O Laçador - Somente o Céu por Testemunha
Série Contos da Juventude
Aventura durante as férias
O Laçador – Somente o Céu por Testemunha
Eu me chamo Caio, e estudo medicina veterinária. Estava de férias na minha casa, gozando uma “dulce far niente”, porém, sempre que vinha de férias para a nossa casa, tinha que tirar um tempo, para ajudar um pouco ao meu pai na casa comercial. Para mim era um divertimento, dar uma de balconista após seis meses de aulas estudando matérias como Anatomia Patológica, Parasitologia e Alimentação Animal. Fiquei mais de dois meses estudando e fazendo lâminas de Anatomopatologia, coisa completamente desconhecida pela totalidade das pessoas que na pequena casa comercial de meu pai ia fazer compras. Meu pai era o principal comerciante da vila, existiam outros, mas a Casa Celeste era a que tinha maior estoque e um grande número de clientes. Minha ajuda era pequena, mas até que eu era um reforço, para o meu pai e seus dois ajudantes, que nos fins de semanas deviam percorrer pelo menos uns 10 km no vai e vem, atendendo e entregando mercadorias para os clientes. Eu procurava ficar com o trabalho mais leve, vendendo perfumaria e armarinho. As mocinhas que vinham à sede do distrito nos finais de semana, quando recebiam dos pais algum dinheiro contado para fazerem alguma comprinha, aproveitavam para adquirir artigos de uso pessoal para dar melhor trato a aparência. Com a timidez natural da gente da roça, entravam na venda e então, eu acelerava o passo para atendê-las. A iniciativa era sempre do balconista: Bom dia ou boa tarde - o que vão querer? – ‘Me mostre’ este ruge, por favor! E aquela caixa de sabonetes? ‘Me deixe’ ver a caixa de extrato. As caixas de extrato vinham com várias fragrâncias: Jasmim, violeta, lavanda etc. Perfumes baratos, mas que levavam com o seu aroma acre-doce toda uma emoção feminina. Ver os namorados ou noivos, com as faces mais rosadas, e mais perfumadas, dava a elas uma sensação de mais segurança, mais feminilidade. Elas saiam da loja, satisfeitas, alegres, motivadas, conversando animadamente. Eu gostava de ver esta reação das mocinhas, negras ou brancas, ás vezes muito humildes, e que quase sempre, pegavam no cabo de uma enxada pesada, com o sol queimando-lhes a pele, viçosa no início da juventude, mas que com o tempo ia perdendo o viço, ficando rugosa e ‘caracachenta’.
Mas nem sempre era só vender perfumaria, quando a coisa pesava se fosse necessário, pegava firme também. Uma das coisas de que eu não gostava era vender cal aos quilos. Nós vendíamos a cal em pó; tinha-se que ensacá-la e pesar. O pó levantado irritava as narinas, sujava a roupa e queimava as mãos. Outro artigo que não me dava satisfação era vender tecido: tinha-se que pegar a peça, desenrolar, pegar o metro e medir a quantidade solicitada pelo cliente, cortar e depois embrulhar. Realmente não era a minha praia.
Algumas pessoas conhecidas do meu pai até já caçoavam de mim: Hei doutor! Pegando duro hein! Isto aqui não é o Rio de Janeiro não! Mal sabiam eles que para passar de ano, tinha-se que muitas vezes virar a noite e ralar horas e mais horas na biblioteca, atrás dos livros na busca do conhecimento.
Como na pequena vila em que moravam meus pais não havia muita coisa para fazer, procurava me divertir na fazenda; para lá me mandava para fazer companhia ao ‘velho’e aprender coisas novas sobre agricultura. Meu pai era um autodidata em cafeicultura, com vários prêmios ganhos do IBC e do INCRA. Respirava café 24 horas por dia. Era um cafeicultor caprichoso e gozava da estima dos técnicos, sempre colaborando com a extensão rural e com o órgão que dava as diretrizes para a cafeicultura.
Numa das viagens à fazenda, quando meu pai parou a caminhonete de frente da pequena sede (o antigo casarão havia sido derrubado fazia anos), eu avistara no curral o gado que estava sendo tratado com capim e cana. Resolvi fazer então algo que sempre quis: Manejar o laço. Parece que os filmes de cowboy ou a minha genética rural levava-me a apreciar e amar as atividades rurícolas. Aproveitei o momento em que meu pai saiu para verificar seus pés de café e parti para a aventura.
O curral ficava ao lado da antiga sede, às margens da estrada municipal que seguia até a cidade vizinha. Uma coberta abrigava um pequeno bezerreiro e, a instalação da picadeira elétrica. Uma simples porteira ligava o curral à coberta. O ambiente era propício; pelo menos uns dez bezerros desmamados, quase garrotes, estavam soltos no curral. Entrei na pequena coberta da ordenha, e visualizei no alto, dependurado numa das terças da coberta, o laço. Saquei aquela tira de couro cru trançada, uns cinco ou seis metros, e me senti como Roy Rogers ou Durango Kid. Iniciei a minha aventura sonhada. Já tinha pegado (pego) em um laço, mas apenas para ver o trançado, o artesanato. Senti a grossura, o sebo que nele passavam para conservação, o comprimento e, de imediato comecei a enrolá-lo como aprendi, vendo os peões e retireiros. Adentrei o curral mirando os bezerros já um pouco assustados pela minha presença; meus pelos eriçaram e um sorriso aflorou em meus lábios: vou concretizar meus desejos. Levantei o laço sobre a cabeça e com movimentos circulares dava impulso para lançar o laço. Os bezerros começaram a correr já imaginando a minha pretensão. Na primeira laçada mal acertei o lombo do pequeno ruminante. Na segunda tentativa lacei um pé do bezerro. Pensei que seria mais fácil, não foi. Os bezerros agora agitados, corriam e corcoveavam, escoiceando a cada susto. A minha emoção era grande e senti a adrenalina correr nas minhas veias. Calculei melhor a laçada e escolhi o bezerro. Pela terceira vez atirei o laço e me entristeci ao ver que tinha laçado o pé do bezerro. Soltei uma maldição, mas não iria desistir facilmente. Nestas alturas o suor começava a me incomodar e a poeira levantada no curral trazia o cheiro característico de estrume que começava a irritar minhas narinas. Mas, ao mesmo tempo, principiava a aprender a técnica de lançamento: a distância entre a minha pessoa e o animal, a velocidade e a força do lançamento, harmonizado com a velocidade do animal. Neste momento o curral estava um alvoroço, era bezerro correndo pra todo lado. Não havia percebido antes que o portão da coberta onde ficava a picadeira com outros equipamentos, ficara aberta. Um dos bezerros corria naquela direção, com intenção de ali entrar. Se entrasse o mal estaria feito. Na velocidade em que ia bateria na picadeira ou nos motores e um grande acidente poderia ocorrer. Estragar a picadeira e até a morte do bezerro ou uma perna quebrada. Meu pai ficaria muito aborrecido. Não perdi tempo, girei o laço e lancei-o, rezando para que não errasse. O laço sibilou no ar, e caiu com perfeição no pescoço do animal; puxei com força e num rodopio e uma deslizada, o bezerro foi ao chão com um berro. Lívido pelo susto entrei em taquicardia com o coração me saindo pela boca, respiração ofegante, amarelado pelo medo, mas ao mesmo tempo contente. Quando notei o bezerro no chão tentando se levantar, apertei mais o laço, visando tirá-lo da região da entrada da coberta, todavia, o garrotinho começava a ficar sem respiração. Então, larguei o laço e corri para fechar a porteira que dava acesso à coberta. Havia me livrado do acidente. A adrenalina começou a abaixar, e menos tenso já respirava com mais facilidade. Com alívio e respirando fundo, já não sabia se fora a técnica aprendida ou a reza feita. Só sei que a laçada tinha sido providencial. Passado o susto ficou o prazer inolvidável de ter executado um sonho. Neste dia voltei pra casa bem mais feliz, e uma áurea de paz e harmonia se estabeleceu em mim por todo o período de férias. Salve laçada salvadora. Somente uma tristeza: dificilmente alguém ia acreditar na minha façanha.
Só tive o céu por testemunha.