A Dama da Floresta Triste

Lendas contam que existe um único e pequeno bosque em todo o mundo onde as folhas das árvores possuem uma tonalidade verde-azulada e que ao cair da noite tornam-se totalmente azul-marinhas, mas que além dessas características as folhas também segregam uma sutil quantidade de seiva adocicada que ao se acumular formam gotas que rolam como se fosse orvalho até caírem no solo. A “seiva-orvalho”, como ficou vulgarmente conhecida, escorre pelas folhas por quase todo o período de um dia e durante toda a vida de uma árvore, o que acabou fazendo com que o local recebesse o nome de Floresta Triste.

Estudiosos e curiosos ainda procuram entender tais mistérios. Os mais intelectuais e céticos fizeram testes que revelaram a terra onde aquelas árvores nasceram como possuidora de nutrientes em abundância o que faz com que a seiva seja absorvida pelas árvores em excesso e assim elas se adaptaram desenvolvendo poros específicos nas folhas que segregam boa parte da seiva para se livrar do excesso, sendo que essa seiva não é perdida já que ela volta para o solo, mais uma vez o suprindo de nutrientes.

Essa peculiaridade das “árvores-chorosas”, como também ficaram conhecidas vulgarmente, acaba por atrair tanto insetos quando aves e mamíferos dos mais exóticos, também atraindo estudiosos da ciência e dos deuses que se deixam cativar pela mágica do local. Os intelectuais ainda não entendem como aquele solo pode ser tão rico e os mais sábios acreditam que talvez aquele local tenha sido abençoado por alguma divindade. Com o tempo o mistério não pode ser resolvido e todos deixaram as perguntas para serem respondidas por lendas de bardos que já tinham viajado por muitos lugares e ouvido muitas histórias.

Em certa época o belo local esteve a ponto de ser corrompido pelas exploradoras mãos humanas que procuravam meios fáceis de adquirir ingredientes para produção de açúcar e doces, mas um tratado feito por todos os reinos passou a impedir a entrada de qualquer desconhecido não autorizado e diversos druidas foram habitar o bosque para protegê-lo. O fato é que um velho grupo de estudiosos que ainda tentava decifrar os mistérios do bosque descobriram um enorme lago no meio da floresta que só era contado em histórias infantis. O lago era a morada de seres que espelhavam em formas humanas a profunda beleza da natureza, as ninfas. Uma série de cavernas subaquáticas proibidas para mortais lhes serviam de abrigo e moradia, aqueles que lá entrassem nunca mais poderiam sair, pois lá era guardado o segredo do nascimento das ninfas, que possuíam apenas forma feminina e estavam intimamente ligadas a natureza. Toda vez que uma ninfa morria, uma árvore perecia com ela, certas vezes uma floresta inteira se tornava infértil, tudo dependia da idade da ninfa morta.

Muitas décadas se passaram desde que o tratado de isolamento da Floresta Triste fora criado e pela primeira vez em anos ele estava sendo violado numa noite clara por uma criatura que corrompia o local com sua simples presença. Seu nome era Lorde Ivhan Mathews Viliarn.

Enquanto ele percorria a bela floresta procurando um fugitivo, animais se escondiam em suas tocas com medo e flores perdiam parte de sua beleza perante aquele horrendo ser. Lorde Ivhan corria freneticamente quebrando galhos que estivessem em seu caminho e parando apenas para novamente tentar encontrar o rastro de sua presa. Sua pele era vermelha e escura como sangue coagulado, seu rosto, além de parecer ter sido esculpido pelo próprio Raargul, deus da feiúra, passava uma estranha sensação de incômodo como se, mesmo que ele fosse abençoado com grande beleza, algo de incompreensível e aterrorizador sempre seria evidente nele num misto de ódio, nojo e pena.

Seu corpo era enorme, tinha pouco mais de dois metros de altura, não possuía cabelo e era tremendamente robusto a ponto de lembrar um urso, também possuía muitas cicatrizes estranhas distribuídas pelo corpo que pareciam ter nascido com ele, algumas eram tão profundas que faziam leves declives em sua pele. Apesar de sua aparência ele usava roupas nobres e vistosas, um manto tão belo quanto as suas outras vestimentas cobria seu corpo e o deixava com ares do verdadeiro lorde que era.

Mais uma vez havia parado para procurar os rastros do pequeno ladrão, agachou-se e enquanto sentia a terra com suas enormes mãos, seu nariz aguçado, que era cerrado e liso não possuindo cartilagem alguma, ouriçou ao sentir um cheiro familiar. A vítima estava próxima. Sorriu com sua bocarra e dentes salientes que, combinados a sua ausência de narinas, faziam que ele parecesse demais com um estranho javali humanóide. Em seguida foram suas longas orelhas que ouriçaram ao perceber um sutil estalar de galhos numa árvore perto de onde estava. Foi até ela sem pressa.

Quando chegou perto desferiu um rápido e poderoso golpe que fez a estrutura da árvore se abalar o suficiente para que um jovem pirralho caísse dela. O garoto não parecia ter mais de doze anos, vestia roupas sujas, velhas e rasgadas, arregalou os olhos espantados para o lorde, este lhe dava seu sorriso macabro com um ar de malícia de seus olhos negros enquanto cruzava os braços frente a ele.

- Desista pivete. Você é um ótimo ladrão para sua idade, mas escolheu roubar da pessoa errada. - sua voz era rouca como um trovão e segundos depois estendeu a mão para o garoto.

Sem proferir nenhuma palavra o pequeno tirou do bolso um anel vermelho que possuía a gravura de uma chama e um anel azul que possuía a gravura de uma pedra de gelo, colocando-os em seguida na mão do outro. Depois o jovem ficou cabisbaixo ainda sentado no chão e aparentemente deprimido.

- Não sei quem te contratou para fazer tal serviço, mas depois que for dizer para seu contratante que falhou vá até minha mansão. Não vou te tratar como o lixo que te tratam.

O garoto sorriu e acenou a cabeça como agradecimento. Não era mudo, mas não conseguia dizer nada na presença do lorde. Depois se levantou com cuidado, ainda sem jeito por estar sob o olhar do outro e correu da floresta sumindo em meio às árvores.

O lorde olhou para os dois anéis em sua mão e deu um sorriso pensando consigo: “Nem eram objetos de tão grande importância, mesmo assim o infante me deu trabalho... Será um ótimo subordinado se treinado devidamente...”; guardou os anéis na algibeira e resolveu voltar para sua mansão mal percebendo que estava perdido.

Apenas agora que sua atenção não se voltava mais à caçada notava quão estranho era aquele local. Nunca havia entrado numa floresta tão bela ao mesmo tempo em que sombria. Não demorou a entender que estava na Floresta Triste, muitos eram aqueles que já haviam ouvido pelo menos uma ou outra história sobre o local de nascimento das ninfas e chegou a cogitar a idéia de vasculhar um pouco para, ao menos por alguns instantes, presenciar a beleza suprema de uma delas, mas afugentou tais pensamentos lembrando que o local era protegido por um tratado. Já tinha problemas demais com autoridades e não pretendia acumular outros.

Orientou-se pelas estrelas para descobrir a direção do norte e depois de se localizar seguiu na direção de onde acreditava ter vindo. Minutos de caminhada se passaram até começar a ouvir uma doce e suave canção. Instintivamente parou de seguir seu caminho e começou a procurar a origem de tão bela melodia. A voz que a cantava era feminina e um tanto grave com ares de madura, também possuía uma tonalidade sedutora. Não havia letra, era apenas um canto de lamento ao vento (e era realmente uma música melancólica).

Na medida em que Ivhan adentrava mais em busca da dona de tão agradável voz sentia mais profundamente uma estranha dor de angústia que o consumia por dentro. Nunca fora empático em toda sua obscura vida, mas não conseguia negar o fato de que aquela simples melodia o envolvia profundamente e isso o deixava incrivelmente intrigado.

Aos poucos uma pequena lagoa foi se tornando visível e estava apenas iluminada pelo luar presente. Na lagoa uma mulher de suprema beleza podia ser encontrada, nua. Era uma ninfa, não havia possibilidades de pertencer à outra raça. Ela não o notara e continuou a banhar-se em breves mergulhos com a água escorrendo por todo seu sinuoso corpo. Uma característica estranha dela eram seus olhos e cabelos, ambos tão negros quanto a noite, cor rara de ser encontrada entre ninfas (geralmente elas possuem tanto cabelos quanto olhos claros). Sua pele era branca, porém levemente rósea, seus lábios eram também estranhamente negros o que dava a ela um ar sedutor irresistível. Parecia não ter mais de vinte anos.

Enquanto Ivhan observava, já extremamente atraído por ela, tentou se aproximar mais alguns passos e não percebeu quando pisou num galho seco próximo ao seu pé. Ela cessou seu canto e procurou de onde viera o som, descobriu que estava sendo observada, entretanto não parecia se incomodar com sua nudez, nem tentava esconder as partes visíveis de seu corpo com as mãos ou submergindo na água.

- Quem está ai? Apareça. – ela disse em tom firme enquanto saía da lagoa naturalmente.

O lorde ainda ficou atônito por instantes ao ver o comportamento daquela pessoa, nunca em nenhum momento de sua longa vida sequer sonhara com a possibilidade de encontrar uma jovem que se comportasse com tal postura e com tantas características maduras. Estava confuso, mas se recompôs rapidamente e adentrara no campo de visão dela se apresentando com sua grave voz: “Me chamo Lorde Ivhan Mathews Viliarn, perdoe-me por aparecer assim, mas ao ouvir seu belo canto enquanto passava por perto comecei a procurá-la. Quando a encontrei paralisei perante sua beleza e não consegui voltar a mim.”

Ivhan falava com compostura agindo como o nobre que era, não desviando dos olhos dela nem para novamente admirar aquele belo corpo. Talvez aquela fosse a criatura mais linda que já encontrara, mesmo assim sabia como respeitar a beleza de uma dama nua. Quase não conseguiu manter sua postura quando notou que ela simplesmente retribuiu seus olhares sem nenhum ar de espanto, como se ela não tivesse percebido toda sua feiúra, mas isso era impossível.

A ninfa apenas sorriu com seus lábios negros observando a seriedade de seu ex-admirador secreto. Foi até uma pedra um pouco distante e pegou uma espécie de longo vestido branco o pondo e voltando para perto do lorde em seguida. Ela parecia uma criança ao lado dele, pois tinha quase metade de seu tamanho.

- Me chamo Ninse meu caro lorde, mil perdões por ter agido com tanta descortesia perante a ti. - ela disse com sutileza enquanto o reverenciava formalmente e demonstrava um sorriso malicioso de seus lábios negros.

O lorde logo percebeu o tom de ironia na voz dela, mas não reclamou, nem disse nada, apenas retribuiu o sorriso da mesma forma. Já começava a pensar em sair dali. Sentia que algo não estava certo.

- É um belo nome, mas pare de besteiras, sei que a nobreza não é nada perante seres criados pelos deuses como uma ninfa.

Ela se ergueu e sussurrou: “Quem lhe disse que sou uma verdadeira ninfa?”; seu sorriso continuava malicioso, tudo parecia mera brincadeira para ela. “Tenho apenas parte da essência de uma...”.

- Então o que você é? – ele ousara perguntar com certo receio, parecia que cada minuto com ela havia uma nova surpresa e já não sabia mais se gostaria de ter outras delas.

- Possuo características de ninfa e dríade, mas não nasci de nenhum desses dois seres, nem ao menos da forma como eles nascem. “Isso” que sou não tem nome, nem faço idéia do que eu poderia ser, mas se quiser pode chamar “isso” de níade.

Apesar de sem graça a brincadeira com os nomes o fez soltar um esboço de sorriso. Ninse o estava cativando cada vez mais, isso o incomodava. Era extremamente curioso o fato dela ser um híbrido de duas criaturas, coisa tão rara, e ainda de criaturas muito próximas dos deuses. Apesar de tudo ele não podia se deixar levar por sentimentos tolos, precisava sair dali o mais rápido possível senão estaria nas mãos dela. Sabia disso. Sentia isso.

- Foi um prazer conhecer-te, mas infelizmente tenho que ir. Tenho coisas a fazer e lugares que necessitam de minha presença. Adeus.

Quando se virou para ir embora as duas mãos delicadas dela seguraram uma de suas peludas, rubras e robustas mãos. “Já? Pena... pensei que hoje finalmente me deitaria com um lorde...”; ele virou o rosto para ela que mostrava suas intenções num sorriso, este que ele retribuiu novamente da mesma forma.

“Por que?”, pensava Ivhan sem encontrar resposta. Não importava, sabia que talvez nunca mais pudesse ter a oportunidade de se deitar com uma mulher sem ter que forçá-la a isso. Só havia um meio que ele conhecia de fazer aquilo, de forma brutal e agressiva, como um animal. Não seria diferente com a suposta ninfa-dríade. Passou a língua pelos próprios lábios momentos antes de atacá-la como uma fera atacaria sua presa, rasgou-lhe as roupas e não fez nenhuma gentileza. Também não foi nem um pouco rápido, pois o lorde queria aproveitar ao máximo aquela dádiva que os deuses colocaram em seu caminho. Apesar de tudo Ninse não reclamou em nenhum momento, parecia até estar gostando de todo aquele quase sadismo.

Enquanto a fera atacava a bela, ele continuava tentando entender o que a motivava a ser assim. Pessoas criadas em florestas com animais geralmente são serenos e tranqüilos. Além disso, por que ele? Tinha total e plena consciência de que além de sua aparência horripilante também não era um ser que passasse grande confiança nos outros. Era como se a palavra “traição” estivesse eternamente vinculada a seu nome. Não ficou por muito tempo tentando entender tais coisas. Queria gravar cada instante daquele momento, casa mísero segundo de prazer que sentia e que nunca mais se repetiria.

Escárnio é uma das únicas palavras que poderiam ser pensadas por qualquer um que visse aquele ato tão profano. Um ser belo de ares tão delicados e puros sendo domado, judiado e maltratado por ser tão tenebroso. Era também como se parte da obscuridade daquele monstro estivesse contaminando ela em meio ao ato, como se cada vez mais ela gostasse de se submeter a ele, como se cada vez mais sorrisse com prazer a cada ato violento cometido contra ela.

Quase duas horas depois ambos estavam repousando, Ninse com seu corpo deitado sobre o de Ivhan. Ambos suados e exaustos, porém satisfeitos. Enquanto ela deslizava seus delicados dedos pelas profundas cicatrizes do corpo dele, suspirou:

- Adoraria ver você de novo... - palavras que chegaram aos ouvidos do lorde como um presente - ...mas infelizmente nunca me encontro com ninguém mais de uma vez. – sua felicidade se tornou uma mistura de seriedade e ódio. Ela continuou: - Faz parte de mim, não me deito com o mesmo homem duas vezes...

“Por que?”; ele tornava a se questionar. “Por que desse jeito?”; não conseguia acreditar que os deuses poderiam ser tão cruéis até esse ponto. Sabia que não estava na lista dos preferidos Deles, entretanto não acreditava que seus atos cruéis fossem motivos suficientes para que o punissem de tal forma. Ela era perfeita, sua aparência inocente combinada com uma personalidade desinibida, tanto rebelde quanto submissa. Saber que nunca mais a veria lhe causava uma espécie de dor que o corroia como se incontáveis pequenos vermes o estivessem devorando de dentro para fora. Saber que outros ainda deitariam com ela fazia com que essa dor se transformasse numa imensa massa de tristeza e ódio. Ninse era dele agora e não seria de mais ninguém.

O lorde fechou os olhos e levou uma das mãos até a face dela, acariciando-a como um apaixonado, ela o acompanhou e também fechou seus olhos para sentir melhor as carícias. Ambos pareciam um casal de amantes. Ninse sentou-se sobre o colo dele quase como se já quisesse recomeçar seus anteriores atos de prazer, mas abriu os olhos quando ouviu duas simples palavras serem sussurradas por seu amante: “Me perdoe...”.

Abriu os olhos e percebeu que ele permanecia de olhos fechados, não entendeu o porquê das palavras. Pensou que talvez ele se achasse um péssimo amante e estivesse com vergonha, tentou consolá-lo: Não precisa se desculpar, amei cada instante. Você foi o melh...- mas suas palavras foram cortadas de súbito pelas mãos dele.

Ivhan não levou dedos a sua boca, simplesmente começou a apertar o pescoço dela com muita força. Iria matá-la. Ninguém mais a teria, mas também não queria olhá-la nos olhos enquanto tirava a vida de ser tão tentador.

A ninfa-dríade não conseguia acreditar que estava morrendo. Sentia que ele a amava, então por que fazia aquilo? Pela primeira vez havia encontrado um homem que, apesar da aparência, soube respeitá-la e entendia seus gostos escusos. Talvez pudesse entender o sofrimento de sua vida solitária e o fato de que nunca poderia se apaixonar. Quem sabe exatamente por entendê-la que a estava matando. Quem sabe ele não queria deixar que ela continuasse vivendo em sofrimento... Tornou a fechar seus olhos e aceitou a sua morte nas mãos do único que soube lhe dar prazer, o único no mundo que compreendeu suas dores e lamentos. Morreu sorrindo.

Quando o lorde sentiu que ela não mais se movia abriu os olhos e se espantou com o sorriso no rosto dela. Novamente sem conseguir entender a situação começou a pensar nos porquês dela ter morrido com um sorriso no rosto e não encontrou nenhuma resposta. Não cogitou a idéia dela ter se apaixonado e ficado feliz por morrer nos braços dele, se achava horrendo demais para isso. Não aceitou o pensamento de que ela fosse uma depressiva e suicida que não conseguia tirar a vida e estava feliz de que encontrara alguém que pudesse fazer isso por ela. Não conseguiu formular mais nenhuma possibilidade. Nada. Não a conhecia, não a compreendia... Era impossível.

Consumido pela curiosidade subitamente lembrou-se de um antigo e proibido ritual que poderia trazer de volta uma pessoa do mundo dos mortos, mas que para isso precisava do corpo de uma pessoa viva que fosse do mesmo sexo. Assim poderia perguntar para ela própria o motivo daquele sorriso e talvez convencê-la a ficar com ele para sempre.

Pegou o corpo de Ninse cobrindo-o com seu manto e mais uma vez seguiu na direção que acreditava ser a da sua mansão. O caminho era longo e levaria algumas horas até chegar lá, principalmente por que deveria tomar cuidado para não ser encontrado por nenhum dos druidas que guardam o bosque.

Quando chegou na “Mansão dos Mortos” estava exausto e precisava descansar, mas não antes de terminar seus afazeres. Foi recebido por um estranho mordomo idoso que possuía aparência um tanto mórbida e perguntou quase sem voz ao reparar o corpo feminino que seu amo carregava: “Outra de suas vítimas senhor?”

- Sim e não. Vá até a biblioteca e traga de lá um pergaminho de conservação. Estarei no laboratório. - o mordomo subiu para o segundo andar enquanto Ivhan descia para o subsolo.

A mansão era enorme, possuía 5 andares, jardim interno e vários cômodos particulares. Era realmente a morada de um nobre, as paredes possuíam incontáveis obras de arte, tais como os muitos objetos e estátuas dispostos pelos corredores e aposentos. Entretanto mais ninguém além do mordomo parecia trabalhar ali.

O lorde desceu até o lugar mais rústico da mansão, parecia que as paredes do local nunca foram exatamente bem esculpidas ou trabalhadas. Na verdade aquilo não passava de uma caverna muito organizada. No centro havia quatro espécies de camas de pedra esculpida. O corpo de Ninse foi posto numa delas, depois ele se dirigiu até uma mesa próxima com muitos tubos de ensaio e frascos de líquidos das cores mais variadas. Para um nobre obscuro ele tinha um interesse grande demais por alquimia.

Após misturar alguns componentes exóticos aproximou-se da bela moça e derramou o líquido em cima dela que magicamente pareceu preenchê-la por completo (mesmo não havendo o suficiente para tal). O mordomo não demorou a chegar com o pergaminho em uma bandeja. Ivhan o pegou, abrindo e lendo em seguida uma série de palavras estranhas de idioma confuso.

Um círculo de energia brilhante com vários símbolos dispersos em seu interior surgiu no chão em torno da cama de pedra onde estava o corpo dela, em seguida este pareceu flutuar por alguns instantes quando um vento incompreensível surgiu envolvendo-o. Após o lorde terminar de ler todas as palavras do pergaminho tudo cessou e o que havia escrito no pergaminho desapareceu, ele o amassou e jogou contra o chão ao qual seu mordomo pegou para jogar fora quando subisse.

- Agora que o corpo dela não deteriorará tudo que posso fazer é pesquisar sobre o ritual e encontrar um outro corpo. - disse ao se aproximar da ninfa sem vida, depois virou-se para o mordomo - Passarei um bom tempo na biblioteca de agora em diante, avise a conhecidos meus que estou a procura de um corpo feminino que possua aproximados vinte anos e um metro e sessenta de altura, também quero livros que falem sobre rituais de reanimação corporal. Contrate alguns ladrões e pesquisadores para procurarem pelos livros. Dinheiro nunca será problema.

O mordomo apenas assentiu afirmativamente com a cabeça e subiu enquanto seu senhor continuou lá naquele pequeno laboratório observando o corpo dela por alguns minutos. Respirou fundo e também subiu indo para a biblioteca. Havia muito a ser feito.

Depois de pouco mais de um ano de pesquisa não descobriu nada relevante, o ritual que pretendia fazer era um método muito antigo de sua linhagem e pouco conhecido por outros. Era um dos raros meios que havia no mundo de burlar a morte e exatamente por isso era mantido em segredo. Apesar de ser eficaz, seus ancestrais também diziam que nunca deveria ser usado em membros da família, poderia trazer efeitos desastrosos.

Os ladrões e pesquisadores contratados também não ajudaram em nada, sendo mortos pelo lorde por prestarem um péssimo serviço. Mesmo procurando em antigas mansões de sua família nenhum deles teve sucesso algum. Ivhan estava cansado.

Enquanto repousava em seu banho pensando se conseguiria dar cabo de seus planos ouviu uma batida na porta e após questionar quem perturbava seu momento de descanso uma voz jovem respondeu: “Sou seu mensageiro, senhor. O velho monge mandou uma resposta.”

“O monge?”; seus ânimos voltaram. Saiu de seu banho enrolando-se num pano qualquer e abrira a porta. Um garoto muito novo estava reverenciando-o de cabeça baixa e lhe estendeu um pergaminho que dizia:

“Lorde Mathews, tenho um presente para você.

Seu amigo monge.”

“Aquele velho depravado encontrou um corpo...”; raciocinou consigo mesmo em meio a um sorriso.

O jovem ergueu a cabeça olhando-o e esperando novas ordens, estava feliz por servir seu mestre. Ivhan fora o único que realmente o acolhera e o tratara como uma pessoa, mesmo depois dele tentar roubar do lorde dois anéis que julgava serem muito preciosos.

- Vá falar com o criado para que ele prepare a carruagem, temos uma viagem para fazer. Em seguida vá até o laboratório e pegue o corpo de Ninse, coloque-o num caixão e leve-o até a carruagem.

- Sim senhor. – o jovem levantou-se e saiu apressadamente.

Lorde Ivhan foi até seus aposentos e colocou mais uma de suas roupas dignas de um nobre que contrastavam com sua aparência repudiosa. Alguns minutos depois desceu e saiu da mansão encontrando a carruagem pronta. Seu criado e mensageiro o esperavam. O primeiro tomou o lugar do condutor, o segundo olhou curioso para o lorde e perguntou: “Devo ir junto, senhor?”

- Não. Tenho uma missão para você e não será como meu mensageiro, tome... – entregou ao jovem um pergaminho que foi pego sem hesitar, mas que ainda não fora aberto.

O jovem esperou seu senhor partir. Apesar de ter o título de mensageiro também era um explorador e ladrão pessoal de Ivhan. Quando a condução do lorde não pode mais ser vista ele abriu o pergaminho. O que prendia o rolo não era uma fita, mas um aro, na verdade um anel vermelho com a gravura de uma chama. O mesmo anel que tentara roubar de seu lorde há alguns meses atrás. Ao terminar de ler os objetivos de sua missão ele sorriu e sussurrou consigo: “Meu senhor é realmente ambicioso...”; colocou o anel no indicador de sua mão direita. Abriu a mão e magicamente uma chama surgiu nela com parte dos movimentos ígneos correspondendo aos movimentos da mão dele. Levou o pergaminho até a chama o queimando por completo depois fechou a mão fazendo o fogo sumir. Pegou sua montaria e seguiu na direção oposta da carruagem.

Após longas horas de uma viagem dificultosa eles chegaram ao local da cabana do monge e este já os esperava na porta como se soubesse de sua chegada. Ao lado dele estava disposta uma estranha estátua feminina. A carruagem parou frente à cabana e Ivhan desceu estranhando a estátua. O monge, com seu manto e capuz que cobria o rosto, sorriu com malícia ao perceber a atenção do lorde voltada para o monumento.

- Gostou dela? É meu presente para você...

- Uma estátua?! - o ódio era visível na face de Ivhan o que fazia com que sua aparência se tornasse ainda mais assustadora. - O que devo fazer com uma maldita estátua?

O monge se mostrava indiferente apesar de tudo, apenas sussurrou docemente como se ninguém tivesse falado bruscamente com ele: “Ela está viva... Apenas comece o ritual...”

O lorde ignorou o fato de não ter falado para o monge sobre seus objetivos e, ainda com uma expressão de descontentamento misturada com raiva reprimida, se afastou indo até a carruagem, removeu de lá um grande caixão que apesar do tamanho não parecia pesar tanto por ele o conseguir carregar com extrema facilidade. Abriu o caixão e depois foi até a estátua que também ergueu sem problemas colocando-a deitada ao lado do caixão. Pegou de dentro de suas vestimentas um objeto enrolado em panos, desenrolou-os revelando um curvado e velho punhal. Fez um corte em sua mão esquerda e apertou a ferida fazendo-a sangrar em cima dos lábios de ambos os corpos, primeiro no de Ninse e em seguida no da estátua feminina.

Quando as gotas de sangue corrompido do lorde tocaram os lábios da estátua eles, ao invés de escorrem pela superfície da mesma, foram sorvidos por ela que em seguida começou a descascar aos poucos revelando uma jovem não muito bela, porém atraente, que possuía uma estranha cicatriz de garras em seu pescoço, cabelos castanho claros, pele branca e praticamente a mesma estatura de Ninse, mas com um corpo menos adulto.

- Qual o nome dela? – perguntou o lorde voltando-se para o monge, este apenas respondeu com seu sorriso malicioso em face: - Isso realmente importa?

Ivhan tornou a dar-lhe as costas e concentrou-se novamente no ritual. Pegou o corpo da jovem desconhecida e colocou no caixão por cima do corpo de Ninse. Depois o fechou e por toda a tampa escreveu com seu dedo manchado de sangue palavras ancestrais e símbolos arcanos. Nada em especial aconteceu com o caixão durante todo o tempo, mas quando ele o reabriu apenas um corpo lá se encontrava. Não era o corpo da jovem desconhecida, mas também não parecia o corpo de Ninse. Era uma outra mulher com as características de ambas.

Atônito, ele retirou o corpo de dentro do caixão. Ela respirava. Possuía um cabelo loiro sem vida, similar ao da jovem desconhecida, também tinha suas cicatrizes no pescoço, o corpo era sinuoso e volumoso como o de Ninse, mas possuía certa palidez mórbida e seus lábios não eram negros nem róseos, mas sem vida. “O que aconteceu?”; o lorde sussurrou para si.

- Fazia algumas décadas desde a primeira vez que vi esse raro ritual de reanimação. Conheço sua família faz séculos, Lorde Mathews, e creio que nunca lhe disseram o real funcionamento de tal rito. Os corpos de ambas se fundiram para dar origem a um novo, as personalidades de ambas também se misturaram, entretanto aquela que tiver maior determinação prevalecerá... E creio que não será Ninse.

- Você! Como você sabe o nome dela? Você armou tudo isso, não foi?! Monge egoísta!

Lorde Ivhan estava profundamente irado e incontrolável, correu na direção do monge querendo estrangulá-lo, parti-lo em dois, mas ao chegar a meio metro de distância dele paralisou. Algo o impedia de tocar no monge e seu ódio apenas aumentara, ainda tinha que olhar para o maldito sorriso dele. Fez a única coisa que podia e recuou, foi até o corpo e lançou uma ameaça: “Se não posso matar você, matarei ela!”

O monge continuava indiferente, não reagia. O lorde ergue o punhal para fincar no peito da jovem que acabara de ganhar vida, mas quando olhou a serenidade de seu sono hesitou. Não conseguiria tirar a vida que continha parte da alma da única que talvez amasse. Pegou o corpo dela e foi em direção à carruagem dizendo: “Se eu não posso ter minha Ninse de volta, você não terá essa que desconheço.”

- Lorde Mathews, se você realmente quisesse Ninse viva não a teria matado com suas próprias mãos.

As palavras do monge o fizeram parar pouco antes de subir na condução. “Esse maldito velho é mais poderoso do que deixa transparecer...”, pensou consigo, depois olhou para o monge e disse: “Às vezes, cego por seus sentimentos, uma pessoa comete erros pensando agir certo.”; finalmente subiu na carruagem e foi embora deixando o monge e seu sorriso debochado para trás.

Quando chegou a sua residência não sabia o que fazer com a desconhecida. Ficou ainda alguns minutos a observando na carruagem. Queria matá-la, mas não podia. Também sentia que ela lhe passava uma estranha sensação de que precisava cuidar dela e protegê-la de tudo e qualquer coisa que a pudesse fazer mal. “Preciso protegê-la de mim...”; sabia que iria corrompê-la se ficasse com ela. Saiu da carruagem e disse ao criado: “Guarde as coisas, volto daqui a algumas horas.”

Era uma tarde fresca de primavera e já podia ver a Floresta Triste no horizonte quando percebeu um grande número de luzes e certa movimentação em meio ao local. Fazia tempo que não passava ali perto, provavelmente algum druida ou uma ninfa deu falta de Ninse e não a encontrando resolveram aumentar o número de guardiões do local. Não poderia entrar. Avistou ao longe um campo de margaridas noturnas muito próximas do bosque. Foi até lá. Deixou o corpo dela em meio às flores e acariciou levemente sua face. Era a primeira vez que tinha tais sentimentos e não sabia o que poderia fazer além de deixá-la viver sua própria vida. Ergueu-se, deu as costas e foi embora nunca mais a vendo novamente.

Horas depois ela acordou sem saber quem era, onde estava ou como fora parar em meio a um campo de flores. Sentia frio, um estranho vazio em seu peito e um peso na alma, o peso de duas vidas sofridas. Percebeu que havia um cordão em seu pescoço, cordão grosso de prata com um pingente que possuía a gravura de três vês nele. Lágrimas começaram a sair de seus olhos. Não conseguia entender por que um objeto tão simples parecia lhe causar tanta dor e sofrimento. Nem fazia idéia de quem poderia ter lhe dado aquilo, mas se sentia mais segura ao mesmo tempo em que triste enquanto o segurava.

Algo lhe dizia que boa parte de sua vida seria exatamente como esse seu despertar: Uma série de incompreensões e tristezas sem descanso. Viu luzes no bosque próximo e, com eternas esperanças de se encontrar, dirigiu-se para o local que seria sua morada por muito tempo. Das poucas vezes que ouvira falar de um lorde chamado Ivhan Mathews nunca sentira nada, nem ao menos curiosidade.