A Hipertensão do Pacheco
A primeira vez que ouvi falar em hipertensão arterial foi na copa-cozinha da casa do Professor Pacheco. Sua mulher me convidava para almoçar, mas perguntava em tom de advertência – será que você vai gostar? A comida é feita sem sal porque o Pacheco tem Hipertensão e não pode comer comida com sal! Claro que eu não aceitava. Explico: Minha mãe me colocou em regime de semi-internato no curso elementar; ela trabalhava diariamente numa repartição do Ministério da Justiça; era enfermeira da Ana Nery, como fazia questão de se identificar. Seria mais seguro ficar na escola do que ficar fazendo desatinos em casa ou na rua. Habitualmente, eu saia da escola ao meio-dia, ia para casa almoçar e voltava, com atraso, para o segundo turno que começava às 13 horas. Daí, Dona Junilha oferecer-me almoço. Apesar da idade, eu tinha autodeterminação e preferia ir almoçar em casa e ficar por lá. Para uma escola de pobre, tinha até uma boa fama – Ginásio Lima Torres, que se orgulhava de ter boa equipe de professores. Seu Veloso, professor de tudo! Bom professor quando não bebia, mas até agressivo quando estava caneado! Eu gostava muito de Dona Eulália; uma loura de lábios pintados de vermelho, unhas grandes e manicuradas, também, com esmalte vermelho brilhante. Era enérgica e de voz estridente, sempre com uma régua comprida para bater na cabeça de alunos inquietos. Tinha o Seu José, professor relativamente jovem, de cabelos ondulados, face peneirada pela catapora. Gostava de camisas listradas de tons verdes; ensinava bem. Finalmente o professor Armênio, que dava aulas de português e francês. Calçava sempre sapatos furados e camisas puídas.
Freqüentei a escola inicialmente na rua Dona Joaquina e depois fui para o Lima Torres em Pilares.Não sei bem o que aprendi por lá! Pelo menos, podíamos ler e escrever bem, saber alguma coisa de história e geografia, o que afinal de contas era o papel do curso elementar, que tinha a duração de 5 anos. Foi a primeira consciência das desigualdades sociais. Mesmo no subúrbio, em que de um modo geral a comunidade era de trabalhadores, o estilo de vida era ditado pela renda familiar e o número de filhos. Eram abastados o José Maria filho do dono do posto de gasolina do bairro de Pilares, o Leovegildo, com pai advogado, que recebia sempre na hora de recreio o avô, que forrava com toalha o que quer que fosse, servindo-lhe sucos trazidos em garrafa térmica, pão, presunto, queijo, maçã ou pêra - diante do espanto daqueles que traziam pão com banana ou pão com manteiga e açúcar. Pão com banana era cantado em música popular, tinha prestígio – “pão com banana é a nossa refeição, neris de arroz, nerusca de feijão, e quando não há grana pra banana a gente come sanduíche de pão com pão”. A hora do recreio era uma festa! Certo dia, José Maria me falava das excelências de um arroz de camarão que a mãe fazia e me convidaria quando entrasse no cardápio; coisa que nunca aconteceu. Seu Pacheco era um bom homem – Joaquim José de Oliveira Pacheco, nome que me soava como se fosse o mais importante diretor de escola do país. Infelizmente, não poderia aceitar almoçar e começar a fazer dieta para hipertensão aos nove e dez anos de idade.
A Cia. Light fornecia uma cartela de passes para estudantes a preço baixo, mas eu preferia negociar os passes e ir para casa a pé; era bem melhor comer uma língua de sogra enfeitada com açúcar cristal ou mesmo trocar por apetitosos jenipapos, onde três valiam um passe. De fato, a distância da casa à escola não era grande e podíamos cobri-la em vinte minutos.
Muitas vezes em que ia almoçar em casa, em vez de retornar, ia para o trabalho de minha mãe, ficava um pouco com ela e até a ajudava fazendo anotações nos livros. Se o país fosse sério, ainda hoje deveriam estar guardados os livros, onde eu anotava os nomes dos pacientes e os resultados de exames especiais, onde eu apenas relatava para as estatísticas governamentais – positivo ou negativo. Aos sete e oito anos escrevia bem e tinha letra redonda. Depois, saia para passear pela Praia das Virtudes, correndo pelo enrocamento e sem medo de cair no mar, que me era motivo de fascínio. Achava um encantamento assistir a partida e chegada de hidroaviões, que tinham como ponto final uma estação, que depois se transformou em Clube da Aeronáutica.