O Anjo Obstinado
O Arcanjo Noel andava de um lado para o outro de sua sala, mãos para trás, tinha o olhar contrariado. Chamou seus assessores Rafael e Samuel, que estavam conversando dispersos na sala ao lado. Eles entraram com um semblante muito diferente irradiando paz e tranqüilidade de seus corações.
- Onde esta o Anjo Onório? – disse apressado.
- Provavelmente cumprindo alguma vossas orientações. - Disse instintivamente Samuel que não sabia de seu paradeiro.
- Não estaria ele fazendo aquela reciclagem tão importante que nosso amabilíssimo Noel indicou, depois de sua última intempestiva missão? – perguntou Rafael fazendo uma reverência com a cabeça ao Arcanjo.
- Não me venham com eufemismo! - Noel falava em altos brados, dispensando a fala doce e conciliadora comum a todos seus irmãos de trabalho.
- Aquele Anjo displicente fracassou pela quarta vez consecutiva! Por sua causa tivemos que alterar por duas vezes os planos para a humanidade, adiando por anos, metas que nos foram impostas diretamente do Supremo Governo Celestial. Foi ludibriado infantilmente pelos Anjos Maus concorrentes deixando nossos trabalhos ruírem. Trouxemos uma família inteira de volta, por não ter tido o cuidado de proteger Francisco, que durante sua vida de provas, lhes serviria de arrimo e exemplo. Sabem onde está o coitado? Jazendo com inúmeros ferimentos no nosso hospital. E quanto a Doraci? Que recebeu aqui em cima todas instruções necessárias para trabalhar toda a vida devotadamente em benefício dos carentes e pereceu diante de sua ajuda, abandonando o trabalho para viajar pelo mundo sem destino. Sem contar ainda do trabalho fracassado que realizou ao substituir o Anjo Manoel, nosso companheiro intelectual, que assessorava um brilhante político em início de carreira, que deveria seguir a vida pública, mas que à interferência de Onório, se tornou um escritor vulgar contador de anedotas. Cometeu algumas ingerências, falou o que não devia. E agora sabem o que me pede o Digníssimo Arcanjo Ismael? – Arregalou bem os olhos metendo as mãos no rosto inconformado.
- Que indique aquele Anjo subversivo em uma missão relevante do mais alto sigilo – encarou seus auxiliares num gesto de profunda preocupação.
- O que pensam sobre nosso querido Irmão Onório nossa Psicóloga Isabel? – disse Samuel limpando a garganta depois de escutar pensativo.
- Estou esperando chegar a qualquer momento um parecer de três Anjos psicólogas. Além de Isabel, Raquel e Maribel também foram incumbidas de analisá-lo. Solicitei ainda ao Anjo Joel, nosso melhor numerólogolo, que fizesse um estudo detalhado sobre o nome da origem de nossos infortúnios. Estou me cercando de todas as informações possíveis, para isso até os Anjos Corregedores Natanael e Ezequiel entraram no caso – afirmou um pouco mais calmo o alarmado Arcanjo Noel.
Antes que Rafael emitisse seu parecer, entrava na sala como um furacão a Anjo Psicóloga Isabel, que necessitava falar urgentemente com Noel. Estava tão preocupada que nem percebeu a presença dos Anjos Auxiliares. Falava rápido, atropelava as palavras e os pensamentos, tornando-se incompreensível. O Arcanjo tratou de acalmá-la, a acomodou em uma de suas poltronas, olhando significativamente para seus Assessores. Se um olhar falasse, diria apenas um nome: Onório!
- Minha companheira Isabel – a tratou com um sorriso fraterno – Sempre admirei sua personalidade equilibrada, jamais a vi, neste estado tão alterado. Tenho certeza que deve ser algo muito importante, portando... relaxe. Com calma e paz, poderemos analisar melhor os fatos – disse com um sorriso sincero o Arcanjo.
Ao perceber a presença de Samuel e Rafael, Isabel já mais a vontade, se alegrou e num tom bastante persuasivo encarou os três, afirmando com todas as letras que estava decidida e não voltaria atrás.
- Eu desisto! Não quero mais acompanhar o caso do Anjo Onório. Pois se continuar talvez perca a confiança em tudo aquilo que acredito. Onório é tão convincente que posso até desacreditar no Paraíso, que o que fazemos aqui é chato e monótono. Ele é perigoso. Minha fé esta se esvaindo, e para não abalar o resto que ficou abandono o caso e mais... quero férias. Preciso me reciclar. Acho que preciso de um Psicólogo. – disse desapontada.
Espantados os três se entreolharam estupefatos, e assim permaneceriam diante da cena que se desencadeou em seguida. Raquel e Mirabel receosas, entraram com a permissão de todos e sem mais delongas foram logo ao assunto.
- Venerável Arcanjo Noel – Raquel disse docemente – sabemos do brilhante trabalho que estais realizando aos longo dos séculos. Que o próprio Querubim Gabriel tem no Digníssimo Mestre o mais alto grau de confiança, porém discordamos de nossas funções atuais, pedindo que nos escuse, mas necessitamos de férias prolongadas. Precisamos conhecer novos lugares, ter novos conhecimentos, sentimos que aqui estaremos limitadas... – antes que terminasse Raquel a atropelou e rematou:
- É verdade! Precisamos evoluir, conhecer nossos inimigos, e o mundo que não nos é revelado! – disse quase súplice.
- Isto só pode ser coisa do Onório! Ele está corrompendo a todos. – Faltava respiração à Noel que caiu na poltrona necessitando cuidados.
Enquanto Samuel socorria o desfalecido, Rafael tentava persuadir as Anjos Psicólogas que se mantinham irredutíveis. Noel logo voltou a si, e quase se beliscou para comprovar se aquilo tudo era verdade. E era. Marcou então uma reunião com as Anjos insatisfeitas para mais tarde. Antes deveria falar ainda com Joel, Natanael e Ezequiel.
Todos se retiraram permanecendo apenas o Arcanjo Superior maquinando no silêncio de seu escritório. Não acreditava no que estava acontecendo. Deveria haver alguma maneira de isolar o Anjo Onório, pois os outros Anjos estavam aderindo às suas teorias revolucionárias. Tinha outro problema que era de demover os planos do Arcanjo Ismael. Onório era um problema.
O Anjo Joel, lépido como poucos, pedia agora licença. Trazia um calhamaço, com desenhos, contas complicadíssimas, mapas astrais com sua geometria lógica, tabelas de signos e um pesado dicionário de nomes. Tinha um ar jovial, e com um sorriso bem humorado. Saudou intensamente o Venerando deixando-lhe disponível o trabalho que realizara.
- Meu caro Joel, gostaria de compartilhar todo este bom ânimo. Porém minhas atribuições me tornam carrancudo, caráter dos sisudos. – confessou e mudando de ares rematou – Que boas notícias me traz?
Joel esfregou as mãos ansioso, e começou a discorrer sobre a metodologia de sua pesquisa, explicar as posições dos astros, os cálculos que sem sombra de dúvida o levou a uma conclusão lógica e irrefutável. Para ele, Onório era um nome bastante forte, daqueles que levam a honra acima de qualquer coisa, e estão prontos a defenderem suas idéias com todas as forças de seu intelecto. Tinha ainda como qualidades a lealdade, a sinceridade e um grande senso de justiça. Disse finalizando, que tratava-se de um Anjo de personalidade, e como tal, sujeito aos extremos de afeto. Alguns fatalmente o amariam, outros sentiriam repulsa. Afirmou finalmente:
- Estou muito interessado em conhecer um Anjo tão interessante !
- Acho que você se decepcionaria meu caro, tantas não fossem a quantidade de problemas que este rapaz esta nos arranjando. Mas diga-me mais – Noel correu até a porta para ter a certeza de não haver ninguém ouvindo, trancando-a continuou.
- Há razões para eu achar que Onório seja um Anjo espião. Além de suas atitudes no mínimo polêmicas, não existe sequer qualquer outro membro do nosso Paraíso que não tenha em seu nome o sufixo do céu. – e deu longa lista. Gabriel, Noel, Joel, Natanael ... ... ... - É um controle de qualidade. Qualquer um que ouça nossos nomes já sabe de onde viemos, e o que somos. - Noel então colocou a mão próximo a boca e falou baixinho.
- Onório deve vir de lá ...
- De onde? – Joel perguntou curioso.
- Daquele lugar de pecados!
- Lugar ... de ... pecados...? – arregalou os olhos.
- Do próprio Purgatório! De onde mais viria alguém com um nome como este? – Falou tão alto que colocou a mão na boca, olhando para os lados com um ar culpado.
- Agora entendo... Este foi o motivo, que o Venerável Noel, pediu para que estudasse um novo nome a Onório, mais condizente com nosso Paraíso. - O Numerólogo abriu então o dicionário de nomes, e numa folha bastante rabiscada tinha um projeto, em que começou a justificar o resultado.
- Eis aqui o que procuras Amabilíssimo Noel. – apresentou-lhe o papel.
Noel pegou a folha levantando-se, começou a andar olhando–a com interesse.
Joel começou a explicar. Afirmou que deveria alterar um pouco a composição do nome para dar a Onório uma concepção mais abrangente de onde vive. Deveria estar cercado de todas as qualidades, facilitando assim, uma assimilação mais fácil de nossos ensinamentos. Certamente se tornaria também mais dócil, e receptivo aos nossos trabalhos.
- Mas onde está este nome? – mostrou a folha espalmando a outra mão querendo explicações - Só vejo um monte de rabiscos que não compreendo. Para falar a verdade não entendo patavinas do que estas me falando, diga logo que nome é este!
Joel levantou-se seguro de si, encaminhou-se bem próximo a Noel e olhando bem nos olhos, com um sorriso de satisfação o revelou bem devagar.
- El Onoriel. - disse lacônico.
Noel com a boca semi-aberta o olhou incrédulo. Segurou por instantes o papel que escorregou de seus dedos. Pensou “ esta criatura deve estar zombando de mim”. Respirou fundo, contornou sua mesa, sentando-se a seguir. Joel permaneceu imóvel, sorridente levantando as pestanas esperando a aprovação por seu trabalho. Noel ainda aguardou um instante, escolheu as palavras, esfregava as mãos e tocava dedos em movimentos rápidos. Talvez em outra situação, fosse mais ponderado.
- Caro Joel... por acaso este é o nome de alguma marca de sabão em pó? ou talco para frieiras? ou quem sabe xampu contra caspa ? Você há de concordar comigo, que não é um nome muito comum. Aliás ... nada comum “– levantou-se encaminhando até Joel, enlaçando-o e levando-o até a porta “ Você deve ter se empenhado bastante... Acho que foi um trabalho brilhante...
- Mas Venerando .... - Joel tentou trazer a condução da conversa para si.
- ... Trabalho que poucos fariam igual. Vou guardar com todo o carinho “ Ambos já na porta de saída.
- Mas Amabilíssimo ...
- Agradeço seus préstimos, tenha um bom trabalho e um dia excelente “ Já o soltara do lado de fora do escritório se despedindo.
- Mas ... – e a porta se fechou.
Noel tivera até então, um dia cheio de tribulações. Não conseguira até então lograr qualquer êxito que o aliviasse do peso de suas responsabilidades. Pediu a seus Auxiliares que ninguém o importunasse até que os Anjos Corregedores viessem. Sua cabeça latejava, a vista lhe doía e seu peito estava oprimido. Deitou-se na poltrona, fechou os olhos, buscando tranqüilizar-se mas mesmo no silêncio de seu escritório vazio ouvia vozes dizendo Onório, Onório, é ele Onório, em todos os cantos que olhava via Onório que o observava com um sorriso de escarninho. Via-se amarrado numa teia de aranha, sem ação, com Onório zombando maledicente. De repente o vê em sua própria sala, este se aproxima, amordaça o Arcanjo e bradava “ Agora levo-te comigo para o Purgatório! “ e ria alto “ É para lá que vais! “ Onório o pegou e o arremessou através da janela aberta. Noel caía... caía. “ Nããããoo ! ... “ e levantou-se de sua poltrona percebendo que tivera um pesadelo. Passara-se duas horas e nem percebera. Rafael bateu na porta e anunciou a presença dos Corregedores.
Noel se refez, esfregou as mãos e mandou-os entrar. Sentaram-se nas cadeiras de frente a mesa, enquanto de costas e em pé, mãos para trás como era seu costume, Noel olhava através da janela, o precipício que instantes atrás foi vítima. Mediu as palavras, para não deixar transparecer suas reais intenções. Virou-se lentamente e abraçou ambos fraternalmente, mostrando sua satisfação em encontra-los.
- Vocês sabem como ando preocupado! A importância do trabalho que o Venerável Arcanjo Ismael nos incumbi, pode por a perder anos de dedicados trabalhos. Temos que indicar os Anjos mais bem preparados, com um passado de bons antecedentes, e sem qualquer sombra de dúvida de suas competências. Por isto pedi que investigassem os trabalhos realizados por nosso querido Onório. – explicou-se o Arcanjo.
- Damos razão ao seu cuidado Amabilíssimo Noel – iniciou Natanael. Fizemos um levantamento de todas as missões realizadas por nosso companheiro. Se a princípio parecem ter sido desastrosas, de nada podemos condená-lo, pois baseou seu trabalho no Livre Arbítrio dos envolvidos. Mas devemos ressaltar que suas idéias são, no mínimo polêmicas, e aos incautos, podem gerar dúvidas no grande ensinamento que é eterno e imutável. Suas interpretações estão cheias de significados dúbios, e suas aspirações transcendem a ordem natural que nos foi trazida no decorrer dos séculos. Pessoalmente acredito que devemos submetê-lo a um interrogatório na presença dos mais influentes Angélicos, impedindo assim, que tome parte em qualquer outra missão antes de termos um parecer mais explícito de suas reais intenções. – Terminou taxativamente.
Noel com um sorriso de contentamento, aproximou-se dos dois, colocou as mãos nos ombros dos Corregedores e baixou a voz e afirmando.
- Meu grande temor, caros companheiros, é que o Anjo Onório seja um espião. Talvez seja um agente infiltrado com a missão de comprometer nosso Paraíso – rematou frisando bem as últimas palavras.
Porém Ezequiel mostrou um ar de desagrado.
- Lamento discordar do Nobre Arcanjo. Certa vez, eu mesmo o entrevistei - ressaltou Ezequiel. - Posso dizer que tinha uma idéia totalmente diversa antes de o conhecer. Tive um preconceito que logo se desfez. Trata-se de um ser muito inteligente. Há muito tempo não vemos contestados alguns de nossos dogmas. Basta alguém suficientemente cheio perspicácia, para logo nos atemorizar. Não acredito que exista qualquer maldade em seus atos. É apenas uma alma angustiada em suas dúvidas. Compartilho da idéia de Natanael, devemos convocá-lo para depor, no sentido de serem desfeitas quaisquer dúvidas que Onório tenha incutido, ou que venham incutir no espírito de nossos companheiros.” disse com tamanha doçura, que desarmou o velho Arcanjo.
Desapontado, pois Onório contava com a simpatia de alguns, o Arcanjo tratou dos preparativos para o depoimento, que chamariam de Debate, e aconteceria dali a três dias. Assim poderiam todos se reunirem e traçar uma estratégia, de forma a dirimir qualquer dúvida. Seriam convocados além dos Corregedores, o Filósofo Manoel, a Psicóloga Isabel, os Auxiliares Rafael e Samuel. O Arcanjo Ismael seria convidado a assistir os trabalhos. Noel dirigiria a mesa. Os Corregedores ficaram de acordo. Ezequiel perguntou se o Arcanjo já conversara com o Anjo Filósofo. “ Provavelmente ele teria uma boa contra teoria insofismável. “ ponderou.
- Certamente que sim - confirmou Noel - Os Filósofos tem ótimos pensamentos, o duro é entende-los. Talvez o contra pensamento seja mais fácil. De qualquer modo precisamos da dialética para chegarmos no lugar comum. Talvez uma outra teoria convença Onório..., ou confunda-o. - sorriu.
Durante os três dias que se passaram o grupo se reuniu. A Anjo Psicóloga fora convencida e tomar parte do Debate, com a condição, de posteriormente, receber um bom período de descanso. Noel trabalhou intensamente. O grupo ficou afiado. De antemão sabiam o que perguntar, o que refutar, o que induzir. Estavam certos que surpreenderiam Onório, deixando-o sem argumentos.
O dia do Debate chegou. Em um pequeno auditório preparou-se uma grande bancada disposta em círculo, onde a comissão estava acomodada. Este grande balcão estava num plano mais alto, de forma que todos olhariam para baixo ao conversarem com o inquirido. No centro, num plano inferior, uma cadeira giratória bastante confortável, fora destinada a Onório. Todos preparados, se entreolhavam confiantes. Noel tinha um ar grave, procurava não demonstrar nervosismo; quando certo que tudo estava preparado, pediu que Onório entrasse para iniciar o Debate.
Passos lentos, como quem desliza por uma superfície calma, Onório ganhou o pequeno auditório, olhando ao redor com um ar de matuto. Se instalou na cadeira, e queixou-se da iluminação que estava exagerada sobre ele - de fato toda ela convergia para o centro dos trabalhos – o que foi prontamente atendida. Saldou a todos com profundo respeito e deixou-se a disposição.
O Auxiliar Rafael tomou a palavra, fez a apresentação de todos, e em poucas palavras justificou a convocação. “ Caro Anjo Onório, não veja este Conselho como um instrumento punitivo. Nos reunimos hoje por uma nobre intenção, que é de continuar prosperando o Bem, disseminando o Amor; manter a brandura dos nossos sentimentos, perpetuando assim, o equilíbrio do Paraíso. Para tanto, necessitamos dirimir dúvidas que possam turvar a luz da razão. A Fé, não se pode abalar. Precisamos nos reciclar sempre, rever nossos trabalhos e aprender com nossos erros. A Dúvida é a virtude dos Céticos, ora, em nossa escala evolutiva, há muito tempo a deixamos de lado, mas uma vez, percebendo que ela possa vir a existir, por menor que seja, devemos arrebatá-la para que não se alastre nos corações de nossos Irmãos. Assim é nossa escalada, sempre para frente, nunca se descuidando das pedras que aparecem na nossa frente. Há que se lembrar que nunca tropeçamos nas grandes pedras, mas sim nas pequenas. “ e olhando-o com ternura, rematou “ Portanto caro Irmão Onório, não se melindre, todos aqui queremos o seu bem “.
Onório limpou a garganta, sem se alterar mirou Rafael observando: “ Para ser sincero, ao entrar neste auditório, lembrei-me de quando era ainda um Anjo aprendiz. Acompanhei alguns interrogatórios promovidos pela Inquisição. Muitas pessoas morreram injustamente, apesar dos nossos auxílios. Mas foi apenas impressão, que logo se acabou depois de suas palavras carinhosas. Além do mais, os tempos são outros, nossa região está longe daquelas trevas. Não teria cabimento, depois de séculos de evolução, que meus próprios Irmãos de Paraíso, pretendessem me condenar como herege, e me atirar na fogueira para purificar minha alma; tenho convicção também, que os Ilustres companheiros jamais me atirariam na Fogueira das Vaidades, se promoveram este encontro é com o mais nobre dos motivos, portanto, acredito nas suas palavras, e em retribuição aos Irmãos presentes externo meu mais puro afeto. “ baixou a cabeça, estendendo os braços em reverência a todos.
O Arcanjo Noel engoliu seco estas palavras, baixando o olhar. Percebeu que o embate seria duro. Ismael o viu com simpatia. Manoel alisava o bigode segurando o queixo, gesto dos pensadores. Natanael pegou a caneta para anotar qualquer deslize, Ezequiel franziu o cenho concentrando-se no trabalho, Rafael gravava o Debate enquanto Samuel cuidava da Pauta. Apenas Isabel mantinha-se instável; Noel tinha mil olhos, observava a todos, não deixando escapar qualquer pormenor; sem demora pediu à Psicóloga que iniciasse o Debate. Esta, fez algumas ponderações sobre a reciclagem que iniciara alguns dias atrás. Alegou-se confusa, não entendia alguns signos que Onório citava com freqüência. Pediu então, para que explicasse melhor estas alegorias. “ Por que somos limitados? Onde está este limite? O que há de errado com nossos trabalhos? O que você vê sempre além? “.
Todos o olhavam Onório com interesse. Ele pensou por alguns instantes e iniciou.
- Se me permitem, vou citar Platão.
- O pagão ? – perguntou Natanael.
- Não... o sábio - respondeu - Em um de seus livros discorreu sobre o homem e a sabedoria. Podemos suprimir o homem, trocando-o pelo Anjo e a sabedoria. Dizia ele que a sabedoria era uma luz muito brilhante, e que os homens, digo os Anjos viviam dentro de cavernas fechadas à luz. Uma vez dentro da escuridão, todos percebiam uns aos outros, e em um aparente caos faziam suas funções burocráticas com sucesso. Imaginavam-se doutores, para eles tinham o suficiente. Desconheciam a luz que havia lá fora. Certa vez, desprendeu-se uma pequena pedra no teto da caverna, entrando uma réstia de luz. Aquele pequeno filete foi o bastante para cegar todos os Anjos. A escuridão trazia segurança a eles. Jamais tentaram sair de lá. Trataram de tapar o buraco e viver sem o novo conhecimento. Apenas um lutou contra a maré. Saiu da caverna, pois sabia que um mundo novo o esperava, sedento que estava de aprender. A medida que o tempo foi passando, sua retina foi-se acostumando à luz, e lentamente começou distinguir as formas, as texturas, os relevos, localizando os sons, os perfumes e etc..., sua alma se expandiu, mas aqueles que permaneceram na escuridão permaneceram estagnados. Assim é como penso. Devemos ir atrás do conhecimento. Não nos deixar ofuscar pelo medo do novo. Platão nos ensina que a luz muito forte nos cega. Podemos não estar preparados para enxerga-la, mas não devemos refutá-la, pois ela existe e é muito mais forte que a escuridão. - afirmou satisfeito.
- Você então é o Anjo que consegue ver a luz ! – Natanael disse irônico - Você está sendo muito presunçoso. Não é comum aos Anjos, serem acometidos pela soberba. Mas..., que luz será esta que está além dos Portais do nosso Paraíso, e que nos cega a tal ponto? O que pode deixar de ser perfeito em nosso Lar? Nosso trabalho, nossos amigos... nossa casa não possuí a harmonia, o equilíbrio e a paz que nunca foi encontrada em outro lugar? Quantos almejam chegar aqui! Não existe luz suficiente? - a medida que falava, mais se inconformava com a declaração - Que tens a me dizer?
- Assim também pensavam os habitantes da caverna - disse Onório, que rematou - Os habitantes da caverna não sabiam o que havia lá fora. O mundo para eles era aquele ambiente fechado, não vislumbravam um outro mundo até que o teto cedesse, portanto, aquelas condições em que viviam, lhe eram as ideais. Viviam em seus paraísos. “
Ezequiel pediu a palavra, mantinha um semblante concentrado. Onório, que até então, mirava Natanael, girou sua cadeira até o interlocutor.
- Até o momento o amável companheiro foi muito genérico. O fato de vivermos em uma caverna, como você considera, não impede um trabalho com sucesso, tampouco uma vida tranqüila, pois se não podemos melhorar nossas vidas é por ignorar o desconhecido, o que nos leva a acreditar que vivemos plenamente dentro de nossa limitação. - E erguendo as pestanas, dando ênfase ao que falava, frisou - Acho que ainda não respondeu a pergunta de nossa querida Isabel. Onde está nosso erro, e o que há além? Como podemos errar se desconhecemos o além? “.
- O fato de desconhecermos o além não nos sugere o erro, isto é verdade. O caso é distinto, pois o além que não enxergamos esta implícito nos nossos trabalhos. Nós apenas não o queremos ver - e ressaltando com entusiasmo sua tese passou a olhar para todos a cada palavra que dizia. Vivemos em um lugar homogêneo. Todos aqui temos um padrão de pensamento, temos a mesma ideologia. Somos similares até na aparência. Porém em nossos trabalhos de assistência aos homens, vemos que eles tem contato com indivíduos muito diferentes, com crenças distintas. Percebemos que alguns deles recebem ensinamentos santos, magníficos que também elevam a alma e conduzem ao Bem. Onde estariam então estes outros Anjos que não vemos. Os Anjos de olhos puxados da filosofia oriental, Os Anjos Mouros, que fazem parte de um outro segmento bastante próximo à nossa, onde estão os Anjos Negros, os Anjos Índios. Os seguidores do Dalai, de Sidarta, de Maomé, de Moisés, de Confúcio e outros ... e outros tantos que levam a paz que conduz ao Paraíso de seus ensinamentos. Onde estão ? Em nossa altivez, descartamos outros Paraísos que certamente existem. Se imaginarmos então o universo em sua magnitude podemos conceber a quantidade de milhares e milhares de Paraísos que existem espalhados pelo Cosmo. Isto é claro como água cristalina, enquanto isto, vivemos aqui isolados em nossa imensidão. Erramos em viver isolados. Por que não abrirmos as Portas do nosso Paraíso e nos relacionamos com os outros? Poderíamos promover um intercâmbio, em que todos cresceriam - terminou exaltado.
Noel se antecipou à tréplica de Ezequiel esclarecendo.
- Onório... tens a intemperança e o ímpeto dos jovens! Sua sede de conhecimento já nos invadiu a alma tempos atrás. Mas o tempo há de te mostrar que o que queres é deveras perigoso. Ao abrirmos nossos Portais estaremos receptivos tanto ao Bem quanto ao Mal. Cabe lembrar que ambos tem sua força, e uma vez o Mal vença, sucumbiremos todos. - com expressão grave se desculpou a Ezequiel, e com um gesto pediu que continuasse seu raciocínio. Porém Onório, raciocinando rápido respondeu ao Arcanjo:
- Vossa resposta, Venerável Arcanjo, é bastante significativa. Apenas confirma minha teoria - disse satisfeito.
- Diante das palavras do nosso Amabilíssimo Noel, mesmo que existam outros mundos, meu caro Galileu – disse sorrindo – não percebes a gravidade de seu capricho. E se o Mal traspassar nossas divisas. O que será de nós?
- Volto a lembrar Platão. Lá fora existe a Luz. Ela pode primeiramente nos cegar, mas uma vez acostumados a ela, perceberemos tudo com nitidez. Além disto tenho de mim para comigo que o Bem e Mal são relativos. Dependem de uma interpretação bastante apurada, e uma vez, olhe por um ou outro lado seus papéis se alteram. O Bem para nós, numa esfera maior, e disto tenho certeza que ainda atingiremos por não sermos perfeitos, pode ser algo Mal, assim como nos vales do Umbral o que para nós é Mal, para eles não é tão ruim assim. E de outra coisa tenho certeza absoluta: Não existem seres totalmente bons, nem totalmente maus. Somos todos um pouco dos dois. O fato de estarmos num estágio mais avançado não nos contempla a perfeição. Olhemos para dentro de nós, quantas vezes ainda nos pegamos em flagrante delito, com pensamentos não tão elevados, perdemos a paciência com freqüência, ainda nos deixamos melindrar com uma ou outra palavra, o medo ainda nos tolhe apesar de nossa aparente confiança no nosso Pai. Amigos ... vamos sair desta caverna. – disse empolgado.
- Estão vendo senhores - disse Isabel quase em prantos - Vejam bem o que vocês me submeteram a fazer. Não sei mais o que é certo e o que é errado. Estou confusa - e enxugando as lágrimas que vertiam involuntárias se retirou.
O Filósofo Manoel, que permanecia segurando o queixo alisando seu vasto bigode, coçou a garganta, como quem indica que vai falar, respirou fundo e observou.
- Acho que posso explicar tudo isto.
Todos olharam atentos. E num tom solene destacou:
- Existem pessoas portanto idéias, existem pessoas portando sentimentos, para tantos portantos existem outros tantos tantos, portanto outros portantos que levam a tantos outros portantos. Portanto enquanto houverem outros tantos, portantos haverão.
Silêncio no auditório. Todos se entreolharam tentando localizar alguém que tivesse entendido a proposição.
- Sábias palavras - apontou Noel, que no seu íntimo nada entendera.
- Deveras elucidativo - bradou Rafael. Samuel bateu palmas, acompanhando-o os demais.
Manoel ficou com o ar satisfeito, daqueles que conseguem resumir o mundo em uma única frase, apenas acenava com a mão em um gesto humilde agradecendo as saudações.
O Arcanjo Ismael assistia a tudo com um sorriso bem humorado. Não se manifestava. Esta interrupção trouxe de volta o bom humor a todos, o clima tenso se amainou e após um ligeiro descanso os debates recomeçaram. Noel não ficou muito satisfeito com as colocações de Onório sobre o Bem e o Mal, e pediu para que fizesse uma analogia sobre seus pensamentos e o caso Francisco, pois constava nos autos que havia sido enganado pelo Anjo Mal. Com estas proposições a tese de negligência se adaptava melhor ao caso. Era necessário um esclarecimento.
- Bem ... o caso Francisco?... O que o Digníssimo quer saber? – jogou na defesa, pois sabia que gostariam de pegá-lo em contradição.
- Onório, meu caro, sabemos que o processo relativo ao episódio foi extinto. A missão de Francisco era muito importante, e seu fracasso nos deixou bastante desapontados. Apesar de não reconhecermos culpa em teus atos, achamos um tanto estranho suas relações com o Anjo Mal. Não entendemos como deixou-se enganar por ele. – e ironicamente. Se vivemos em cavernas e não conseguimos ver a luz, como vivem então os Maus? Devem viver em trevas mais densas do que nós. É o que presumo. Como deixastes a escuridão ofuscar sua luz ?
- O Anjo Oderno não era tão mal.
- Oderno... !? – Samuel se espantou. Com este nome... nem me digam de onde ele veio.
Todos riram. Onório manteve-se sóbrio, e esperando o silêncio, retomou:
- Como estamos cansados de presenciar em nossos trabalhos entre os homens. Até mesmo criminosos impiedosos conseguem dar amor a alguém. Por mais duro de coração que tenha sido na vida, certamente ele amou e deu carinho a um parente, ou filho, ou amigo, ou seja, tinha algumas gotas de afeto num rio de violência, portanto ele não era inteiramente mau. Os Anjos Maus também têm seu lado bom, e não é engano dizer que tratam-se bem. Têm respeito e veneração pelos seus superiores. Oderno, de fato, não era tão mal. Dentro dos trabalhos que fora enviado, tinha como missão agir de modo antagônico aos nossos propósitos, o que também já estamos acostumados. Mas Francisco, que assimilou tão bem sua missão aqui no Paraíso, quando desceu para o convívio com os homens, foi tomado por muitas dúvidas, o que o deixou muito angustiado. Tinha medo. O peso de sua responsabilidade cresceu e ele não estava mais suportando. Enquanto isto, eu e Oderno travávamos uma grande batalha. Como um grande cabo de guerra cada um tentava puxar Francisco para seu lado. Ele então ficou cada vez mais atormentado. Em seus últimos momentos, não sabia se voltava para casa para cuidar dos seus, ou se ia visitar uma linda mulher que conhecera alguns meses antes. Tal foi sua dúvida, que nós, já sem forças, e com pena de seu estado mental, resolvemos não mais influir em suas decisões, deixando-o escolher seu próprio caminho. Infelizmente, entorpecido ao cruzar a avenida, não respeitou o sinal de pedestres e um caminhão o arrebatou. Como podem ver, não fui enganado. Tivemos pena e optamos pelo livre arbítrio de Francisco. Acredito que agiu deliberadamente.
- O que?.. - disse Natanael. Você realmente acredita que foi suicídio?
- Sem dúvida! Oderno não teve influência. Também ficou desapontado. Aliás deste caso, posso dizer que ganhei um amigo. Gostaria de ter permissão um dia, de poder visitá-lo. Tenho grande interesse em saber como vivem, estudá-los trocar idéias.
Noel intimamente bem que gostaria de mandá-lo para o inferno, e como a situação era propícia não iria dificultar em nada aquele gosto tão excêntrico. Já imaginava Onório cercado por demônios vermelhos, sendo caçoado e espetado por tridentes, depois atirado ao fogo eterno. Com o pensamento distante, ria da cena que sonhara.
- Noel ! ... Noel ... – Ismael o chamava baixinho, e como não foi respondido o cutucou.
- Ah... desculpe-me estava analisando a resposta – disse desconcertado.
- Todos esperam suas considerações. – Ismael ergueu as pestanas sorrindo para Noel.
- Achei... achei... ex – ce – len - te. – falou calmamente recordando a cena. - Apesar de anteriormente achar um tanto estranho o que aconteceu, depois desta brilhante exposição dos fatos tudo ficou claro. Seu pedido será analisado. – disse bastante satisfeito.
Noel falava como se quisesse encerrar o debate, e o teria feito se Ezequiel não tivesse insistido na manutenção da pauta; fazia questão que se examinasse dentre outros, o caso Doraci. Manoel protestou, preferia debater a nível teórico, o que não foi aceito pelos demais que preferiam os casos pelo caráter ilustrativo. Manoel ficou contrariado. Ismael começava a ver Noel com olhos mais críticos. Percebera a intenção exclusiva de alijar Onório do convívio com os outros Anjos. Como se tornando-o marginalizado todos o esqueceriam e o evitariam. Não era o que imaginava para o debate, pois preferia que prevalecesse a vitória da razão. Mas fosse como fosse estaria ali para observar, e deixou seus pensamentos restritos a si próprio.
Rafael, examinando a pasta Doraci, relembrou os preparativos que foram feitos e a missão que era destinada. Ela, assim como Francisco, era considerada pessoa convicta e determinada; seus mentores tinham certeza absoluta que realizaria com sucesso a difícil tarefa. Seu malogro não fora esperado, e desde que abandonou o trabalho nunca mais fora vista. Pesava sobre Onório, a responsabilidade de perder uma trabalhadora tão dedicada. Não havia registros de influência dos Anjos Maus; em seu relatório recorreu ao Livre Arbítrio novamente. Natanael pediu a palavra. Já participara de entrevistas interpeladoras; ao contrário de Noel, jogou o assunto ao ar deixando que Onório discorresse os detalhes.
Samuel aproveitando um gancho adicionou:
- Procure não ser tão teórico. As teorias iludem e se confundem em erros abstratos. Atenha-se às realidades vividas.
- Desculpe-me caro Samuel, mas tenho a certeza que estou aqui devido minhas teorias. Tenho sede de confirmá-las ou não mitifica-las. Doraci acreditava assim como eu, na existência de outros Paraísos, mas caminhava muito mais além do que eu imaginava. Sempre nos foi ensinado a sermos monoteístas. Historicamente foi importante para o homem acreditar em um único Deus. O onipotente e onipresente. Assim ainda é aqui no nosso Paraíso. Porém relembrando o quão pequenos somos e toda a imensidão do universo, por que não imaginar que este pode ter sido criado por vários Deuses ? Não poderia ser este Deus um Querubim de imensa grandeza, porém subalterno a Deuses ainda mais elevados? Lembremos da partícula de um átomo, ou de uma única célula do corpo humano, que são senão microcosmos? Por que então não imaginarmos que a própria Via Láctea, com seus bilhões e bilhões de estrelas não pode ser uma única célula de um universo muito maior do que imaginamos? Os grandes enviados não nos ensinaram que somos todos Deuses? Por que então tudo haveria de ter sido feito por uma único Deus? Começo a acreditar que tudo, absolutamente tudo, foi criado por uma plêiade de Deuses. Foi importante termos sido monoteístas para compreendermos uma noção de politeísmo triangular. No final tudo convergirá para um núcleo, que não seja de um único ser supremo, mais de uma concepção, uma idéia, um sentimento, um ponto que ainda não estamos preparados para entender. É o que busco, e o que não consigo entender. Por que não nos é possível sair dos muros altos e intransponíveis do nosso Lar e termos conhecimentos mais excelsos ? Assim também pensava Doraci. Ela me passava uma vontade imensa de conhecer, de ir além. Conversávamos muito em seus sonhos. Preparou toda situação para sua falta não ser sentida, e quando percebeu que poderia ser substituída, com uma gana que invejo, pulou os muros que a tolhiam, ou se preferirem, abandonou a caverna buscando a Luz. Na última vez que a vi, enquanto sonhava, foi com lágrimas nos olhos que observei sua partida. Tenham certeza que não perdemos uma trabalhadora, ela, onde quer que esteja continua difundindo o Bem, e talvez quando a revermos novamente, sua presença ofusque nossa visão, tamanha luz que absorveu para si. - Onório se empolgava encontrando com facilidade as palavras que evidenciavam seus pensamentos.
- É uma teoria que vai muito além da realidade, meu caro – riu-se Samuel.
Noel ouviu a tudo com uma grande satisfação. Toda esta fantasia implicaria na exclusão de Onório para o trabalho confidencial. Tinha a certeza disto, até porque a comissão estava perplexa. Todos ouviam atônitos. Apenas Ismael continuava com um semblante muito leve, como se não estivesse ali. Certamente não estaria levando Onório a sério e daria razão posteriormente a Noel.
- Onório, - observou Ezequiel - você já não parou para pensar, que mesmo que exista este politeísmo triangular, como você nomeia, a convergência em seu topo nada mais seria o que nós consideramos como o Deus. É como a brincadeira das crianças de colocar uma caixa dentro do outra. Se ainda estamos nas primeiras, certamente a última, que tende ao infinito, seria a maior e abrangeria todas as outras. – e retomando o fôlego – Criadas por quem?
- A conclusão é a mesma. Afinal todos acreditamos em Deus. Mas continuo afirmando que temos uma verdade reduzida. Esta síntese não me agrada. Temos uma vida muito mais complexa do que deduzem. O conformismo nos emperra. Mas ninguém se preocupa com isto. Afinal a caverna é confortável, não é mesmo? – disse irônico.
Ismael não se conteve e soltou uma riso abafado.
Manoel, em seus gestos cerimoniosos, chamou a atenção para si, e comentou:
- A conclusão é a reclusão do estado inconsciente, promovido pela dispersão de idéias inimagináveis, convergindo para a abruptura de pensamentos disformes, porém moldáveis a novas realidades sonhadas na vastidão de idéias turvas, porém lógicas. Todo convencionalismo difuso em idéias abstratamente claras produzem um clamor ilógico para uma dialética pura baseado na essência metafísica da realidade; ora, Onório em seu afã, submete o inconsciente coletivo a uma metamorfose do eu, consequentemente a luta entre as diferentes base pensamento, o submetem ao estigma irrefutável do estereótipo insofismável.
- Por alguns instantes houve um silêncio de morte, e como Manoel não prosseguiu em suas ponderações os outros membros entreolharam-se duvidosos.
- Que foi que ele disse ? - Rafael perguntou baixinho para Samuel.
- Disse que Onório é culpado. – respondeu quase num sussurro.
- Onório é culpado? - intrometeu-se Natanael.
- Disse que não é culpado ! - observou severo Ezequiel.
Este zunzum chegou até Noel que oscilava entre um e outro lado, temeroso de dar um veredicto. Observava os membros da comissão que cochichavam excitados. Manoel observava orgulhoso a repercussão de suas palavras. Ismael estranhou o movimento e os sussurros culpado e inocente, mas mesmo assim nada externou. Onório indignado, olhava cada um dos presentes silencioso. O que era um sussurro tornou-se uma discussão acirrada. A maioria defendia a acusação, enquanto apenas Ezequiel afirmava inocência. Rafael, no calor da questão, interpelou Ismael, que estava a sua direita.
- Culpado! Ele só pode ser culpado. O que o Nobre Arcanjo acha?
- Não me consta que isto seja um julgamento. – respondeu num tom que todos puderam ouvir - Não pode haver uma sentença. Afinal... não estamos em um Debate?
Onório deu uma risada abafada, e manteve-se risonho enquanto os outros voltavam a realidade.
É óbvio que estamos em um Debate - disse Noel constrangido - Que idéia sem nexo julgar alguém por sua ideologia - e procurando retomar a pauta - Acho que o caso Doraci podemos considerar acabado, a menos que alguém mais tenha alguma pergunta - e olhando para Natanael - O Nobre Corregedor esta satisfeito com o teor da resposta?
- Creio que sim - riscou alguns apontamentos em sua folha.
Ezequiel pediu para Samuel ler o caso do político, e enquanto o mesmo verificava os arquivos, Manoel e Onório cruzaram seus olhares preocupados sem que nenhum outro percebesse. Manoel passou a suar frio, enquanto Onório, pela primeira vez começava a titubear.
- Temos... temos realmente que analisar mais um caso já exaustivamente visto e revisto? ... de todos os contratempos... foi o menos relevante, e nada há nele que externe minhas teorias... Não poderíamos avançar em temas mais importantes? - pediu quase súplice.
Noel percebeu um ponto fraco, e decidiu expô-lo.
- Meu querido Onório... infelizmente devemos rever todos os pormenores. Apesar de sua participação menor, pois substituíra o magnífico Manoel, redundou num malefício para o enviado, consequentemente um prejuízo para nossos planos. – e dirigindo-se a Samuel - Qual é mesmo o nome do político escritor?
- Deixe-me ver, deixe-me ver ... Ah! Sim ... aqui está, é o caso do Político Luíz. E dando início a leitura, discorreu sobre a missão de tornar-se um parlamentar que realmente voltaria seu trabalho para a camada mais humilde da população, ajudando no progresso e crescimento do país. Era destinado a ele no futuro, caso cumprisse bem suas funções, um cargo por votação majoritária, talvez seria eleito para Prefeito, Governador ou até mesmo Presidente. Mas estes planos desmoronaram quando Onório substituiu o brilhante Manoel. Constava em vermelho, que desconfiava-se, ter Onório influido no pensamento e na carreira de Luiz, fortalecendo em sua mente a idéia de abandonar a missão, para se tornar um escritor, incutindo no infeliz idéias jocosas, que levavam ao riso fácil, frases descabidas e sem nexo, quais piadas de português. Alegava-se ainda, que esta mudança de trabalho fora induzida, para que Onório pudesse escrever o que pensava, já que queria difundir suas idéias também entre os mortais que não estavam sobre seus cuidados.
Noel pediu um instante para uma observação.
- Este é uma alegação muito grave ! Publicar suas idéias também entre os mortais, é um ato de subversão.
- Desculpe-me a observação, caro Noel, mais é uma subversão estapafúrdia. Vejam aqui o que esta escrito. - disse Samuel.
Samuel passou a ler então trechos do livro, soprados por Onório. Cada parágrafo lido e os risos eram instantâneos. Apenas Ismael, Manoel e Onório mantinham-se sérios. Noel contente deixou que Samuel continuasse a expor o Anjo ao ridículo. Chegou-se a um ponto em que as bochechas lhe doíam de tanto rir, como se tivessem assistindo a um filme pastelão.
- Você reconhece isto? - Rafael perguntou.
Onório o fitou sem expressão.
- Como você teve coragem de escrever isto? - perguntou Natanael.
Onório nada respondeu.
- Se sua ideologia não passa deste amontoado de palavras banais, acho que estamos perdendo tempo. - afirmou Rafael.
Onório baixou a cabeça.
- Pensei que meu caro Onório fosse mais profundo – lamentou Ezequiel.
- Lamento desapontá-lo - Onório amargou.
Ismael pela primeira vez fechou o semblante.
- Realmente estas considerações não são nada importantes. Elas produzem um efeito antitético sobre tudo o que disse hoje. Felizmente esta publicação não o incrimina. A intenção sim, é gravíssima. - Noel observou, e saboreando seu desprezo - Acho que não devemos levar nada disto a sério. Acredito que devemos descartar todas as outras afirmações e pedir para o caro Amigo algum tempo de reciclagem em camadas inferiores, se é que os nobres companheiros concordam comigo.
Todos assentiram, inclusive Ismael.
Onório emudeceu.
- Não nos leve a mal, caro irmão de jornada. Poderíamos seguir adiante discutindo os temas, mas percebendo que suas próprias idéias não apresentam uma consistência ideológica, acredito podermos terminar o debate, sugerindo o afastamento de qualquer outra missão até que conclua novamente o curso de Anjo Médio. - Noel dizia com gozo.
Novamente todos concordaram.
Nada restou a Onório, senão concordar.
- E ... agradecendo a presença dos Nobre Angélicos, em especial do Arcanjo Ismael, damos por encerrado o Debate. - Noel disse triunfante.
Os Anjos levantaram-se de suas cadeiras, despedindo-se. Quando estavam quase a porta de saída Manoel chamou a atenção de todos.
- Antes que todos se vão, preciso fazer uma nova observação.
- Claro Admirável Manoel - Noel consentiu.
- Sinto-me envergonhado. Tratamos Onório como um cachorro sarnento. Devo lembrar que fui eu quem pediu para que nosso amigo me substituísse, e de fato ele o fez com dedicação, pois tratasse de um Anjo proativo. Convém ainda lembrar que demanda um longo tempo para se efetuar esta substituição devido a grande burocracia existente aqui.
- De fato tens razão. É uma precaução necessária - Noel observou.
- Mas antes que ele me substituísse - retomou - Tivemos uma longa conversa. Também eu me sentia tolhido, e sentia a necessidade de explorar todo o meu potencial...
- Mas caro Manoel... se existe alguém que podemos considerar brilhante, principalmente no campo filosófico, este alguém é você mesmo. - Natanael disse com bondade.
- Obrigado pelas palavras.
- Eu diria que o Notável companheiro é uma unanimidade - Rafael disse com segurança.
- Temos uma admiração tão grande pelo seu trabalho, que gostaria de tê-lo em minhas mãos para aprecia-lo em seus mínimos detalhes. - Ezequiel o tratava como um ídolo.
- Obrigado novamente. Aproveitando o seu desejo... caro Ezequiel, peço para Samuel pegue aquele livro que acabou de ler e dê para Ezequiel. É meu presente. Lá está contido todo o meu saber.
- Mas aquele livro não foi escrito por Luiz, o político derrotado, soprado por Onório? - Noel perguntou incrédulo.
- Perfeitamente... aquele livro foi escrito por Luiz, o escritor vulgar, induzido por mim. - Manoel disse desapontado, porém de alma lavada.
Noel sentou-se cansado. Ismael suspirou aliviado. Voltaram todos a seus lugares e passaram a escutar o desabafo de Manoel.
- Como estava dizendo... sentia a necessidade de explorar meu potencial. A conversa com Onório me encheu a alma, aumentou minha auto estima, e percebi que poderia continuar meu trabalho com Luiz. Como a burocracia era muito grande, concordamos em não desfazer a substituição... Minha vaidade me impulsionou a disseminar meus pensamentos, que, como podem perceber, não é tão brilhante assim... Acabei me escondendo no rótulo que todos criaram para Onório, que assumiu uma culpa que não teve. Como viram, teve a dignidade de não me acusar. Fui covarde. Ele, ao contrário, foi valente o suficiente para negar suas próprias convicções, me protegendo de uma falta grave.
- Analisaremos isto posteriormente - Noel estava exausto.
- Deveríamos então retomarmos os Debates – Ezequiel sugeriu.
Noel hesitou olhando para Ismael.
- Se me permitem - disse Ismael - Acho que não existe mais clima para um debate. Estou muito satisfeito com o que vi.
E encarando Onório, continuou.
- Vim até aqui, com a intenção de observar Onório mais de perto. O Supremo Governo Celestial esta necessitando de um Anjo com o perfil de nosso amigo que hoje esteve na berlinda. Precisamos de um relações públicas, que interaja com diferentes níveis de evolução, necessitando assim, que se exponha além de nossos muros. Não sei se encontrará mais Luzes lá fora. Devo admitir que quando mais jovem, tinha idéias bastante semelhantes às de Onório, mas não tive coragem suficiente de lutar por elas. Não sei se fora de nossa caverna..., digo, nosso Paraíso, outros Paraísos encontrará, mas já que tens a disposição acredito que pode cumprir com sucesso esta difícil missão. - disse solene.
Onório radiava de contentamento, e aceitou sem pestanejar.
- Sempre tive a certeza que este Anjo era a pessoa ideal - Noel disse profusamente - Trata-se do Irmão com o maior potencial que apareceu por aqui nos últimos decênios. Marcamos este Debate exclusivamente para provar ao Digníssimo Ismael toda sua capacidade!
Os outros membros estranharam esta afirmação, mas mantiveram-se quietos. Ao abandonarem o pequeno auditório, Ismael abraçou Onório intensamente, relegando Noel a segundo plano. Conversaram por horas. Onório seria submetido a novos ensinamentos e fatalmente sua vida de ali em diante seria muito diferente, devendo imediatamente mudar-se para a sede do Supremo Governo Celestial. Sua mudança foi um alívio para Noel, que o homenageou como um Chefe de Estado. Fosse como fosse a tranqüilidade voltou para aquele pedaço de Paraíso.
Onório tornou-se Ministro de Relações Exteriores do Supremo Governo Celestial. Recebeu uma grande carga de informações que jamais imaginara. Tinha diversos Assessores e muita mordomia. Ganhou notoriedade. Deliberava de seu luxuoso gabinete. Jamais reencontrou Oderno nem descobriu outros paraísos. No princípio bem que tentou transpor os altos muros do Paraíso, mas de fato nunca se empenhou, afinal a caverna tornara-se muito confortável.