Realidade abstrata: O latido da sereia.

Nasceu com o canto do galo, de parto normal e sem assistência. Aos sete dias de vida ficou órfão de mãe. Do pai não conheceria sequer os genes que lhe deram a tez morena e olhos esverdeados. Sobreviveu sob os cuidados de Tatá, uma velha cadela que perambulava noite e dia pelo casebre em busca de comida. As únicas fontes de sua existência eram a sua própria sobrevivência e as suas lembranças.

Adotou, ainda moço, o nome que carrega até hoje: Tatau. O Seu Tatau, como é conhecido.

 

Dia de lua cheia... um vento fresco sopra do matagal e brinca em redemoinhos na varanda da casa, uma construção simples, porém muito agradável.

Como sempre, Seu Tatau era o centro das atenções.

Não sabia ao certo a idade, mas estimava que já vivia mais de cinquenta anos depois da morte de Tatá.

Animado com a atenção sincera dos colegas, Seu Tatau, com aquele linguajar caboclo, pobre na gramática e na concordância, começa a contar mais uma das suas muitas estórias:

 

—Cuma vosmecês sabem, esse cabra aqui foi criado por Tatá, uma cachorra comum, mas de grande coração e sabedoria.

Pois bem... Era luz de lua dum dia de estio, quando escutei um zoada no meio do mato. Pus as orelha de pé, como aprendi com Tatá, mode escutar melhor e ouvir o uivo lastimoso, lá, ao longe: Tatau-au-au-au... Olhei pra minha velha mãe, Tatá, que dormia a sono solto. Mode num acordar a bichinha, saí nas ponta dos pé, atravessei a varanda e me embrenhei na mata.

—Tatau-au-au-au... O uivo lastimoso ficava mais perto!

Vexado como tava num dei fé que minha mãe, Tatá, tava no meu encalço. Andei nas brenha da mata até perder a lua de vista, mas o danado do lamento num mostrava a fuça. Meio sem norte, andava no rumo das venta e de orelha em prumo, quando avistei, por trás dum pé de juazeiro, um bicho esquisito que de longe parecia ser metade gente metade cachorro. Me agachei detrás dum monte de cupim mode num ser visto e fiquei... quietinho... espiando e assuntando. Foi quando dei conta de que num ouvia mais o latido lastimoso.

—De repente o estranho animal se levantou nas patas traseiras e começou a dançar bem na minha frente. Fui ficando meio tonto e, perdendo as forças e a vontade, me levantei e caminhei no rumo daquele bicho, que já num era mais bicho. Virou uma mulher que mais parecia uma deusa. Uma deusa nua em pelo, oferecendo os peito no meu rumo...

Como a carne é fraca e o miolo do macho é mole, meio pulo e já estava quase nos braços daquela formosura.

—Auuu...! Auuu...! Ouvi um aulido conhecido bem nas minhas costas. Mal tive tempo de virar e Tatá, minha velha mãe, avançou na bela dona.

—Começou uma luta canina, com latidos, uivos e grunhidos. Eu, ainda meio abestado, fiquei alí, parado, sem ação, quando ouvi de novo o uivo lastimoso: —Tatau-au-au-au... mata essa cachorra velha... e leva-me contigo para o paraíso... Mata, Tatau! Mata! Mata!

—Enfeitiçado, marchei pro rumo de Tatá, agarrei ela pelo cangote com uma força dos diabo. Tatá não reagiu! Olhou pra mim com um olhar de mãe e fechou os olhos deixando a lágrima escorrer num último suspiro.

—Larguei Tatá no chão sem vida e virei os olhos pra minha bela formosura: Nada! Não havia nada e nem ninguém. Tava só eu e o corpo da minha velha Tatá.

—Entrei em desespero. Corri pra acudir Tatá. Tentei em vão acordar a velha cachorra, mas já estava morta. Levantei Tatá no colo, bem perto do coração e marchei sem rumo pela mata. Aqui acolá ouvia, como se viesse do meu próprio juízo, cada vez mais longe o tal uivo: Tatau-au-au-au... Tatau-au... Tatau...

A atenção dos ouvintes quebra-se como por encanto com a voz empostada de Osvaldo, o enfermeiro de plantão: —Hora de se recolherem; —Digam boa noite, tomem seus medicamentos... e cama!

Assim termina mais um dia na rotina do manicômio São Tomé.

 

 

Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 27/07/2006
Reeditado em 11/03/2022
Código do texto: T203449
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