Holocausto

O bode escolhido para ser ofertado em sacrifício, segundo as tradições da seita, balia inquieto pela trilha do monte, conduzido por um membro da comunidade. O sacerdote havia pedido um animal vigoroso, saudável, de chifres robustos e face barbada, o melhor da caprinocultura disponível. Trouxeram-lhe um desses animais nascidos de seleção artificial, aperfeiçoado geneticamente, melhorando atributos como as proteínas da carne e o ciclo de vida.

Era quase meia-noite e ouvia-se o que podia ser descrito como um frenesi sonoro descendo pelo topo do outeiro. Não se resumia somente a vibrações bizarras e violentas na acústica, era a combinação de ruídos diversos para criar um som maciço, rápido, agressivo, tenso, histérico e brutal. O fenômeno parecia vir das ruínas de uma capela secular, jazida na beira da colina. O Alto da Reza – nome pelo qual já foi conhecida um dia – a carcaça de um templo de adoração que jamais renasceu.

Moradores locais supersticiosos diriam que o estranho som tratava-se dos urros de alguma fera nefasta das lendas, talvez um tipo bem perturbador de alucinação auditiva ou mesmo um maestro de sádicos psicopatas. Mas o que se escutava ia longe de um som caótico e incerto, pelo contrário: ruídos ritmados e harmônicos, uma construção complexa de notas musicais e as sensações que estas causavam no cérebro humano, tal uma melodia virtuosa.

Puxando o bode pela ladeira havia um headbanger de musculatura ursina, ansioso para cumprir o destino do animal. Aparentava uns quarenta e poucos anos, mas poderia ser o visual “old school” que o aspirava à velhice. Cabelos longos, fantasmagoricamente ressecados, e barba acumulada, assemelhando o sujeito a um bárbaro vinking. A camiseta escura do Black Sabbath indicava suas tendências musicais pouco cristãs, e a calça jeans desfiada o conferia um aspecto anarquista. Equipado com uma moda tão exótica, estava a caminho da casa de Deus.

Um clarão brilhava no alto do relevo. A capela, em vez de um jardim, cultivava um pequeno terreno onde antigamente enterravam-se os falecidos, enfeitado com humildes túmulos. A escolha do lugar para o rito foi influência das extintas sociedades celtas – povo ancestral do noroeste europeu, conhecido por seus fortes laços com a natureza. A cultura céltica acreditava na continuidade da vida após a morte, vivendo em outro mundo além das paredes divisórias da realidade. Consequentemente, os mortos carregavam as respostas para os mistérios do Universo.

Uma grande fogueira queimava no meio do santuário de descanso. Homens e mulheres, das mais variadas idades e castas, dançavam uma coreografia pagã no que parecia ser uma espécie de celebração. Remexiam suas cabeças para cima e para baixo ao ritmo da música, como bodes defendendo o território – o movimento ficava mais estilizado quando o sujeito tinha os cabelos crescidos. Braços na multidão erguiam-se para fazer o gesto de malocchio – popularmente, o sinal dos chifres do Diabo, detalhe que dava a ideia de um culto. Os mais inspirados tocavam instrumentos imaginários, uma ágil e flexível “air guitar” ou batidas mortais numa bateria invisível.

Vestiam roupas predominantemente escuras, camisetas ou coletes de couro estampando bandas como Slayer, Metallica, Judas Priest, Motörhead, Iron Maiden, Possessed, Celtic Frost, Venom, Cannibal Corpse, Mercyful Fate, Eternal Lord, Burzum, Mayhem, entre outras. Usavam braceletes negros cobertos por tachas de níquel e correntes presas na cintura, muitas vezes laçada num cinto de pirâmide reluzente. Nos pés, tênis de cano alto ou botas das forças armadas. No pescoço, gargantilhas que mais sugeriam coleiras. Na pele, piercings hereges e tatuagens de seres da mitologia nórdica e diversas culturas pagãs, brasões de bandas, versos polêmicos e gritos de guerra. Naquela aglomeração podiam-se encontrar estudantes, médicos, advogados, juízes, deputados, arquitetos, empresários, atores, policiais, padres – pessoas querendo desesperadamente escapar da repetição miserável que os perseguia dia após dia.

Numa cúpula no coração do cemitério, um grupo musical mórbido e grosseiramente trajado apresentava uma sinfonia drástica, possuída por uma fúria ameaçadora e um caráter radicalista. Sonoridade de tom fúnebre, cru e incisivo, carregado de uma estridente aura melancólica que sangrava em cada acorde ressoado. Porém, a composição era igualmente banhada por uma graça teatral indescritível, beirando o místico, um épico grandioso narrado através dos poderosos instrumentos, chegando a um nível técnico sublime por parte dos habilidosos e avançados músicos. A melodia penetrava nos ouvidos e poros dos headbangers, revirando suas entranhas e despertando algo até então dormente nas galerias mentais daqueles meros humanos: o mais básico e primordial dos instintos – a sede de libertação, o máximo de proveito do livre-arbítrio já alcançado.

Bebidas alcoólicas e drogas de euforia mantinham o sangue pulsando e as energias conservadas. Cerveja, vodka, vinho, uísque e hidromel nas dosagens certas davam potência para toda uma noite. Churrasqueiras distribuíam carne de porco, sagrada entre os celtas, comprada de matadouros fiscalizados para revigorar a alma daqueles guerreiros. Era uma orgia profana anual, sempre realizada no começo de agosto para bater com o ritual druida da fertilidade, saindo um pouco da monotonia fechada dos bares underground para um evento mais visceral e fresco.

No palco, os seis bardos brindavam os ouvintes com uma ópera pura: baixista, baterista, guitarrista base, guitarrista solo, tecladista e vocalista unidos para reinventar as escalas pentatônicas. O casal de guitarras elétricas – armadas com amplificadores, maquiadas com pedais de distorção e prontas para o abate – guinchavam como demônios da perdição derradeira. Os riffs atacavam com uma poderosa onda sônica, fluidamente alucinógena e facilmente transmissível, criando uma atmosfera apocalíptica e viciante. Controlando a guerra de notas musicais estava o trítono – diabolus in musica, como era chamado pela Igreja Católica medieval – um intervalo melódico alojado entre duas notas com três tons inteiros, dando uma impressão de perigo e incitando a produção de adrenalina. Tal dissonância foi proibida na Idade Média, pois se acreditava que o trítono invocava bestas nascidas do inferno.

O potente arsenal de quatro cordas do baixo, de efeito gravíssimo, servia como a ignição de cada disparo do riff, engordando o corpo do som ao extremo. A velocidade frenética da bateria desencadeava baques convulsivos, golpes de grande força e precisão que lembravam a rajada de tiros duma metralhadora. O teclado era a essência elementar para infectar a música com a melancolia e o sentimento póstumo, sendo o gatilho da influência gótica.

O guitarrista base rugia ferozmente no microfone, ecoando sua voz bestial e desumana, rasgando palavras e recitando blasfêmias enquanto dedilhava um ecstasy de notas pela sua ferramenta destrutiva. Seu rosto fora pintado de modo a lembrar um cadáver em decomposição. Mesmo com todo o poder que aquele homem emanava, ele não era o líder: apenas o cantor secundário. Uma bela jovem regurgitou seu vocal satânico sobre o público, como se o próprio anjo caído falasse através dela – o ápice da voz gutural que registrou a marca da banda Risen Dodo.

A letra pregava a contracultura, uma revolução do atual estilo de vida, suprimindo os moldes cristãos para implementar um sociedade de livres-pensadores. Temas recorrentes eram muito contextualizados naquela cena musical, assim como críticas sociais, viagens filosóficas, sexualidade, revolta, morte, ocultismo, niilismo, paganismo e além. Havia chegado o ato crucial da música: o desempenho individual do calibre da guitarra. Um solo psicodélico iniciou-se. Naquele instante, cada um dos indivíduos presentes na cerimônia, com seus batimentos cardíacos estourados e nervos super eletrificados, sentiam-se como se fossem deuses.

Os sinos da capela soaram, avisando a chegada da meia-noite. A festa cessou em um estalo, permitindo ao silêncio apoderar-se do ambiente. O bode já estava aprontado no altar de pedras da cúpula, cercado por castiçais, velas e fogo – era hora do sacrifício. O sacerdote subiu ao palco, amedrontando o animal de fazenda com os enormes chifres taurinos que germinavam da sua máscara cerimonial. Ao contrário da multidão de tecidos sombrios, o administrador do ritual vestia uma batina branca desfiada. As caravanas de headbangers mantinham a atenção em cada movimento do clérigo de oferendas, que acabara de receber um pequeno caldeirão metálico do seu assistente. Apanhou uma grande concha culinária de madeira, banhando o utensílio no caldeirão e retirando uma boa dose do líquido vermelho-escuro guardado ali. Jogou a substância sobre o altar, depois na cabeça do bode. Despejou sob si mesmo e esperou infiltrar-se em sua pele antes de melar o assistente. Jogou na plateia, enlouquecendo-a em berros. Quando esgotou o "suco", pediu para desamarrar a oferenda.

Guiados pelo sacerdote, o bode e a comunidade desceram pela trilha do outeiro, em direção a floresta aos pés do monte. Liberto da corda, o caprino foi espantado para a alta vegetação que cobria a paisagem. Havia sido ofertado para a maior e mais poderosa das deusas: a mãe natureza. Os headbangers reverenciaram o trotar final do bode, pelo menos neste plano existencial.

Um tremor contraiu a terra, logo aumentando de escala e evoluindo para um terremoto cataclísmico. Os membros do culto caíram na euforia, alegres com a repentina catástrofe natural. A floresta se partiu ao meio, como uma boca se abrindo no solo. A recém-formada fenda vulcânica cuspiu uma supernova incandescente de chama e lava – felizmente o sacerdote sabia a distância segura a manter. O gigantesco belzebu emergiu das vísceras do fogo, pisando com seus cascos amaldiçoados sobre a Terra novamente depois de centenas de anos. Provido de uma altura atmosférica, o invocado era maior que o monte. Os espectadores olhavam maravilhados: nunca antes a caridade da mãe natureza havia trazido algo tão mortal e poderoso ao mundo humano. A besta soltou um gruído abominável, verbalmente indescritível, que posteriormente serviria de inspiração a gerações de músicos. Com suas grandes asas excomungadas e chifres do próprio Lúcifer, o monstro só esperava as ordens do sacerdote. O clérigo sentia como se tivesse voltado à infância: as aplicações bélicas daquele demônio eram incalculáveis. Era chegada a hora da contracultura, de destruir os vestígios que não serviriam ao novo mundo. Era chegada a hora da revolução.