Quando anjos nascem...
Havia uma porta a sua frente. Não se lembrava de como fora parar ali, na verdade não se lembrava de nada. Tudo ali era estranho, por que não havia nada além da porta, o que fazia a existência dela um paradoxo. Sentia um chão sob seus pés, mas onde deveria haver um chão não conseguia ver nada além de um infinito branco. Também não sabia se haviam tetos ou paredes que, da mesma forma que o chão, pudesse sentir, mas não ver, por que quanto mais andava para procurar por mais alguma coisa naquele mar de nada e brancura, mais sentia que não saia do lugar e se olhava para trás a porta ainda estava a menos de cinco metros de distância. Não conseguia se afastar dela mais que isso. Chegou a cogitar a idéia de que a porta o estava seguindo.
Tentou ver o que havia atrás da porta não a abrindo, apenas dando a volta por ela. Nada. Na verdade a única coisa que percebeu e que apenas serviu para aumentar o paradoxo daquilo tudo foi que independente de qual lado da porta ele estivesse, as maçanetas sempre ficavam no extremo direito, mas quando ele via a porta lateralmente ambas sempre pareciam estar apenas em um único extremo. Cansado, agachou-se e ousou olhar pelo buraco da fechadura, mas tudo que viu foi mais branco.
Quando se levantou havia algo escrito na porta que antes não estava lá: “Me abra...”. Sorriu e sussurrou para si mesmo: “Os deuses ainda tem senso de humor...”; desistiu de tentar entender tudo aquilo e apenas a abriu. Nada. O outro lado era exatamente o mesmo de quando deu a volta na porta, pelo menos se sentiu um pouco aliviado quando percebeu que a maçaneta do outro lado estava onde devia. Notou também que havia outra coisa escrita desse lado da porta: “Atravesse...”; sorriu novamente e quase cogitou a idéia de ver se a inscrição do lado oposto permanecia, mas já estava ficando com dores de cabeça e resolveu simplesmente atravessar.
No momento em que botou os dois pés do outro lado teve uma sensação similar a um desmaio. O branco acabara e tudo ficou escuro, seus olhos doíam um pouco e se sentia um tanto fraco. Abriu os olhos evitando a luz. Acordara em meio a uma vasta planície. Ficou sentado alguns minutos tentando reconhecer o local, mas ainda não se lembrava de nada, nem de quem era. Quando se levantou viu ao longe uma belíssima cidade com enormes muralhas brancas como marfim. Resolveu ir até ela.
Enquanto caminhava observava um tanto perplexo a beleza daquele lugar e de como tudo ali era tão harmonioso, de modo que sentia como se não estivesse mais no mundo dos vivos, mas também sentia que faltava algo para que pudesse dizer que aquilo era o mundo dos mortos - não se sentia totalmente livre dos pesares da vida.
Não haviam marcas da destruição causada pela mão humana naquele mundo. Nenhuma árvore arrancada, nenhum pedaço de terra destruído ou corrompido. Nada. Não encontrou nem ao menos uma estrada que levasse para aquela cidade estranha - o que não era preciso, pois ela podia ser vista de muito longe.
Apesar de seu objetivo aparentemente estar muito longe, em poucos minutos de caminhada ele já se encontrava frente a seus portões, estes se abriram silenciosamente antes que ele ousasse procurar um meio de fazê-lo. Os enormes portões que não possuíam uma única alavanca, alça ou apoio, envergaram-se abrindo passagem para o transeunte. Logo na entrada um jovem de cabelos curtos e uma escassa barba, ruivos, o esperava.
- Seja bem vindo, filho de Elenniaph.
A voz dele era amigável e seus olhos negros o fitavam. Aquele nome que o estranho recepcionista proferira não lhe era estranho. Elenniaph era o deus patrono da inteligência, raciocínio, conhecimento e demais virtudes ou capacidades mentais. De alguma forma sabia que já fora um devoto dessa divindade e que era um jovem intelectualmente dotado, quase sempre lendo muitos livros.
- Pode me chamar de Rufius. - disse o jovem ruivo, rompendo sua linha de pensamento.
- Eu... não me lembro como me chamo. - respondeu.
- Tudo bem companheiro, não se preocupe, ninguém aqui sabe nada de seu próprio passado.
O jovem achou estranha essa afirmação tão exata de alguém que parecia ter tanta certeza de quem era, mas não se importou muito, ainda queria descobrir outras coisas de maior importância naquele momento.
- Onde estou?
- Você está em um semi-plano de existência próximo a Esfera Central onde residem os deuses. Nós chamamos esse local de Mundo Zero, por que é como se você recomeçasse toda sua vida do princípio aqui. Pense nisso como uma segunda chance. Venha comigo, lhe explicarei melhor no caminho até chegarmos ao santuário.
Sem questionar ele o seguiu, confiando plenamente naquele ruivo desconhecido que se auto-intitulava Rufius. Quando finalmente adentrou na cidade os portões atrás dele fecharam-se lentamente. Observando com mais atenção notara que as pessoas da cidade se comportavam como se nunca tivessem perdido a memória, como se tivessem total e plena certeza de quem eram.
- Se você está aqui, e definitivamente está, significa que você morreu, mas não foi uma morte comum. Você deu sua vida por alguém, um ato heróico e nobre. Um ato divino. Quando uma pessoa morre dando sua vida por outra, ela vem ao Mundo Zero.
Enquanto Rufius continuava sua explicação o jovem não conseguia parar de se sentir cada vez mais atraído pelo local. Lá se encontravam pessoas de todos os sexos, e quase todas as idades, sentia apenas falta dos mais idosos. Quase todos carregavam livros, incluindo as crianças. Não livros comuns, como romances de um escritor famoso qualquer, mas livros de grande conhecimento. Como “As Treze Vidas do Primeiro Anjo”, do grande necromante Leni Trincaust, e até o livro lendário “Segredos Sobre a Criação” que, dizem os mais sábios, ter sido escrito por uma divindade séculos atrás esquecida. Era estranho o modo como todas aquelas pessoas que deram suas vidas por outras possuíam tanto interesse pela leitura de obras tão profundas.
- As pessoas que dão suas vidas em atos heróicos transcendem para esse plano por possuírem demasiada afinidade para se tornarem celestes. Acho que também é uma forma de piedade que os deuses têm para conosco. Como eu disse antes, uma espécie de segunda chance.
Apesar de estar prestando toda a atenção nas palavras do estranho ruivo, apenas uma delas cativou sua curiosidade: - Celestes?
- Sim. São vulgarmente conhecidos como anjos. Existem vários tipos de celestes, todos que você vê aqui na cidade são “anjos” sem nenhuma missão no momento.
- Então, que tipo de anjo eu serei?
- Isso que iremos descobrir meu amigo.
O santuário que havia no centro da cidade era um local enorme, possuía grandes e belíssimos vitrais com a imagem de diversas divindades, mas parecia totalmente vazio. Seguiram até o final do salão principal parando em frente a uma porta dupla onde o estranho guia ruivo disse: - Haja o que houver, não a olhe nos olhos.
Em seguida ele abriu a porta sem esperar por qualquer interrogativa do outro. Na pequena sala uma mulher idosa estava sentada numa espécie de cadeira de balanço. Possuía longos cabelos brancos e usava um manto com capuz que lhe cobria a cabeça, algumas pulseiras eram seus únicos adornos, ela lembrava levemente uma velha cigana.
- Matriarca, - disse o ruivo enquanto a reverenciava – trouxe um recém chegado.
A velha sorriu e levantou-se caminhando em direção ao jovem. Tocou-lhe o rosto e sussurrou para ele com uma voz levemente rasgada: - Vejo que você teve um lindo passado e ainda terá um belo futuro pela frente...
O jovem apenas fez o que seu mais novo companheiro havia lhe dito e evitou os olhares daquela senhora, mas estranhamente estava tomado por uma tremenda vontade de olhá-los. Não estava apenas curioso, sentia também como se precisasse acima de qualquer coisa encará-la. Reprimiu esse desejo e tentou desviar seus pensamentos para o toque confortável dela. Não sabia como, mas aquela simples carícia amigável dela lhe deixava mais a vontade.
- Vejo que Rufius já lhe avisou sobre não me olhar nos olhos. O fato é que se fizer isso você se lembrará de quem realmente é, mas morrerá. Celestes não podem saber sobre seu passado para que isso não interfira em suas novas tarefas. Vir até o Mundo Zero é como reencarnar, aqui as pessoas devem aceitar uma nova vida e uma nova identidade... Mas creio que isso não se aplica a você meu jovem.
- Matriarca? Que queres dizer com isso? Ninguém pode renegar uma nova existência como celeste... – disse o ruivo surpreso com as palavras da velha senhora.
- Verdade, mas ao ler as linhas que o destino reservou para esse jovem vi que ele ficará pouco tempo conosco. Vamos apenas seguir com o que já foi escrito no livro da vida dele e você entenderá.
A Matriarca afastou-se e foi até uma estante onde pegou uma caixa. Os dois visitantes apenas ficaram quietos observando e pensando nas palavras dela. “Como uma alma mortal pode contrariar a lei dos deuses?”; o ruivo pensava, enquanto o jovem se focava em outras dúvidas: “Se meu lugar não é como um celeste, para onde irei? O que me tornarei?”.
A caixa, após aberta continha cinco objetos diferentes: uma margarida, uma pena, uma espada em miniatura, um escudo também em miniatura e um rubi lapidado em forma de coração. “Escolha...”; disse ela de modo afável.
O jovem observou a pena por muito tempo, nem percebendo a existência de outros objetos, mas repentinamente voltou seus olhos para o escudo e pegou-o sem hesitar. A senhora estendeu-lhe a mão e ele entregou o pequeno objeto.
- Seu destino continuará como um guardião. Venha comigo, vamos descobrir quem será seu protegido.
Ambos a seguiram apesar de ela ter chamado apenas por um deles. Ao atravessar uma outra porta entraram numa sala que não possuía nada além de uma estranha fonte. A Matriarca ajoelhou-se frente à fonte e seus acompanhantes fizeram o mesmo, o ruivo à sua esquerda e o outro à direita. Depois ela tocou a água com a mão fazendo movimentos circulares e aos poucos a imagem de uma floresta apareceu. Por entre as árvores, sobre algumas folhas secas, uma estranha mulher dormia. Apesar de usar um vestido velho, sujo, um pouco rasgado e com exóticos detalhes de folhas, flores e vinhas ela cativara o jovem de alguma forma. Nem mesmo a estranha cicatriz, aparentemente feita pelas garras de uma fera, que ela possuía no pescoço o incomodava.
- Ela é linda... – o jovem falou sem nem perceber.
- Anastacia Le’Morg, uma jovem amaldiçoada e solitária, porém uma alma pura. Nem todas as pessoas no mundo possuem um celeste guardião para zelarem por elas, os deuses escolhem apenas aqueles mais necessitados ou mais puros de coração. Ela é uma mistura de ambos. Outra coisa que você precisa saber é que celestes nunca são vistos por mortais, envolver-se com eles pode interferir em seu trabalho. Ela nunca o ouvirá, sentirá, verá nem notará sua presença. Sua influência na vida dela será com sussurros. Sempre que ela precisar de sua ajuda, sussurre em seu ouvido qual a melhor escolha entre um dilema, a saída para um problema, a solução de um desafio, coisas assim... Por fim, um celeste é imortal, nunca envelhece, seu serviço para com os deuses é eterno, mas você é diferente... Agora vá e mergulhe na fonte para voltar ao mundo dos vivos. Até algum dia jovem desafiador de deuses.
Assim ele fez, sem questionar nem olhar para trás, apenas queria logo ver pessoalmente aquela que se chama Anastacia. Quando entrou na fonte aos poucos seu corpo foi afundando até sumir por completo.
Enquanto isso Rufius ainda não conseguia compreender como um mortal poderia contrariar as regras dos deuses, a Matriarca ao vê-lo tão compenetrado e já adivinhando seus pensamentos apenas lhe disse carinhosamente: - Não te preocupes, aquele jovem está destinado a contrariar todas as regras que o façam ficar distante daquela que ele ama. Além disso, a alma dele, apesar de ser como a alma de outro qualquer, está intimamente ligada à alma de uma jovem donzela que é acolhida pela divindade paterna de todos os deuses...
- Como?! Então uma entidade está interferindo na vida desses dois mortais?! Isso é terminantemente proibido até mesmo para Ele! – o jovem ruivo estava atônito, não conseguia conceber a idéia de que alguns mortais eram meras peças num tabuleiro e também não poderia aceitar a desculpa de que um ou outro mortal era mais importante que os demais para uma entidade.
- Acalme-se meu filho, sei que está perplexo, mas tente entender que o amor é uma presença inegável até na existência eterna de uma divindade. Além do mais, muitas das barreiras divinas que foram quebradas para que esses dois ficassem juntos não foram com a ajuda de nenhum ser divino, mas apenas com o intenso amor que essas duas almas sentem uma pela outra... Na verdade Ele teme a união desses dois, mas existem coisas que nem nós, deuses, podemos lutar contra...
Depois que passou pela estranha fonte mágica o jovem começou a cair suavemente na floresta, até finalmente pousar ao lado daquela dama que tanto lhe chamara a atenção. Anastacia ainda dormia e o jovem sentou ao seu lado para observá-la melhor, estava definitivamente atraído por ela que dormia tão serenamente em lugar tão desconfortável. Não resistiu e tentou tocar o rosto dela já sabendo que seu esforço seria em vão. Sua mão simplesmente atravessou a pele e carne da exótica dama, como se ele não existisse, mesmo assim teve a sensação de sentir por um breve segundo o calor do corpo dela.
Ficou olhando a própria mão por alguns instantes quando repentinamente Anastacia coçou a própria face em meio ao sono. De alguma forma ela também o havia sentido... Quebrando as regras dos deuses ambos haviam se tocado fazendo assim o que lhe haviam dito ser impossível. O jovem não conseguia compreender por que, mas estava extremamente feliz.
Ela parecia estar sonhando com alguma coisa, pois se movia em meio ao sono e dizia palavras desconexas, num desses movimentos um grosso cordão de prata saiu da gola de seu vestido. Quando o jovem botou os olhos nos três “vês” cravados no pingente prateado sentiu seu coração parar. Também nesse momento ouviu algo sussurrado por ela: - ... não... Sirian...
Talvez tenha sido aquela antiga herança de família, talvez a presença dela, talvez ouvir seu nome ser proferido mais uma vez ou apenas o conjunto de todos esses eventos. O fato é que sua memória havia voltado. Seu nome era Sirian Venov, crescera ao lado de sua irmã, Laeria, a quem cuidava como o único bem que possuíra em vida. Lembrava do evento no jardim de tulipas quando fora amaldiçoado e como temeu pela vida de sua irmã, quando acordara quase um ano depois no mesmo lugar e sua irmã havia desaparecido, os anos que gastou procurando incansavelmente por ela desbravando masmorras, torres e castelos cheios de perigos com a promessa de uma jovem a ser salva, sempre na esperança de encontrá-la... Agora ela estava ali na sua frente, não era exatamente a mesma Laeria, pois sabia que ela havia mudado, mas ainda era ela.
- Acorde... – disse ele em sussurros vacilantes, temendo que ainda fosse um celeste, temendo tocá-la e novamente descobrir que a palavra dos deuses ainda era soberana.
Levou uma das mãos em direção a face dela mais uma vez e quando sentiu a suavidade daquela pele macia seus olhos lacrimejaram. Algumas gotas caíram sobre a face dela que aos poucos foi acordando e abrindo os olhos. A vista de Anastacia ainda estava um pouco turva e quando finalmente se adaptou à claridade eles também se encheram de lágrimas.
Abraçaram-se sem proferir nenhuma palavra finalmente estando juntos depois de anos perdidos de suas vidas. Ficaram assim, calados, por alguns minutos. Por fim Anastácia se recompôs e o olhou profundamente nos olhos, olhares estes retribuídos com extrema compaixão.
Passaram, tanto juntos quanto separados, por provações que praticamente nenhum outro mortal conseguiria. Finalmente estavam livres para seguirem suas vidas. O amor que ambos sentiam um pelo outro destruiu todas as barreiras impostas pela vida e pelos deuses.
Quando ela tentou dizer algo, Sirian levou dois dedos em seus lábios e apenas sussurrou: - Está tudo bem... Eu voltei e estamos finalmente juntos, nada mais importa...
Sorriram. Abraçaram-se novamente e deitaram na cama de folhas secas. Nada além daquele momento existia no mundo deles. Sirian tocou a face dela carinhosamente com as costas da mão e depois passou os dedos levemente pelos lábios de Anastacia que beijou a mão dele em retribuição. O jovem não se conteve e pela primeira vez ambos se beijaram, minutos depois adormeceram. Precisavam descansar, pois havia muito a ser contado na manhã seguinte.
Em um plano de existência conhecido como Mundo Zero uma velha senhora e um jovem ruivo assistiam tudo, ela com ar de satisfação ele ainda com ares de perplexidade que foram amenizados ao ouvir as seguintes palavras da anciã: - Como eu disse antes... Existem coisas que nem nós, deuses, podemos lutar contra...
Rufius então a olhou diretamente nos olhos, sorriu e disse pela primeira vez com sua voz totalmente livre de pesares: - Você tem toda razão irmã...