Sinfonia do Diabo
O Violino Azul
Entre a cruz e a espada, entre a luz e o linear, era como Elina se sentia, transpassada por olhares que no escuro não significavam nada.
A agência de jornalismo em que trabalhava estava rebuscada de sangue, muito sangue, perolado e absorto pelo cheiro enjoativo de seu carmim, sobrepujando-se espalhado como se uma dúzia de corpos estivessem sendo arrastados pelo chão de ardósia.
Acordou suada como se suspeitasse que a morte estivesse deitada ao lado dos seus lençóis de solteira. Logo que levantou lambuzou o rosto com água gelada e se maquiou.
Já eram quase duas da tarde quando saiu do escritório em busca de sua próxima investigação para o jornal. Passou por dois quarteirões turbulentos sem notar os pedintes que mendigavam com os chapéus expostos e crus, até que um garoto muito algoz rapidamente capturou-lhe a bolsa e saiu correndo pelas vielas. ”não pode ser, naquela bolsa há dinheiro e meus documentos.”
Ela o perseguiu até um pequeno beco insólito que terminava em uma mureta de tijolos muito expostos da qual a hera densa havia tomado conta de quase um terço. Nem sinal do guri e aquela sensação estranha lhe cobriu novamente o pensamento até que se deparou com o garoto saindo do teatro. Parecia colocar as mãos nos olhos como quem acabara de acordar.
Elina vorazmente o agarrou pela gola da camisa.
-Seu moleque ladrão, devolva-me o que roubou!
-Do que está falando moça? – disse o garoto esperneando.
-Sabe do que estou falando, não finja...
-Seria muito bom que deixasse meu irmão quieto, senhorita!
Ao se virar, Elina deparou-se com um garoto trajado de smoking e cartola. Apesar de minúsculo, aquelas roupas lhe caiam muito bem. Segurava em uma das mãos um violino azul cromado que delicadamente colocou entre o ombro e recostou a vareta. Tocou.
A última coisa da qual Elina se lembrara era do olhar obscuro do garoto, e seu sorriso maníaco enquanto destrinchava as cifras do belo violino. Vertigens, finalmente a escuridão.
Quando recobrou os sentidos estava no hospital. Sua carteira estava em suas mãos e não havia nenhum sinal de que tivesse sido vasculhada. Estava intacta. Recebeu alta do hospital no mesmo dia e sem entender o que havia acontecido teve a curiosidade despertada. Passou a investigar por meses o que havia de mistério naquele acontecimento, nos fundos do teatro.
Com algum esforço ela teve uma idéia. Conseguiu se infiltrar disfarçada de dançarina nos camarins do anfiteatro e com algum resquício de sorte escutou alguma conversa entre uma voz feminina e de um garoto, falando em “Sinfonia do Diabo”.
Assim que anotou em um retalho de papel e revisou o nome várias vezes na cabeça, Elina se retirou com pressa do lugar.
“Senhor meu Deus, devo contar à polícia sobre isso? Seriam eles uma quadrilha? Máfia? Estou só? Não.”
A Cartomante
A noite que passara em claro não lhe trouxe lucidez, muito menos alguma idéia boa sobre o que fazer. Foi então que Elina decidiu que investigaria tudo á respeito, ora, um caso como este poderia render uma ótima matéria jornalística.
Seguiu os becos mais próximos com o intuito de chegar até a casa de Marius, um grande amigo que tinha na agência. Ela lhe contaria tudo, Marius tinha de lhe ajudar, ele tinha de lhe entender!
Uma mão áspera agarrou os braços de Elina. Demoraram alguns segundos para que o tranco lhe parasse e para que ela se virasse até conseguir enxergar o balanço de uma seda estampada de vermelho e outras cores quentes e escutar os adornos de latão dourado titilarem. Uma linda cigana versejou:
-Posso ler seu futuro, minha cara!
-Não, muito obrigada! Estou a trabalho.
-Não seja precipitada, não foi um convite, exijo que venha!
-Por favor, mulher! Não acredito em tolices como esta...
-E se eu lhe dissesse o que é a sinfonia do diabo?
Era como se um choque estivesse atravessando a razão de Elina. Como aquela mulher sabia sobre aquilo?
-Posso ler isto em sua testa, Elina!
“Como sabia meu nome? Impossível, seria alguma brincadeira?”. Ela continuou com este martírio até aceitar entre na tenda da cigana que logo puxou o tarô e o dividiu em três cartas sobre a mesa forrada com um belíssimo tecido de estampas florais. Um concentrado cheiro de ópio invadiu as narinas da atordoada Elina.
-O primeiro Arcano, Elina, é a Torre. Significa destruição em todos os seus sentidos e até mesmo no inverso!
Elina tentou assimilar aquelas frases, uma por uma. Era impossível que tudo aquilo estivesse sendo dito. No fundo de sua crença havia grande desconfiança.
-O segundo Arcano é o Diabo! Um homem por traz de tudo lhe surpreenderá de maneira formidável!
Elina engoliu a seco, já não conseguia raciocinar.
-O terceiro e último arcano é...
A cigana olhou a carta e não a desvirou. Era como se fosse um anúncio de tempestade atroz.
-Diga-me, cigana! Qual a carta? – Elina pediu impaciente.
-Tem certeza, querida? Assume a responsabilidade pelo que te direi?
-sim.
E em um movimento sutil e despreocupado a cigana revelou uma carta que Elina pode distinguir como o arcano XIII: A Morte.
Pinóquio
Elina estava chocada, uma dor gelada atravessava sua cabeça. “Como aquela mulher sabia de tudo aquilo? como podia saber daquelas coisas?”pensou enquanto estava na banheira , a navalha estava sobre a pia, os limites estavam ao extremo. Ainda mais com alguns bilhetes de ameaças que recebera ultimamente com freqüência, bastava que ela aproximasse dos pulsos e cortasse. Recebeu duas ou três chamadas de Marius mas não atendeu. Estava decidida a se entregar a morte naquela noite, antes que alguém fizesse aquilo para ela, algum assassino ou algo do gênero.
Afogou a cabeça na banheira fria para pensar e com as narinas que tampadas por si mesmas não deixavam que a água passasse teve um pensamento que lhe condenara: ”Onde estou com a cabeça? Sou uma grande jornalista! Colocarei um fim nesta besteira de Sinfonia do Diabo!”
Ela emergiu nua e nova da banheira, com uma determinação que espiralava sua mente, como a essência de orvalho que pingava de um novo broto.
Vestiu-se como quem faz isto para a guerra, colocou o sobretudo bege por cima da roupa preta, calçou a botas de couro, Um presente que era a única lembrança que tinha do pai que se acidentara e morrera. E por último colocou alguns utensílios que poderiam ser úteis na bolsa, principalmente a câmera fotográfica, a navalha e os cigarros que gostava de fumar.
Saiu ás meias luzes e atravessou todas as ruas até o teatro, falou com um conhecido ou outro, não fez questão de se esconder, demonstrou-se no batom carmim com coragem.
O palco do anfiteatro estava preparado para a apresentação de bailarinas russas. Elina esperou que as cortinas abrissem, assistiu a todo balançar de pernas até que as cortinas voltassem a fechar, o palco se apagar, e que todos os presentes fossem embora. No teatro viu muitos e deixou-se ser vista, mas não falou com ninguém. Caminhou só como o elefante que caminha estreito para a morte. Era agora ou nunca mais!
Calmamente se infiltrou nos camarins que estavam iluminados por uma luz fraca e trêmula. Havia um pedestal no centro com uma espécie de grimório. Ela se aproximou, tirou algumas fotos e se arrepiou ao ler a capa do livro com as seguintes inscrições: “Sinfonia do Diabo”. Mansamente saiu da sala e ficou atrás das cortinas novamente.
Um estrondo forte aconteceu e os holofotes acenderam-se bem em cima de Elina, as cortinas vermelham se abriram.
-Não sairá daqui viva hoje, Elina! – surgiu o menino violinista do meio das arquibancadas com seu sorriso negro.
Elina abriu a bolsa rápida embora estivesse tremendo, retirou de lá o fone de ouvido e conectou ao seu aparelhinho de som no maior volume que podia. Acontecesse o que acontecesse, aquela musica não a atordoaria novamente.
-Espertíssima cartada, minha amada Elina, te amo a ponto de te matar! Mas é uma pena que pensa que a Sinfonia do Diabo seja capaz apenas de fazer isso.
Em novos gestos brandos o garoto tocou o violino puro. De um saguão mais profundo surgiram as dançarinas russas armadas de barras de ferro e facas. Elas tinham um olhar estranhíssimo, como se não soubessem o que estavam fazendo, como se fossem zumbis.
-Agora entendo! Seu irmão gêmeo não sabia mesmo o que estava fazendo quando roubou minha carteira! Esta tal sinfonia é mais um recurso hipnótico!
O garoto não disse nada e deu um sorriso grotesco, tocou o violino e as dançarinas partira m para um ataque. Elina correu e fez uma ação rápida: correu até o fundo do palco e cortou as cordas que prendiam a pesada cortina e agarrou-se a elas. Quando percebeu estava agarrada ao andar de cima, a cortina e a haste caíram sobre as mulheres. Duas das bailarinas sobreviveram até que Elina encontrou um salão cheio de fogos de artifício, os quais ela ateou fogo com o isqueiro e, pois em chamas todo o teatro, todo o artifício voava pelo salão. O fogo vivo consumiu tudo o que estava La em baixo e parte do que estava em cima. O garoto violinista ardeu nas chamas junto com as dançarinas. Era escalda pura!
-A Torre é o arcano da destruição em todos os seus sentidos!-gargalhou uma voz feminina.
-Você era a responsável por tudo isto, cigana? Maldita! Por isso sabia sobre tudo aquilo. Mas algo que me alivia é que a tal sinfonia foi destruída com as chamas, o que você maquinava chegou ao fim.
-Não conte com isto, minha libélula!
Elina gelou-se com a voz masculina que ecoou atrás da cigana, era um homem que saia do meio das sombras, corpulento. Não podia ser, “não pode ser meu pai, mas somente ele me chamava assim!”. O homem sorriu e mostrou o rosto que se iluminou pelas chamas. Ele tinha a sinfonia do Diabo em mãos!
-Veja, Elina! A sinfonia que o é a junção das sinfonias de Beethoven, Schubert e Antônio Vivaldi, Cuja lenda diz que o próprio Diabo os fez compor!
- O Diabo, Elina, o Arcano que indicava que um homem cruel te surpreenderia!- disse a cigana com muito cinismo.
- Papai, porque você?
-Silêncio, Maldita Elina! Você é a culpada, culpada pela morte de sua mãe. Que bom que pensou todo esse tempo que eu era um Pai amoroso, e que eu morri em um acidente de carro! – o homem deu a maior gargalhada maquiavélica que Elina escutara na vida. Agora é minha vez de destruir sua vida!
-O ultimo Arcano, querida! A Morte!
- Você destruiu meu pequeno filho, não é? Meu pequeno Pinóquio. – quem se importa?- e sorriu – Queime sozinha no inferno Elina!
Franccesco e a cartomante saíram logo do prédio deixando Elina onde estava e bloqueando a passagem pelas escadarias. Quando saíram pela porta do teatro encontraram de frente com a polícia que havia sido trazida por Marius e logo receberam mandato de prisão. O Rapaz preocupara-se com Elina e foi em busca dela pedindo informações às pessoas que a viram, então logo acionou a polícia quando sentiu que Elina estava em perigo.
Logo que soube que Elina estava presa dentro do prédio em chamas, Marius correu par tentar socorrê-la, mas a surpresa veio à tona! Elina conseguira escapar pela fenda lateral do teatro e descer pela muralha que estava encoberta pela hera densa. Ela conseguiu se salvar graças a sua boa memória e a sua capacidade de observação.
Assim que a socorreram, e medicara mela contou todo o incidente á polícia e a Marius.
O último Arcano, A Morte na verdade trazia o significado do Renascimento, uma nova oportunidade para a vida de Elina, como a fênix de fogo que renasce das cinzas, como as chamas que fizeram da sinfonia do diabo, carvão. E foi neste ponto que a cartomante errou. Às vezes a morte é amiga!