LUAR COR-DE-ROSA
Romeu Prisco
Na última viagem que fiz à região da Transilvânia, na Romênia, certa noite convidaram-me para conhecer o castelo do Conde Drácula e sua família. Aliás, pelo que depois fiquei sabendo, parece que o convite partira do próprio anfitrião. Mal acomodado num minúsculo taxi, conduzido por um taciturno motorista, fui transportado até o local. Aberto o portão de ferro de duas folhas, o taxista contornou uma alameda interna e me deixou ao lado do vestíbulo do castelo. Um atarracado e sorridente mordomo brasileiro, de origem nordestina, que se identificou como Vampião, fez as honras da casa. Acompanhado de uma discreta reverência de cabeça, estendeu o braço na diagonal, com a palma da mão voltada para cima, indicando-me a entrada Ainda surpreso, perguntei: Lampião ? Não, respondeu ele, é Vampião mesmo.
Enquanto aguardava pelo Conde Drácula, na espaçosa e confortável sala de visitas do seu castelo, procurei satisfazer a minha curiosidade sobre aquele patrício. Como fora parar tão longe ? Por que ? Vampião relatou que, no Brasil, anos atrás, apesar da sua constituição física privilegiada, contraíra profunda anemia, que ocasionava rápida diminuição dos glóbulos vermelhos do sangue. A enfermidade se manifestara, coincidentemente, quando estava a serviço de um influente coronel e político do agreste cearense. Esgotados todos os recursos, sem que houvesse melhora, seu médico o aconselhara a se tratar com um colega romeno, o Dr. Rubran Sorvick, hematologista de renome internacional.
Amigos ajudaram-no a pagar as despesas de viagem, pela empresa aérea romena, a Transvamp. Chegando ao seu destino, Vampião fora submetido, pelo Dr. Rubran, gratuitamente, a um prolongado e rigoroso tratamento, na clínica hematológica do Hospital Central Professor Kyropterus, até que se recuperara totalmente. Após o restabelecimento do seu paciente, por quem se afeiçoara, o médico romeno, que na vida particular era o Conde Drácula, lhe ofereceu o cargo de mordomo. Grato a quem salvara sua vida, Vampião não titubeou em aceitar. Assim, passara a ter um emprego fixo, com direito a salário in natura, casa, roupa lavada e passada, férias anuais e outras vantagens trabalhistas. Além de mordomo, Vampião também se tornara motorista do Conde Drácula.
Quando ia prosseguir no diálogo com Vampião, fomos interrompidos pelo Conde, que justificou a ausência da mulher. A Condessa se encontrava recolhida no seu ataúde, convalescendo de uma vampirose, adquirida, inadvertidamente, de sangue contaminado. Em compensação, o Conde me apresentou seu casal de filhos. A garota, uma linda vampete de 15 anos, que se chamava Morcelina e era carinhosamente apelidade de Morcy, enquanto que o rapaz, um simpático vampex de 14 anos, atendia por Rubraninho, por ser portador do mesmo nome do pai. Feitas as apresentações, Morcy e Rubraninho se declararam fãs da famosa dupla brasileira de cantores, Sandy e Júnior. Quando me perguntaram se eu dispunha de um CD daquela dupla, não conseguiram disfarçar sua decepção, diante da minha resposta negativa.
Refeitos, Morcy e Rubraninho pediram licença e se despediram, educadamente. Estavam de saída para um programa noturno, com alguns amiguinhos. Iriam a uma vampeteria, com animação, ao vivo, do famoso conjunto musical norte-americano, The Bloodding Stones, que se encontrava em curta temporada na cidade. O Conde lembrou-os de que deveriam retornar, sem falta, antes do amanhecer, recomendando-lhes, ainda, que só tomassem refrigerantes Sangrariol. Sim, disseram ambos, que tratavam o Conde, na intimidade, de vampapy.
Após a despedida dos filhos, o Conde me levou a conhecer as dependências do castelo. Começamos pelo amplo escritório, equipado com uma biblioteca de fazer inveja aos mais fanáticos vampirólogos, tal a quantidade de livros, enciclopédias e dicionários sobre vampirologia. O castelo não tinha cozinha e nem sala de almoço, porém, era dotado de uma enorme sala de jantar, finamente decorada com lustres e tocheiras de bronze, tapetes e cortinas de veludo em tons escuros, larga mesa e cadeiras de madeira entalhada. Nos aparadores, nada de pratos e talheres, mas, apenas copos de cristal, que também faziam parte da decoração. Da sala de jantar passamos para o salão nobre, onde se podia ver, nas paredes, quadros de telas pintadas a óleo, retratando toda a dinastia do Conde Drácula, desde os primórdios do vampirismo. Via-se, ainda, o brasão da família, sustentado, nos lados, por dois enormes e vistosos morcegos empalhados. Era nesse salão que, anualmente, se reunia o seleto grupo de integrantes do Conselho Mundial de Vampirismo. No mesmo salão também se realizavam, periodicamente, conferências, palestras e as solenidades festivas.
Propositadamente, o Conde deixou por último a dependência do castelo, que considerava a vampira dos seus olhos: a adega, na qual chegamos, depois de descer longa escadaria. O recinto, devidamente climatizado, continha um estoque incalculável de sangue envelhecido, acondicionado em recipientes próprios e adequados, dispostos nos escaninhos de grandes armários. A separação obedecia aos respectivos tipo e procedência. O Conde me convenceu a provar um, pra lá de centenário, que pertencera a um membro da corte da rainha Vitória, da Inglaterra, conhecido por Lord Gaylor, o que justificava seu matiz, ligeiramente azulado. Copo na mão, primeiro procurei "sentir" seu aroma, para depois degustá-lo, como se fosse o melhor dos vinhos. Para quem, como eu, não tinha esse hábito, o paladar deixou a desejar, mas, como dizem os franceses, noblesse oblige. Polidamente, recusei uma segunda dose, que o anfitrião me ofereceu.
Encerrada a visita, o Conde determinou a Vampião que me conduzisse de volta para o hotel, no seu veículo, um antigo, bem conservado e possante Thunderbat. Chegando à hospedaria, quando me despedia do compatriota, exteriorizei a minha satisfação, por ter sido, aquela, uma noite proveitosa e agradável para mim. Todavia, lamentei o fato de não ter podido conhecer a Condessa, em face da sua doença. Vampião não deixou por menos e reportou que a história era outra. Na verdade, a Condessa tivera violenta crise histérica, gerada pelo ciúme, ao surpreender o Conde e Vampião fazendo, segundo disseram, sem nenhuma maldade, um troca-troca de sangue, pescoço-a-pescoço. Depois dessa, saí apressado do carro, dei uma rápida olhada para o céu, onde brilhava um estranho luar cor-de-rosa, me dirigi ao saguão da pousada e tomei o elevador. Desci no segundo andar e entrei correndo no meu quarto. Tranquei portas e janelas, fui ao banheiro e me vi no espelho. Meus olhos, estes sim, estavam com um inusitado brilho cor-de-rosa, o que explicava a impressão que o luar me causara. Não tive dúvidas: debrucei-me sobre o vaso sanitário, enfiei dois dedos na garganta e provoquei o vômito do sangue ingerido no castelo, objetivando inibir outras reações adversas. Quando dei a descarga, ouvi, claramente, uma mensagem. A voz de um homem, excessivamente delicada, disse, em português, com acentuado sotaque britânico: "Tarde demais, querido. Agora estamos unidos para sempre" !
FIM
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