silêncio paira, e ninguém o percebe, ninguém o vê ali, em meio a tantos sacos pretos de lixo com seus trapos molhados, ele está morto, inútil, pronto pra acordar amanhã, sem se lembrar se quer de seu nome. Em meio o cinema mudo e em preto e branco da cidade, só se é possível ouvir a chuva nas latas, que nos dá uma falsa impressão de ouvir algo.

Estática.

Jeff Araújo
Enviado por Jeff Araújo em 19/01/2010
Código do texto: T2037955
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