A pedra do dia em que ela nasceu

A pedra do dia em que ela nasceu

Maju Guerra

Casados há mais de dez anos, a felicidade só não se dizia completa porque ainda não chegara a filha que planejavam ter desde o tempo de namorados. Ele, bem místico, acreditava que veria sua filha, nunca perdeu a esperança. Ela, nem tanto, já havia desistido de ser mãe. Preferia ficar calada para não magoá-lo. Quando ele colocava na cabeça que conseguiria alguma coisa era dificílimo fazê-lo desistir da ideia.

Viviam um período complicado naquela ocasião, o sogro sofrera um acidente. A preocupação com seu estado de saúde era imensa. Ele permanecia hospitalizado três meses depois do sinistro. Apesar de toda a apreensão, ela e o marido andavam com uma preocupação a mais, sua menstruação estava atrasada cerca de dois meses. Acontecimento inesperado, ela sempre fora um reloginho. Creditaram o ocorrido ao susto da quase morte do seu pai. Mesmo assim, a mulher resolveu ir ao médico. Nada sentia de anormal a não ser a barriga mais inchada, provavelmente por causa da ansiedade agora constante. Melhor prevenir do que remediar. Quanto mais cedo descobrisse, mais recursos de cura haveria.

Paciente antiga, o Dr. Pacheco examinou-a cuidadosamente, cochichou algo com a enfermeira e examinou-a mais uma vez. Ela ficou nervosa, leiga como era perguntou se existia algum tumor. Ele lhe disse, sorrindo de orelha a orelha, que o tumor iria nascer dali a alguns meses, finalmente estava era grávida. Considerava fato absolutamente inusitado do ponto de vista médico. Chamou o marido na sala de espera e deu-lha a incrível notícia. O casal se abraçou chorando, ele em um contentamento de dar gosto, sua fé se fortalecera mais como a realização do pedido.

O casal foi comemorar com a família. Agora era providenciar o enxoval cor-de-rosa da menina, decorar finalmente o quartinho do bebê, arrumar todo o necessário para o grande dia. A criança iria se chamar Letícia, “alegria” em latim. O futuro avô passou por uma melhora espantosa no hospital, pouco depois estava em casa acompanhando os preparativos.

Em um dia do começo de março pela manhã, ela começou a sentir as contrações. Tudo já preparadíssimo, foram para a maternidade. O Dr. Pacheco já os aguardava. Considerada paciente de risco, após o exame ela foi levada do quarto para a sala de parto. A família permaneceu aguardando.

Já era noite, o dia passara célere. Letícia não nascera ainda, havia um probleminha que não foi bem explicado, riscos existiam. Um pouco depois das onze horas da noite, o médico chamou o pai e lhe disse que seria feita a última tentativa. Caso o bebê não nascesse com vida, seria tarde para qualquer procedimento.

Ele não se conformou, tinha certeza de que não passaria por tamanha dor. Saiu para o jardim, escolheu com critério uma pedra no chão e sentou-se em um banco. Quem o viu contou que ele rezava baixo segurando alguma coisa na mão. Meia hora depois Letícia nasceu. Veio ao mundo com baixo peso e precisou de umas palmadas para chorar, mas era criança saudável e normal.

Chamaram o pai para lhe dar as boas novas, ele colocou a pedra no bolso e foi conhecer a filha. Mais uma vez afirmou saber que a criança vingaria. Não explicou a ninguém a relação entre o nascimento da filha e a pedra pela qual zelava tanto. As pessoas se esqueceram de questioná-lo e ficaram sem saber também, não era fato de suma importância. Seria somente mais uma extravagância daquele homem um tanto diferente dos demais.

Letícia cresceu feliz, amada, dengosa, uma graça de criança, o xodó da família.

A pedra virou lenda, toda mulher, parente ou amiga, ao saber do caso pedia para segurar a pedra na hora do parto, era tida como milagrosa. Todos os nascimentos sempre ocorreram sem complicações.

Quando Letícia se tornou uma mocinha, o pai morreu de repente. Foi muito doloroso, ele era o esteio da família. A mãe não se casou outra vez, jamais o esqueceram.

O tempo passou. A moça casou-se, foi morar em outro país, formou sua família, marido e dois filhos. Um dia, duas amigas a convidaram para se aconselhar com uma cartomante conhecida como a melhor da cidade. Letícia nunca se sentira atraída por adivinhações. Diante da insistência acabou por ir, por que não experimentar uma vez pelo menos? Foi a última a entrar, as outras saíram impressionadas. Ela entrou em um ambiente bastante simples, a senhora convidou-a a sentar-se, antes de mexer nas cartas ficou a olhá-la fixamente por um tempo. Declarou-se impressionada com o que via e perguntou pela pedra do dia em que ela nascera. A moça não se recordava direito da história, nem levara a pedra para o hospital quando os filhos nasceram. Pensava no que lhe contaram a vida toda como se fosse uma alegoria, por fim acabou por lembrar-se de tudo. A senhora, com uma voz grave, disse: não perca a pedra, guarde-a com bastante cuidado e carinho, você deve sua vida a ela. Após o vaticínio, mandou-a se retirar e não cobrou a consulta. Mandou avisar que não atenderia mais ninguém naquele dia.

Letícia então é que ficou preocupada e impressionada, desconversou e deu uma desculpa para as amigas. Pôs-se a refletir: como a mulher sabia da lenda da pedra? Era praticamente impossível, ela agora morava em outro país, conhecia poucas pessoas. Pelo sim pelo não, telefonou para a mãe e narrou-lhe todo o acontecido. A mãe respondeu que seu pai sempre foi um ser cheio de fé e de mistérios. Pelo muito que conhecia dele e acreditava nele, o mais sensato a fazer seria seguir a instrução da cartomante.

Foi logo visitar a filha e lhe trouxe a pedra. Aliás, trouxe-a na caixa de madeira feita pelo próprio marido para abrigá-la. Letícia colocou-a bem escondida no alto do armário, lugar apenas ao seu alcance. Com absoluta certeza não iria conhecer sobre o que ocorrera no seu nascimento, na cartomante não pretendia voltar. Quem sabe o pai teria combinado com a pedra o dia da sua morte? O que mais poderia ser?

Sem respostas e cheia de dúvidas, com frequência confirma se ela está bem guardada. Enquanto a caixa de madeira estiver trancada e segura acolhendo a pedra, Letícia vai ficar tranquila, é a sua crença. De tanto ouvir comentarem sobre a semelhança entre ambos, já questionou o pai: Por que me legou esse mistério e não me explicou tudo direitinho? Eu poderia ficar impressionada? Não se preocupe, estou perdendo o medo, pai, aguardo qualquer sinal.

Por enquanto, não obteve respostas...

Maria Julia Guerra.

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