Guerra e Honra
- Você teve a chance de matá-lo hoje! Poderia ter aniquilado os fundamentos do poder de nossos inimigos! Preciso lembrá-lo, meu senhor, do que esse inimigo vem fazendo conosco?! Em mil anos de história de nosso povo jamais fomos tão massacrados como estamos sendo agora!!! O que você fez?! Ou melhor, o que você não fez?! Como conseguiu não fazer nada?! Fale agora, meu senhor Rei!
O Rei ouvia impassível o ataque verbal furioso de seu general Já tinha problemas suficientes em seus pensamentos. Não era inteligente colocar mais alguns pesos em sua mente já exausta. Mas, subitamente, despertou e olhou com atenção o comandante de seu exército que se quase se contorcia em espasmos de ira.
- Trinta anos lado a lado e jamais havia ouvido tanto desdém sair de sua boca, general. Nunca imaginei que fosse possível colocar tanto escárnio nessa expressão que tanto ouço diariamente. Duvido que possa ouvir novamente um “meu senhor rei” sem me lembrar desse tom de voz.
Ele sabia que o homem tinha bons motivos para considerar justificável multiplicar várias vezes o nível de desdém em sua voz. E mais importante ainda, sabia que isso era a menos importante de suas preocupações naquele momento. Apenas não conseguiu conter suas palavras. Não importava a situação, ouvir seu melhor amigo e mais fiel servidor, companheiro já por três décadas, falando com esse desprezo feria como um golpe de espada.
- E por acaso se acha digno de meus elogios?! Depois do que vi nesse dia isso é o mínimo que podia esperar. Juro por minha vida que se tal atitude tivesse partido de qualquer outro que não fosse o senhor minha espada já teria acabado com sua vida há várias horas!! Percebe que acabou de colocar a sobrevivência de seu povo na beirada de um abismo? A situação já não estava ruim o bastante depois de todas aquelas derrotas?!
O general lembrou do que vira mais cedo um pouco nesse mesmo dia, quando cavalgava com os uma companhia composta pela elite da cavalaria do sul. Sua mente divagou.
Saíra para observar o acampamento inimigo. Felicidade e orgulho inundavam seu coração. Ele subiria a colina e de lá contemplaria, satisfeito, a agonia de seu inimigo! O grande líder se fora. A base do inimigo teria ruído. Deixara de existir o poderoso e lendário rei que em vinte anos fora capaz de transformar um bando de valentões selvagens numa força unida e organizada a ponto de sobrepujar o poder dos três maiores reinos do mundo unidos, cada um com um milênio de histórias de glórias.
Ele já vira isso antes, tinha certeza de que seu plano funcionaria. O rei morre e abre-se um vazio no poder. A ganância de cada comandante se inflama. Mal a vida abandona o corpo do antigo líder e já há armas em todas as mãos. Primeiro vem os gritos. Cada general vocifera sobre os outros suas justificativas para assumir o poder absoluto. Soldados leais a cada comandante presente correrem para junto seus líderes, colocando-se ao seu dispor. Talvez o irmão ou o sobrinho do rei morto surgiriam para reivindicar seu direto. Mas ninguém ali, nem mesmo os que carregavam o sangue do falecido, tinham meios de submeter todos os presentes à sua autoridade. Seguramente esses herdeiros legítimos seriam os primeiros a morrer. Seria a ultima vez que os generais ali presentes concordariam entre si: esses parentes precisavam ser eliminados, pois cada um acreditava ser seu direito herdar aquele poder.
Mas que poder? Aquela altura ele já haveria se dissipado completamente. O acampamento que há pouco era preenchido com gritos de discussões agora começaria a ser tomado por outros sons. Ainda haveria gritos, com certeza, mas agora eram de dor e agonia porque as espadas, lanças e machados nas mãos dos oficiais e seus soldados assumiriam o lugar das palavras naquelas argumentações.
E então se descortinaria para o general o magnífico espetáculo que ele tanto esperava: a completa desconstrução das forças inimigas! O acampamento virando um campo de batalha, seus inimigos perecendo, matando-se uns aos outros! E ele saberia que cada grito de dor ouvisse hoje vindo do acampamento dos soldados do Norte significaria um grito a menos de dor que ele viria a ouvir num campo de batalha onde mais uma vez seu povo teria sido derrotado, ou mesmo numa cidade de seu país.
Sabia que, eventualmente, um dos generais ali conseguiria se impor e eliminar seus rivais. Teria perdido quase todo seu exército, mas mal pensaria nisso naquela hora, sentindo apenas êxtase por ter, enfim, adquirido o poder que sempre desejou em seu íntimo. Seria então que viria o golpe final. Ele, o Grande General do Sul, eclipsaria sua própria glória passada – que não era pouca – quando eliminasse de uma vez o maior inimigo que seu povo já tivera. Saltaria da colina num galope rápido à frente de seus cavaleiros, conduzindo-os direto para o agrupamento de seus inimigos e os pegaria completamente despreparados, cansados, aturdidos com aquele súbito ataque, totalmente incapazes de se defender, e ali trucidaria aqueles bárbaros!
Planejava nem mesmo se dar ao trabalho de perseguir os pobres coitados que conseguissem escapar do massacre. Deixaria que voltassem correndo, desesperados, para se esconderem em suas florestas geladas no norte e serem devorados por seus próprios ursos e lobos ou tragados pelo frio. Eles que espalhassem a notícia terrível da grande derrota que sofreram e que isso plantasse o medo nos corações de seu povo! Assim ele não apenas destruiria essa ameaça. Também preveniria futuras.
Era tão inebriante saber que contando apenas com um pouco de veneno, um servo corrupto para subornar e com a ganância e inveja dos homens poderia destruir pelo alicerce um exército que tão dificilmente seria derrotado pela força!
Melhor ainda era saber como seu Rei e amigo se sentiria quando visse sumir a preocupação e o receio de seus ombros. Ele, que conhecia perfeitamente bem seu soberano e o assistia de perto, sabia exatamente como isso era duro. Sabia que seu Rei estava suportando o peso de uma montanha nas costas. Ainda bem que aquele velho ainda tinha coração forte, porque senão poderia até ser perigoso dar uma surpresa dessas. Qualquer rei de coração doente e fraco seria quebrado pela pura alegria se descobrisse de repente que seu maior inimigo foi aniquilado em apenas uma hora exatamente no momento em que estivesse perdendo as esperanças de salvar seu reino!
Mal sabia que era ele que precisaria ter um coração de aço e que isso seria duramente testado em poucos minutos! Enquanto se lembrava agora da cena que presenciara sentia sua mão mover-se e agarrar sua espada instintivamente, conduzida por uma fúria que crescia mais e mais dentro dele. Lutou contra o impulso, mas não porque vira os guardas do rei desembainhando suas espadas também e indo em direção a ele. Sabia que podia abater aqueles três facilmente, se fosse necessário. Ainda conseguiu se conter um pouco porque a lealdade a seu senhor e amigo era mais profunda que qualquer impulso que fosse capaz de sentir.
Mas talvez hoje não! Sacou rapidamente a espada. Os guardas correram, mas já não havia mais nada para eles fazerem. O General arremessara lâmina. A 10 metros do trono, onde estava, poderia ter acertado seu rei com os olhos fechados.
A arma jazia estava fincada em um escudo na parede. Ele havia se livrado de sua espada para afastar a tentação que sentia. Uma onda de alivio percorreu o salão.
O rei conteve seus guardas, que pretendiam deter o general e reuniu sua força para tentar explicar tudo.
- Era necessário Danher. Por favor, acredite em mim. Eu precisei frustrar seus planos por uma questão de honra!
- Honra?! Agora condenar seu próprio povo virou algo nobre?!
- Que eu saiba, ainda não estamos completamente derrotados! Ou por acaso está chamando de fracos e incapazes todos esses homens de nosso povo que estão se preparando para a próxima batalha?! Ou por acaso acha que nossas muralhas são feitas de palha?!
- Não, meu rei! Não morremos todos nós ainda. Eu sei disso. Mas ainda estamos muito inferiores em força que o inimigo que eu teria destruído hoje!! Quer me ouvir dizendo que ainda podemos vencer?! Então eu digo – a voz do general Danher se transformando numa vociferação raivosa – podemos sim destruir nossos inimigos, se cada homem desse país entregar sua vida inutilmente nos campos de batalha!! Isso é o melhor que vai conseguir, já que decidiu levar sua honra a esse extremo!
Mais lembranças assaltavam agora os pensamentos do general. A terrível desilusão, a decepção que quase levou seu sistema nervoso ao colapso novamente se desenrolava em seu teatro mental: sua chegada ao topo da colina, a esperança de ver sua vitória... E então soaram os tambores e as cornetas do exército dos Ursos do Norte, seus inimigos! Fileiras após fileiras de falanges apontando suas lanças e dezenas de blocos de grandes escudos com milhares de soldados de infantarias carregando espadas e machados. Pelos flancos se aproximava a cavalaria inimiga, excedendo apenas ela o contingente do general e sua companhia em vinte para um. Em vez do caos e de sua suprema vitória, ele contemplava o que parecia ser sua própria morte, bem como da elite de seu exército também.
Traição do servidor que ele havia comprado, certamente! Ali, encarando a morte certa, não pôde conter um sorriso sinistro ao ouvir a voz pessimista de sua consciência dizendo: “- tudo dependia mesmo de detalhes tão pequenos! Uma pequena traição acabaria com seu inimigo. Não sabias que a mesma pequena traição poderia acabar contigo também?!” “Cale-se!” Bradou ele com sua voz consciente interior. “O risco de acertar valia o preço de perder. Eu e todos os que me acompanham sabíamos disso. Não seremos covardes diante de nosso destino agora, nem nos entregaremos a lamentos inúteis! Teremos um fim glorioso, ao menos...”
Olhou para os homens à sua volta e leu ali a mesma determinação que sentia. Morreriam como guerreiros, valentes guerreiros! Quinhentas lanças, espadas e escudos naquela colina foram seguradas com mais firmeza do que nunca tinham sido antes. Quinhentos homens que não tinham mais nada a perder e agora apenas desejavam uma morte honrada, de soldados, as empunhavam. Enterros de nobres heróis eram regados com óleos aromáticos e suaves. Essas armas estavam prontas para obter acompanhamento melhor para o enterro dessa companhia. Não seria umedecida com óleo, mas com sangue de inimigos!!
E então o inimaginável aconteceu. Da artilharia inimiga um único dardo foi lançado e fincou-se no solo a poucos metros da posição do general. Na haste do dardo estava amarrada a ultima coisa que Danher esperava ver: um tecido, representando uma bandeira, e a sua única cor era a branca.
Os tambores do exército do norte rufaram mais uma única vez e silenciaram, e da vanguarda cavalgou uma comitiva, portando outra bandeira branca. E junto com ela vinha a bandeira que já era temida naquela terra: o tecido todo preto com um urso marrom no centro. Era o próprio Rei Rysar que vinha até ele.
- Saudações, valoroso adversário. Só gostaria de dizer que não o culpo pelo que pretendia fazer a mim e a meu povo hoje.
- O que o faz pensar que eu me envergonho do que pretendia fazer? Envergonho-me apenas por ter falhado!
Riu então o rei do norte, sarcástico.
- Não pense que estou de alguma forma surpreso com suas palavras, general. Se quando era você quem estava à frente de um exército invencível, esmagando meu reino e meu povo, vinte anos atrás, não sentiu vergonha – lembro-me bem – como poderia sentir agora?
- Só me arrependo de ter sido incapaz de acabar com sua vida naquele dia! Como ousa você, que sempre ameaçou e feriu meu povo, me acusar de algo, seu bárbaro?! – A irritação das lembranças do passado e do fracasso no presente atormentando a mente do líder do sul. A resposta fria que recebeu não melhorou nada...
- Ameaça a seu povo?! Hahaha... Então essa é sua racionalização para se justificar? Que fique com ela! Pouco me importa agora o que pensa. Chama-me de bárbaro, mas se esquece de que nesse momento ainda está vivo, e nem percebe que assim continuará. Não vê que eu poderia ter a sua cabeça adornando minha tenda agora mesmo, se eu quisesse?
- Por acaso está me vendo implorar por minha vida? Se for para zombar de mim que está me poupando, acabarei eu mesmo com sua diversão! – disse Danher, enquanto tocava com a mão direita sua faca.
- Não se precipite, general – disse Rysar. Não vou zombar de ninguém. E caso deseje se matar, por gentileza não o faça em meu acampamento. Não é algo cortês e muito menos necessário, de minha parte! Apenas o quero vivo para transmitir meus agradecimentos ao seu rei e dizer-lhe que agora acredito em sua honra. Diga que ele tem minha palavra que, ao vencê-lo e destruir e conquistar o poderio do Sul, assumindo também seu trono, tratarei o povo dele – que passará a ser meu – com a mesma justiça que aqueles que hoje já estão sob meu cetro.
A despeito de todo o risco, era impossível para o general agora conter o acesso de riso.
- Esse, então, é o famoso humor do norte?! Vou ter que reconhecer que é dos bons! Eu quase acreditei que tinha uma mensagem séria para meu senhor, mas então ouço não apenas uma profecia de derrota inevitável para nós, mas também uma promessa de misericórdia de sua parte! Acho que preciso mesmo dar um fim nisso! – A lâmina da faca agora estava se movendo.
- Pare! Eu não estou contando piadas! – A seriedade súbita que agora havia na voz do rei prendeu a atenção do general. – Quer falar a sério? Então se prepare para a verdade que irá revirar essa sua pobre mente desvairada! Eu estou poupando sua vida e de seus homens e ainda enviando essa minha promessa de futura paz para seus civis ao seu rei, junto com meus votos de respeito por ele e agradecimentos, pelo simples fato de que hoje ele salvou minha vida!
O rosto do general empalideceu.
– O que disse?!
– É isso mesmo que ouviu! Acha que meu servo que iria me trair decidiu trair a ti?! Se ele tivesse sido leal a mim, acha que sua cabeça estaria separada de seu corpo?!
Danher, horrorizado, acompanhou a trajetória daquela cabeça que o Rei lançara na direção dele. Quando ela caiu perto das patas de seu cavalo estava virada para cima, e ele constatou que ela pertencera aquele que colocaria para funcionar o plano que ele desejava ter executado hoje.
- Esse é o tratamento que dou aos traidores, não aos meus servos leais. Faltou pouco para seu plano funcionar hoje. Se não fosse esse outro homem, servo de seu rei, agora você estaria regozijando-se nos destroços de meu acampamento, inebriando-se no sangue de meus homens.
Um cavaleiro da comitiva do senhor do norte deixou sua posição e tirou sua capa. Uma pedra de catapulta caindo diretamente no general nem chegaria perto de causar a sensação esmagadora que ele sentia agora. Não tinha como ele não reconhecer ali o mensageiro pessoal de seu próprio Rei.
Nada mais fazia sentido! Ele sabia que se aquele mensageiro ali estava era apenas porque seu senhor ordenada e nenhuma outra razão sequer. Mas porque o mais interessado no sucesso de seu plano seria justamente quem o sabotaria?! Que motivo poderia levar um sábio e nobre rei a trair seu próprio povo dessa forma?
- Agora vá! O senhor está num estado lastimável! Espero que consiga vislumbrar, ao menos, como me senti vinte anos atrás quando tu conduziste suas tropas sem qualquer aviso sobre minha terra, arrasando tudo em seu caminho, sem eu ter qualquer idéia do porque daquilo!
Mas as palavras do rei agora mal eram ouvidas pelo general. Ele estava aturdido, despencando num abismo de perguntas e sentindo dentro de si todo o caos que há poucas horas pretendia causar no inimigo. Rysar, o Rei, dirigiu-se então aos demais soldados do sul, já que via que era inútil agora falar com o general.
- Senhores cavaleiros do Reino das Ilhas do Sul, vosso próprio rei mandou essa carta regida por ele mesmo a mim, pedindo que eu a desse ao responsável por sua companhia. Quem a assumirá, agora que seu general está incapacitado, pelo visto?
Um jovem oficial se adiantou e o rei lhe entregou o envelope.
– Ai está – continuou o Rysar – a ordem expressa de seu senhor de não ferirem nem aplicarem qualquer maltrato a este mensageiro. Ele deve ser escoltado em segurança até o rei. E ele ainda declara que esse mensageiro de forma alguma é um traidor ou criminoso. Confirma que ele agiu sob ordens expressas de seu soberano e por isso deve ter todos seus direitos respeitados. Oficial, confirme agora para seus homens o que eu digo!
- Sim, homens – falou de modo hesitante o cavaleiro aos demais soldados sulistas – é exatamente o que está escrito aqui. Confirmo as ordens e assumo o compromisso de obedecer ao desejo do rei.
- Partam agora, e aproveitem bem o tempo que terão, pois quando nos encontrarmos novamente na batalha daqui a alguns dias duvido que sairão com vida a menos que sejam sensatos e se rendam. Boa viagem, homens do Sul! – Bradou o Rei Urso do Norte para a comitiva do sul, que sem esboçar resposta apanhou o general e o mensageiro e partiu depressa e em segurança.
- Hipócrita!! – bradou novamente o general para o rei – Como ousa justificar assim sua atitude? Que honra esse maldito urso selvagem do norte merecia? Acaso acha que eu não me lembro do que você mesmo fez, meu rei, anos atrás na sua guerra contra o povo do deserto do leste? Lembra-se disso?!
Sim, o rei lembrava-se muito bem. Não era uma lembrança que figurava entre as suas melhores, apesar de não fazer parte do grupo das que eram decididamente vergonhosas. Mas vergonhosa ou não, era uma lembrança incomoda hoje. Ele se surpreendeu com o fato de que ela uma boa lembrança até um tempo atrás. Na verdade, foi uma boa lembrança até o dia que seu filho nasceu. Daí em diante ele passou a tentar se esquecer disso.
O general falava do ultimo capítulo da guerra contra um invasor que vinha do Grande Deserto do Leste. Era frequente que fosse atormentados pelos guerrilheiros montados daquela terra, mas dessa vez tiveram que lidar com um exército deles, fortes e bem equipados. Os orientais estavam recuando após sofrerem uma grande derrota nas mãos do exército do sul comandado pelo próprio Rei – um guerreiro vigoroso naqueles dias distantes. A esperança do povo do deserto derrotado era conseguir voltar para sua terra, o deserto imenso de grandes rochedos labirínticos, intransponível para quem não conhecia seus segredos. Estavam a apenas um dia de cavalgada de seu objetivo e tudo indicava que conseguiriam atingi-lo. Tinham fortificado um acampamento numa passagem estreita entre as montanhas. Não havia tempo de contornar toda a cordilheira para atacá-los, e seria muito difícil derrotá-los forçando a passagem pela paliçada do acampamento.
Na verdade, o problema nem era se conseguiriam vencer ou não. Eles tinham a vantagem. Mas o incomodo fato é que os orientais tinham muito menos apego à vida do que os demais povos. Com toda a certeza uma centena de guerreiros do deserto se ofereceria para manter a resistência necessária na cerca de defesa daquele estreito, sacrificando suas vidas para seu senhor e a maioria do exército fugitivo escapasse.
O rei tinha que fazer o chefe oriental sair de seu reduto para ter alguma esperança de vencê-lo por completo. E ele sabia muito bem que precisava destruir todos ali, antes que eles voltassem com um continente muitas vezes maior. Não era uma boa hora para uma grande guerra por vários motivos. Na verdade nunca se é uma boa hora para isso, mas aquela era especialmente ruim, com os piratas dos mares escuros causando todo tipo de estragos nas ilhas e na região costeira. Mais da metade da força terrestre e toda a marinha do sul estavam empenhados na campanha contra eles e não podiam parar e correr para o leste e enfrentar os terríveis e ágeis arqueiros a cavalo e as cimitarras dos habitantes do deserto.
E então, sem muitas opções, o rei tomou a única decisão que achava que podia resolver tudo: ordenou que um grupo de arqueiros de elite de sua guarda pessoal, que felizmente levara junto, se esgueirasse sorrateiramente até as defesas inimigas e atirassem com a precisão que lhes dava merecida fama contra dois alvos, apenas dois...
Seus soldados tinham uma reputação de infalibilidade deveras merecida. O plano funcionara. A parede de estacas caiu ao chão e todo o reduzido numero de guerreiros orientais vinha correndo num ataque encolerizado; o líder à frente com ódio faiscando nos olhos e soltando rugidos carregados de raiva e de dor.
A proporção era de cinco sulistas para cada oriental, e o posicionamento dos soldados do rei era perfeito, enquanto os bárbaros corriam sem ordem. As cimitarras chocaram-se contra uma parece de escudos quase sem causar danos, e então duas saraivadas de flechas varreram o centro de suas forças. Sem apoio desse centro, a linha de frente oscilou e tentou recuar, e então a parede de escudos se abriu e fileiras de lanceiros portando suas varas de oito metros atacaram correndo e a vanguarda sucumbiu diante dessa onda de ferro. Enquanto isso a cavalaria, posicionada na elevação paralela ao que era a paliçada, fez apenas um ataque e exterminou completamente a retaguarda que tentava fugir. Não sobrou um guerreiro vivo sequer e as baixas no exército do sul não chegaram a uma centena.
Claro que a batalha estava perdida para as tropas do leste desde o primeiro movimento e o líder deles sabia disso perfeitamente. Mas todo seu conhecimento de estratégia desaparecera quando ele contemplou sua esposa e seu filho de doze anos perfurados pelas precisas flechas atiradas pelos arqueiros de elite de seu inimigo. A raiva o dominou ao observar sua família ali, jazendo sem vida aos seus pés.
Quando o acesso de ira passou e o permitiu pensar claramente de novo já era tarde, pois o ataque frustrado já acabara e a espada do rei do sul estava tirando sua vida naquele momento.
Sim, ele se lembrava. Definitivamente não era sua melhor lembrança. O general sabia que ele tivera frequentemente pesadelos depois de se tornar pai. Sabia que por muitos meses dormiu mal após o nascimento de seu herdeiro. Depois de muito esforço, o problema passara, mas apenas para voltar pior quando o príncipe completou doze anos. Dessa vez, o rei ao dormir via seu filho sendo morto nessa mesma emboscada, sem vida no chão, com uma flecha negra na garganta. O assunto tinha se tornado uma espécie de tabu na corte. O fato de Danher invocar isso agora frisava ainda mais gravidade de seus sentimentos naquele dia.
- Não é a mesma coisa!! – Agora era o rei que gritava, irado. O assunto ficava mais e mais perturbador, era a hora de conter esse fluxo de animosidades. – Aquele velho líder de guerreiros do norte um impiedoso maldito, mereceu o que teve. Ele saqueava, matava e estuprava todas as vilas que descobria e isso era apenas o começo do que podia ter feito! Não me arrependo de ter matado todos eles, até o ultimo!
- E por acaso agora estamos muito melhor, não? Quantas vezes na sua vida você correu um risco maior do que perder algumas aldeias de fronteira, ou uma cidade ou fortaleza, no máximo? Quando em sua vida você correu o risco de perder seu reino inteiro, de ver seu exército morto, destruído, até não restar um soldado?
- Não é isso!
- E o que é, então?
- Honra! Apenas isso. O inimigo de hoje está em guerra, sim. Quer tudo que temos. Mas ele ainda assim é nobre!
- O que?! Como ousa blasfemar dessa forma?! Bárbaros malditos é o que eles são! Insultaste a palavra “nobre” ao usá-la para com eles!!
- Danher, meu caro amigo... ainda não acordou? – O tom calmo, de alguém cansado, surpreendeu e captou novamente a atenção do general.
- Será que três enormes derrotas para esses seus “bárbaros malditos” que sofremos não significam nada para você? Foi-se o tempo que éramos, de fato, superiores! Os últimos resultados devem nos deixar felizes se permitirem que vejamos a nós mesmos pelo menos como iguais a eles. Se já estivermos num nível abaixo não irei me surpreender.
- Eu admito que eles nos superaram no campo de batalha. Mas ao contrário deles, nossa cultura não se resume às armas – retaliou o general.
- Sim, eu sei. Disse o que disse porque reconheço que não perdemos para eles apenas nas armas agora. Eu sei mais sobre eles do que você, pelo que vejo agora. Na verdade, sei mais “dele” do que você. Passei a respeitar aquele rei, meu caro amigo. Ele provou sua honra.
- Delírio!! Não podia esperar ao menos mais quinze anos para começar a caducar, meu rei?! Vou embora daqui. Isso tudo é demais para mim!
- Não! Ouça-me até o fim. Depois de ouvir, ficarei feliz em entregar minha vida em suas mãos se ainda me considerar um traidor ou um caduco.
- Pois bem, então fale!
- Sabes muito bem que há duas semanas perdemos mais uma cidade para as tropas do norte. Não estavas aqui, pois tinha ido recrutar mais homens nas regiões costeiras.
- Como eu poderia me esquecer?! Perdemos mil bons homens naquela cidade. Maldita a hora que parti para a costa. Quem sabe poderia ter quebrado aquele cerco!
- Não seja tolo! Só poderia ter feito algo de útil se tivesse dez mil homens a mais do que tinha, e se não me engano foi por isso mesmo que foi fazer o recrutamento, pela falta de soldados pra realizar grandes coisas. Não adianta se culpar pelo que passou! Voltando ao assunto. O que não sabe, Danher, é que, exceto durante o tumulto inevitável que ocorreu quando o exército do norte assaltava a muralha, nenhum, absolutamente nenhum, civil da cidade foi morto! Depois que a ocupação foi consolidada apenas pereceram pessoas que ainda empunhavam armas e tentaram atacar os soldados do rei do norte. E mesmo assim foram poucas, porque a ordem de Rysar foi que só usassem força letal em ultimo caso. A maioria dos atacantes foi capturada e presa. E ainda teve mais: na cidade havia poucas provisões por causa do sitio. Na verdade, só havia comida para mais três dias para o povo. Então o rei forneceu carroças e liberou toda a população da cidade, mandando-os de volta para nossas terras, e ainda acrescentou carregamentos de comida para mais dois dias de seu próprio estoque.
Parou um pouco para deixar o general absorver a informação. Era evidente que ele ainda resistia à ideia. Ele era um homem enérgico e de gênio forte. Raramente mudava sua primeira impressão. Mas era igualmente óbvio que não conseguia ficar apático diante daquele relato de generosidade.
- Uma boa ação, de fato. Mas uma boa ação não é prova que alguém tem bom caráter!
- Não, de fato não. Se fosse apenas isso eu não teria intervindo, e seu plano já o teria matado. Mas o que me impressionou foi algo muito maior. Passados quatro dias da chegada do povo da cidade aqui na capital, fui informado que um comboio com bandeiras do reino do norte se diria para cá. Temi o pior e senti medo de uma invasão imediata, confesso. Mas logo novos batedores informaram noticias melhores. A comitiva que se aproximava era pequena, no máximo cem cavaleiros, e vinham com bandeiras brancas. Avançavam lentamente porque uma grande carroça e vários bois e outros carregamentos eram trazidos por eles. Mas a maior surpresa ainda estava por vir. Novos relatos de batedores relataram que o próprio Rysar vinha à frente.
- Em pessoa?! O que ele queria aqui, vindo para a capital? Coisa boa não podia ser.
O Rei sorriu para si mesmo
- Não era mesmo uma coisa boa. Foi algo extraordinário. Antes da chegada dele, preparei minha guarda pessoal e fui ao encontro dele, também de bandeiras brancas. “Imaginei que não me deixaria entrar em sua cidade, não o culpo por suspeitar de uma tentativa de espionagem de minha parte. E eu olharia atentamente, mas por interesse em ver pessoalmente as fortalezas que protagonizaram a fantástica Guerra das Ilhas, uma de minhas histórias favoritas”, ele me disse. Respondi a ele que não me pareceu em momento algum disposto a considerar um tratado de paz, já que pelo visto deseja nossa aniquilação. Então tirando isso, não restam muitas opções, pois só se houvesse paz ele poderia realizar essa viagem turística. “Correto, não desejo tratado algum mesmo. Vim aqui somente porque tenho honra e respeito pela vida”, explicou ele. Nesse momento, agradeci pela liberdade e assistência que havia concedido ao povo de minha cidade capturada. E então ele me disse que foi isso que o trouxe até ali. Vou repetir para ti do modo mais fiel possível as palavras que então ele me disse.
“Senhor Rei do Sul, eu sou realmente seu inimigo. Vim até essa terra para trazer a guerra e a vingança pelo que fizeram, vocês e seus aliados que estão também sendo subjugados, a meu jovem reino e meu povo no passado. Mas a mesma honra que me obriga a buscar vingança me obriga agora a estar aqui pacificamente com o senhor. E a razão é essa.”
Ele deu uma ordem, e de uma carroça aparentemente confortável saiu uma família. Uma velha senhora e um menino de aparentemente seis anos saíram primeiro, e logo depois vieram outras três donzelas. Eram belas, muito belas. E claramente todos ali eram de nosso povo. Além de absolutamente desconhecer o propósito de tudo aquilo, estava espantado com a expressão de tristeza presente no semblante de todos, especialmente das jovens donzelas. Para minha surpresa, o próprio Rei desceu de seu cavalo e ajudou-as a sair da carroça. A expressão da família suavizou quando Rysar pousou seus olhos que adquiriram naquele momento uma expressão bondosa – algo inesperado para mim, que até ali estava tão entrincheirado em preconceitos como você está agora. Trocaram algumas palavras e então os cinco fizeram uma longa reverência a ele e pediram minha permissão para se dirigir para a cidade, que certamente concedi. Indaguei, então, o significado de tudo aquilo, e esta foi a resposta que obtive:
“Após despachar os antigos moradores da cidade, senhor Rei das Ilhas, iniciei imediatamente meus projetos para transformar minha nova conquista numa base militar, como pretendia. Mas o desenho da cidade estava atrapalhando, então decidi demolir uma boa parte dela. Ordenei que meus servos revistassem cuidadosamente todas as casas que seriam derrubadas, para averiguar se nada de útil pereceria com elas. Foi assim que eles descobriram um cativeiro. Essa família estava presa na dispensa do que havia sido uma taverna da cidade, pertencente a essa família. A senhora e a criança, neto dela, estavam confinados num pequeno quarto. No que fora um jardim descobrimos uma sepultura recente. Mandei abrirem-na e a senhora reconheceu ali seu falecido esposo, que ela foi assassinado quando tentou desesperadamente defender a família. Mas o pior não foi isso. Em outro local encontrei pessoalmente a pior parte de tudo. Essas belas jovens estavam presas em um dos quartos, amarradas numa grande cama, e era dolorosamente evidente o quanto tinham sido vitimas de abusos.”
Estremeci diante das informações. Depois de uma pequena pausa e um gole de água, ele continuou:
“Libertamos a todos e então aguardamos na casa a volta dos criminosos. Poucos no exército sabiam dos planos de demolir as casas. Não tinha porque os homens responsáveis por aquela monstruosidade crerem que seus planos tinham sido revelados. Não demorou muito. Cinco de meus soldados adentraram o recinto e já estavam se preparando para cometer mais hediondos crimes, que eles chamavam de diversão. Pessoalmente ataquei esses malditos e meus soldados terminaram o trabalho. Não sei se sabe, mas estupro e assassinato de civis desarmados são crimes tão graves para mim como alta traição. Pena máxima. Todos meus soldados sabem das consequências que podem esperar se forem pegos praticando tais atos. Felizmente nenhuma outra vez tive relato de coisas do gênero. Nada como ser honesto com uma lei rigorosa para infundir respeito. Todos sabem que todas as leis são cumpridas, então seguramente não desejam desafiar essa, em particular. Aqui estão os criminosos, que já receberam uma parte da punição que merecem.”
“Na realidade, hoje nem é mais questão de leis e castigos. Estupros e coisas similares já se tornaram abjetos para meu povo, e isso não é de hoje. Ficaria muito surpreso se eu te dissesse que meus homens enlouqueceram, exigindo que os cinco criminosos fossem entregues a eles? Se eu tivesse feito isso, não teria sido possível juntar pedaços suficientes para ao menos fazer um enterro ou cremação. Deu um trabalho enorme acalmar os soldados, e desconfio que só se contiveram por estar diante de seu próprio Rei. Duvido que qualquer outro oficial poderia pará-los.”
Dessa vez fiquei de fato impressionado. Outra ordem dele e mais uma carroça – esta completamente desconfortável – foi aberta. Na verdade, assemelhava-se mais a uma jaula de animais. De lá saíram cinco homens que inspirariam profunda pena, se não fosse conhecido o porquê de estarem ali. Vi o que o Rei quis dizer com severidade na lei. Os homens estavam nus, e nenhum deles possuía mais testículos. Tinham sido decepados com machados, como fui informado, e imediatamente as feridas causadas foram fechadas com ferro saindo da fornalha do ferreiro. Quase senti a dor em mim mesmo ao imaginar esses homens, presos e imobilizados, terem seus membros cortados e a pele fechada a fogo. Notei também que eles já tinham sido surrados e também não possuíam mais dentes e restava-lhes somente um olho saudável, pois o outro fora igualmente cegado com ferro quente. Mas, devido ao contexto, isso parecia algo quase confortável.
“Agora eu quero entregar esses criminosos para você. O crime foi cometido contra SEU povo. Você possui o direito de aplicar a punição que achar que homens assim merecem. Infelizmente eles estavam sob meu comando, e gostando ou não, preciso me responsabilizar por seus atos, já que esses homens monstruosos não estariam ali, fazendo o que fizeram, se eu não os tivesse trazido comigo. Gostaria de poder reverter o mau que fizeram àquelas mulheres e ao falecido e valente pai delas. Mas não posso. Nem posso dar uma compensação justa por tamanha violência, se é que existe algo assim. Entreguei a elas minha própria espada e ofereci a oportunidade de executarem elas próprias a vingança a qual tinham direito ou ao menos prolatarem a sentença, mas essas jovens possuem um coração manso e generoso. Declararam não serem capazes de matar alguém a sangue frio. Como eu disse, não posso concertar o dano causado. Mas como sinal de pesar pelo ocorrido, quero que essa família aceite esses meus presentes. No meio de uma guerra não disponho de grandes tesouros, mas era o melhor que podia fazer no momento atual.”
Então ele pediu para meus soldados conduzirem outra carroça, onde havia alguma quantidade de ouro, belos casacos de pele, o traje mais elegante e tradicional nas terras do norte, e alguns jarros com uma bebida típica de seu país também, que raras pessoas de outras terras provaram, chamada hidromel. Fora isso, o boi e as duas vacas que puxavam a carroça faziam parte do presente.
A família agradeceu, com novas reverências, e eu e minha escolta nos unimos a eles. Antes de partir, ele declarou:
“Senhor Rei, eu peço que aceite minha palavra e acredite que fiz isso hoje, bem como minha atitude generosa não muito comum para com os habitantes da cidade, motivado apenas pela honra cuja posse considero imprescindível, tanto para mim como para meus oficiais e soldados. Eu vim aqui para destruir e matar, de fato. Mas minha guerra é contra seus soldados e suas muralhas, seus navios e tudo mais que tiver para resistir a mim. Não vim lutar contra seus idosos, crianças e mulheres. Não vim também para roubar os meios de vida dessas pessoas. Eu desejo vencer a todos vocês, e pelo visto vou indo bem com isso, mas não pretendo assassinar todo seu povo depois da conquista! Não preciso nem quero um deserto. Se eu realmente vencer esse povo passará a ser meu também. Então acredite em mim e saiba que se por acaso tiver provas que soldados meus cometeram novamente atos como esse, basta me enviar um emissário informando isso e dou minha palavra que a justiça será feita, mesmo que se trate de um de meus generais ou mesmo de meu irmão.”
Respondi que achava difícil ouvir falar de novos casos, depois de hoje. Um sentimento de respeito instalou-se entre nós enquanto nos saudávamos na despedida.
Essa é a história, meu amigo e general. Se esse rei estiver contra meu exército em campo e nos encontrarmos na batalha, irei lutar até a morte contra ele, se for necessário o abaterei pessoalmente. Mas depois desse dia, aquele que o matar de outra forma que não seja essa, a legítima, em meu nome ou não, passará a ser também meu inimigo!
Não havia palavras para descrever a mistura de surpresa, respeito e arrependimento no semblante do general. Era a segunda vez naquele dia que se encontrava atordoado e vendo todas suas crenças e certezas serem reviradas em apenas um momento. Desajeitado, ajoelhou-se pedindo perdão ao rei por suas palavras e ações agressivas, e apenas se retirou quando recebeu seu perdão.
E nem uma única vez mais pensou em golpes furtivos contra o Rei do Norte. Apenas continuou treinando para a inevitável batalha que chegaria em alguns dias.