Os Sete Trovões
Grande Floresta do Norte
Dentro de uma pequena clareira, no meio da Grande Floresta, se concretiza um importante momento na vida do pequeno Auke. Exatamente depois de completar seus quatorze anos, chegou a hora do seu ritual de passagem para a vida adulta. Neste momento se encontra sozinho, sentado em posição de meditação e aguardando quando será visitado por um dos servos dos deuses, os construtores do mundo. Esses seres são também chamados de Espíritos da Natureza. Todo aquele que pretender se tornar um guerreiro deve receber a benção e selar um pacto com um dos muitos espíritos da floresta, que oferecem ao seu escolhido habilidades relacionadas a um dos quatro elementos da natureza, a água, o ar, o fogo e a terra.
Para os habitantes da Grande Floresta o universo é regido por quatro grandes Entidades celestiais chamadas de Senhores dos Elementos. Cada uma dessas entidades comanda um dos quatro elementos sagrados, água, fogo, ar e terra, que compõem a essência de tudo que existe. Por sua vez os Senhores dos Elementos possuem servos que trabalham mantendo as forças do mundo ativas. Sem eles não teríamos os ventos, os rios, as chuvas, o fogo e a própria terra que nos nutre. São esses servos que se comunicam com os mortais, ensinando, guiando e protegendo.
Além das quatro entidades regentes, os povos da floresta reverenciam a Mãe Terra, que recebe a força dos senhores elementais e as converte em benefício dos seus habitantes, oferecendo alimento e proteção. Por isso os povos da floresta se autodenominam “Discípulos dos Elementos Sagrados” e “Defensores da Mãe Terra”.
Auke já se encontra em estado meditativo há pelo menos três horas e ainda nenhum sinal de algum espírito. Estava ansioso, pois não sabia que tipo de espírito se apresentaria, ou se algum se apresentaria mesmo. Muitos relatos são contados entre as tribos de pessoas que não conseguiram realizar nenhum pacto com os espíritos por não estarem preparadas, ou pior, por não serem dignas.
Auke sabia que devia manter as emoções distantes, mas temia que não fosse escolhido por não ser considerado digno de atenção. Mesmo tendo feito todos os preparativos iniciais: não comer carne de caça durante uma semana, se banhar cinco vezes ao dia passando um apanhado de ervas especiais no corpo, afinar as energias do corpo com as danças rituais e, principalmente, ficar em reclusão por uma semana dentro da floresta, longe de qualquer contato com outras pessoas, vivendo à base de frutas, raízes, água e preces.
Depois das três horas iniciais de meditação, algumas dúvidas já estavam pairando na mente de Auke. Isso era muito mal. A dúvida é uma das armas dos Filhos da Noite para tirar os guerreiros do seu caminho, fazendo-os perderem a fé e a esperança em suas capacidades. Auke procurou afastar a dúvida da sua mente. Respirou profundamente algumas vezes, mantendo os olhos fechados, se concentrou nos elementos à sua volta, o ar, o farfalhar das folhas das árvores, o som dos pássaros ao longe. Estava buscando sintonia com a natureza, como lhe ensinou o mestre Poconé. Ele sempre diz: “A cabeça é um instrumento forte que deve ser guiado com sabedoria, e sabedoria vem quando se escuta o coração. É através dele que escutamos as vozes dos espíritos da floresta, nossos guias. Para isso é necessário nos sintonizarmos com o mundo a nossa volta”.
Auke estava com os pensamentos focados nas palavras do mestre Poconé quando um som de galho se partindo o despertou da sua concentração. Já seria a presença de algum espírito da floresta? Não. A visão que Auke teve disparou seu coração e paralisou suas pernas e braços. Dez metros a sua frente estava uma onça, o grande gato das florestas, com seus olhos poderosos fixados no pequeno guerreiro. Auke sentiu pavor, e quando voltou a sentir seus membros pensou em fugir dali. Só tinha visto onças a distancia em suas caçadas com os mais velhos, nunca tão perto. Dava pra sentir a intenção do grande felino através do seu olhar. Ele poderia atacar a qualquer momento. Auke começou a se erguer devagar, mas uma voz que parecia vir de todos os lados o fez parar.
“A Grande Floresta observa você. Quer ser um escolhido? Prove”.
Auke não sabia de onde vinha aquela voz, mas ela só poderia pertencer aos Espíritos da floresta. Eles o estavam testando, e em sua mente veio a resposta. Ninguém pode ser tornar um verdadeiro defensor da Grande Mãe, um discípulo dos Espíritos, se não vencer o maior dos obstáculos, o Medo. Naquele momento sentiu que precisava encarar seu medo, precisava provar para si que poderia se tornar um guerreiro, e acima de tudo, precisava começar a adquirir forças para trilhar o caminho da sabedoria, a ouvir seu coração. E agora seu coração dizia que a hora para dar o primeiro passo tinha chegado.
Reunindo coragem, Auke fixou os olhos na onça e sentou-se na posição de lotos com as mãos unidas sobre as pernas. Seu coração ainda palpitava acelerado, sua mente ainda pedia pra sair dali o mais rápido possível. Procurou focar os pensamentos nas palavras do mestre Poconé. Auke estava disposto a ouvir seu coração. Parecendo sentir a repentina coragem da criança á sua frente, a onça começou a caminhar em sua direção.
O medo quis mais uma vez tomar a mente de Auke, mas ele manteve-se firme. Vendo o grande gato da floresta caminhar lentamente em sua direção, resolveu fechar os olhos e se concentrar. O pequeno guerreiro pediu proteção aos Espíritos. Passaram-se alguns segundos e a concentração de Auke foi quebrada por um ronronar poderoso que vinha de um metro a sua frente. Cerrando os olhos com força, Auke esperou pelo pior, pois o maior caçador das matas estava a um passo, com suas garras e dentes poderosos. Lágrimas desceram dos seus olhos, mas a voz dos Espíritos falou mais uma vez.
“Enfrente seus medos”.
Auke abriu os olhos e se viu frente a frente com a onça. Ela estava sentada nas patas traseiras olhando-o fixamente. O medo não mais o tomava. Ao olhar nos olhos do animal, Auke conseguia sentir sua força, sua coragem, sua serenidade. O felino não queria lhe fazer mal, nunca quis. Naquele pequeno momento, que pareceu uma eternidade, garoto e onça estavam se comunicando sem palavras, apenas seus corações falavam.
De repente o grande felino deu um poderoso rugido mostrando seus caninos pontiagudos. Logo em seguida deu um salto por cima de Auke e se embrenhou na mata. O jovem guerreiro suspirou e baixou a cabeça um pouco. Era como se uma terrível tensão o deixasse, aliviando seu corpo. Ficou de pé, estava bastante suado, olhou o ambiente, estava tudo tranqüilo. Tranqüilo até demais. Era como se um súbito silêncio fizesse a floresta se calar. Nenhum som de pássaro, até as folhas das árvores não se mexiam. Aquilo era totalmente estranho, anormal. Era como se só ele tivesse vida enquanto que a floresta a sua volta estava paralisada.
De repente uma poderosa lufada de vento atingiu o ambiente fazendo tudo na clareira balançar violentamente. Auke teve que se segurar numa árvore próxima para não ser arrastado. O vento começou a rodar em círculos em sua frente, movendo tudo que tocava, galhos, folhas, areia, pedras. O que se viu depois foi difícil de acreditar. Uma forma humana começou a se formar do redemoinho de coisas que o vento chacoalhava. A forma só era reconhecível porque os resíduos que carregava, folhas, pedras e galhos, tornava isso possível. O ser de vento era realmente grande, devia ter uns quatro metros de altura e não possuía face.
“Eu sou um daqueles que esperava. Você passou no teste inicial e mereceu a minha presença”
A voz que veio daquela criatura era poderosa e gutural. Ao ouvi-la Auke não teve dúvidas. Diante dele estava um dos Servos dos Deuses em sua forma magistral. O momento era indescritível. Os deuses tinham lhe proporcionado a oportunidade de se tornar um defensor da Grande Mãe. Por puro impulso, Auke se ajoelhou diante do Elemental dos ventos.
--- Ó grande mestre, obrigado por atender minhas preces, não sou digno de sua presença!
“Realmente. Na sua atual condição ainda precisa aprender muito a sintonizar as forças da natureza e a afastar as influencias negativas. Mas não vim aqui pelo que você é, mas pelo que se tornará”