Dimensões sucessivas - o "corpo" de Deus

Ele buscava Deus.

Então olhou para um minúsculo pedaço de tecido epitelial no microscópio e viu, primeiro, as células e suas ligações. Depois, viu as moléculas e como elas se organizavam. Por fim, viu os átomos que compunham as moléculas.

E aí pensou ter descortinado um vislumbre de Deus.

Olhando pro céu, quis alcançá-lo e mergulhar fundo no espaço.

Então tomou uma nave e decolou rumo ao escape da atmosfera.

No percurso, olhou pela escotilha e viu a terra se distanciando cada vez mais, o que tornava seu ponto de vista cada vez mais abrangente e genérico, olhando bairros, cidades, florestas, rios, lagos e oceanos, pontuados por cada vez menores e mais esgarçados chumaços de nuvens brancas. Fechou a escotilha e passou a usar os olhos eletrônicos da nave.

Ao sair da atmosfera, sua visão mudou por completo. Sem a proteção da "lente de ar" que envolve o planeta, a luz crua do sol é intensa e cegante. As estrelas se destacam nítidas.

Agora vê em perspectiva real a tridimensionalidade da organização dos corpos celestes no espaço. As constelações e demais formações vão se delineando, mostrando os respectivos níveis de profundidade, localização, volumes, formas e padrões de deslocamento no espaço conforme a nave progride.

Ultrapassa rapidamente a lua. Após um instante, ultrapassa Marte. Ganhando cada vez mais velocidade, a nave desliza muito veloz até Júpiter e, logo depois, Saturno... Urano, Netuno e quase esbarra em Plutão quando atinge um novo nível de velocidade, que continua aumentando.

Olha na tela e escolhe instantâneos do entorno celeste.

Vê organizações estelares sob ângulos bastante inusitados.

Ao atingir certa distância, percebe o minúsculo sistema solar como outrora percebera uma cidade. Avança e agora o vê como outrora vira um continente. Avança um pouco mais e lhe parece ver uma molécula. Logo ele torna-se invisível na distância.

Atravessa a galáxia, cruza espaços e formações variadas, mergulha eventualmente em túneis de negro e estéril vácuo, ultrapassa outras galáxias e continua distanciando-se.

Nesta cruzada, começa a perceber um certo padrão fundamental na organização e na forma do Universo. Adapta constantemente o seu pensamento e raciocínio às sucessivas novas dimensões e escalas.

Pontos minúsculos em tela vão se aproximando e deixando ver o que parece ser uma estrela difusa, que logo se transforma em um sistema, que logo se transforma em constelação, que logo se transforma em galáxia, a qual, tão logo seja ultrapassada, transforma-se de novo em constelação, a seguir em um sistema, logo em estrela difusa, em ponto minúsculo, por fim em nada.

Nada no Universo é estático, constata. Tudo está em eterno movimento, seja em torno de si mesmo, seja em torno de outro corpo.

Leva muito tempo nesta viagem que lhe provê de perspectivas, escalas e conhecimentos, testemunha fenômenos inimagináveis, capta imagens absolutamente psicodélicas por onde passa.

Até que atinge mais um limite dimensional.

Sente em seu corpo uma forte, mas difusa sensação de crescimento ultra-acelerado.

Percebe-se tal como uma ínfima gota de suor aflorando na pele de alguém.

Continua crescendo muito rápidamente.

Percebe-se tornando-se no organismo de cuja pele aflorou como uma diminuta pérola de suor.

E então compreende que o Universo, tal como ele vislumbrara a partir de seu planeta, na verdade era apenas um conjunto de átomos organizados e seus elétrons, todos constituindo os tecidos e fluidos e demais componentes deste organismo em que ele se tornara.

Olhou em torno e conheceu os seres, as construções, a natureza, o céu... e viu novas estrelas.

Um clarão de discernimento atingiu sua consciência como um raio -- se ele continuasse a viagem, iria ultrapassar sucessivos limites dimensionais, sempre terminando por descobrir que o macro era na verdade o micro que retornava a ser macro pra tornar-se micro novamente ad infinitum.

E perguntou-se quantas e quantas vezes teria que ultrapassar limites como aqueles até chegar a Deus.

Intuiu uma tênue, mas firme resposta -- Deus é esse organismo sem forma nem dimensão que habita todos os organismos que têm formas e dimensões, uns contidos nos outros... e que são infinitos.

Então sentiu uma súbita paz. E prosseguiu no seu caminho.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 10/01/2010
Reeditado em 11/01/2010
Código do texto: T2021367
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