Bem-te-vi

Janela alta, longe do alcance de olhos atrevidos, proibia ao mundo ver o corpo de Celeste, e quem a conhecia maldizia a altura da janela, só não blasfemava o resto do mundo, por não conhecer o corpo de Celeste, ainda que coberto por roupas.

Gioconda, Vênus e Afrodite não ousariam confrontar medidas corporais com aquele padrão escultural, presente que a mãe natureza dera a Celeste, fora talhado, fora esculpido, fora projetado, nada nele arranhava a perfeição. Seu nome ratificava sua origem e profetizava seu futura, Celeste era divina, do céu.

Não só o calor do nordeste a obrigava a deixar a janela aberta, o espetáculo era mostrado através daquele vão, e o cantar dos pássaros eram a trilha sonora, que dava ritmo ao balanço daquela diva, semi-nua, iluminada pelos raios da aurora. E, como se um acordo tácito houvesse, quando os pássaros calavam-se, em canto solo, o bem-te-vi declarava-se àquela estátua viva, ela, quase que sob hipnose entendia a declaração de toda manhã., que lhe era injetada todos os dias, tornando a musa dependente da apologia que lhe era dirigida.

Ela, que materializava o conceito de estética viciara-se em ser amada por um canto enfático, que soava como uma promessa perene: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi, e mentalmente ela completava o verso: e a amo.

A namorada esperava as cartas, o garoto esperava o circo, o marinheiro esperava o barco, a saudade esperava a volta, o abandonado esperava a dor passar, e Celeste esperava as auroras.

A espera de Celeste deixou todos os seresteiros, poetas e sonhadores esperando por Celeste, que a cada manhã, deixava-se seduzir por um som magnético, que a entorpecia, e alucinava, deixando-se seduzir por uma promessa de amor...impossível.

Quando a razão de desfez, o amor instalou-se; Celeste amava aquele bem-te-vi, que por sua vez, amava Celeste, como confirmava mediante o canto, todas as manhãs, à janela da amada quase nua.

E aquele corpo, com que todos sonhavam, tornou-se para ela um prazer exibir, e, para ele, uma obsessão a alcançar.

Das confissões ao convite foi apenas um trinado: -Venha voar, vamos consumar nosso amor. E da racionalidade à aceitação foi apenas um lapso de segundo, que para aqueles exóticos amantes significou uma eternidade, mas Celeste lançou-se da janela para voar, sabendo que iria também amar.

Janela alta, cortinas e vidraças cerradas impediam que o resto do mundo olhasse para dentro do quarto: o coro dos pássaros ainda aguardava o maestro imaginário para que cessasse, já não havia mais o bem-te-vi para determinar pausa à sinfonia.

Nunca mais ninguém ouviu o bem-te-vi, mas dizem aqueles que amam, que ainda conseguem ouvir trinados em formato de confissão, mas afirmam que para ouvi-los...o coração do privilegiado ouvinte deve estar amando alguém

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 07/12/2009
Reeditado em 07/12/2009
Código do texto: T1965525
Classificação de conteúdo: seguro