Crônicas do Sol - Parte III

“Ela está na cela, bem acorrentada e vendada.”. Disse o homem de baixa estatura, barba e colete de couro. O outro, uma criatura raquítica e pálida, envolto pelas sombras do cômodo acena devagar com a cabeça. O pequeno casebre de madeira, com subsolo de pedras justapostas sem nenhuma argamassa e celas divididas por barras largas e resistentes de aço ainda funciona como uma prisão. O homem baixo olha para o porão com ar de tensão e medo, e volta a falar:

- Tem certeza que isso irá funcionar? Não que eu duvide de sua palavra milorde... - Ele enxuga a testa soada com um pequeno lenço branco – É que eu ouvi muitas historias sobre a criança, dizem que ela é amaldiçoada. Outros ainda, dizem que ela tem demônio, que ela passa pelas cidades para recolher as almas dos pecadores, como se fosse o próprio ceifador. – O homem de olhos vidrados e voz tremula enxuga mais uma vez a testa que já se enchera de suor novamente. Uma voz ríspida e gutural ecoa na sala:

- São apenas historias. Se recomponha capitão, é só uma criança muito estimada pelo meu senhor.

- Sim, milorde. – Diz o capitão, num tom de arrependimento.

O capitão permanece olhando com temor para o porão onde estão as celas e a criança vigiada por seis guardas, atrás dele são ouvidos passos arrastados e ligeiros pelo chão de madeira empoeirada do deserto, e o bater da porta.

No meio do deserto a mulher continua em direção ao seu destino, já enfraquecida pelas forças titânicas do deserto, porém sem expressar nem mesmo cansaço. Ela observa sua pistola, refletindo distraidamente seu brilho causado pela fogueira em seu peito. “Só mais um dia e chegarei à cidade, e certamente saberei se ele parou por lá”, refletiu ela. A fogueira crepitava em sua frente e ela esperava por um sono que não vinha, estava ansiosa, elétrica, analisando as balas que começara a colocar cuidadosamente em sua arma. Ela usa um revolver prateado de seis balas e cano de 13 polegadas, com furos por quase toda parte superior do mesmo para refrigerá-lo. Uma arma rara, talvez de 2025, mas nem ela sabe ao certo.

Mas não é mais como era a arma original, o cano fora encurtado para 9 polegadas, era pesado, difícil de sacar nos momentos de ligeiros combates. O tambor trocado, suas balas tinham de ser mais letais, arrasadoras, mas o novo tambor da arma comporta apenas cinco balas, “suficiente para matar qualquer coisa que se mova” diz ela. Mas a parte mais intrigante e amedrontadora de sua arma não é o tambor extenso que carrega poderosas munições .357 Magnum ou o V gravado em vermelho num circulo prateado logo acima do cabo. Não, não é. E sim, a obra prima de suas mãos: um compartimento de metal prateado que sai da parte inferior do tambor, com uns cinco centímetros de comprimento, onde fica equipado um aterrador pente que comporta 25 balas, seu comprimento e tal que apenas um terço do mesmo fica dentro do compartimento.

Uma a uma, as balas douradas e marcadas com inscrições estranhas (preces, talvez feitiços) se deitam no tambor, e depois no pente que fora uma modificação feita por ela mesma em sua arma. Ela pensa e reflete o tempo todo, seus lábios ressequidos entoam uma oração antiga, talvez ao deus que ela sempre diz, mas que talvez apenas ela se lembre. Quando ela termina, reclina sua cabeça sobre o cantil já vazio desde ontem, e dorme.

Gritos, uma criança?! Não! Uma jovem! A mulher se levanta rapidamente levando sua cimitarra e sua arma apenas, anda vários metros e encontra três ônibus tombados e enferrujados pelo deserto há muitos anos, e no meio deles uma fogueira onde são vistas umas quatro ou cinco pessoas. Ela corre, seus coturnos agridem vorazmente a terra em movimentos rápidos. Uma jovem seminua rasteja amedrontada para trás tentando desesperadamente fugir de seus três algozes, homens grandes, fortes e perversos.

- Parem! – Gritou a mulher com sua voz enrouquecida pela aridez do deserto. – Deixem-na em paz seus cães!

- Ora, ora senhores, parece que temos mais um prato para degustar essa noite. – Disse o maior, um homem careca, com um colete de couro e olhar assassino. Seus companheiros riram e sacaram as facas, ainda não perceberam as armas da mulher. Um dentre eles avança até ela, é um coiote faminto, ele desfere uma facada em direção ao seu pescoço, ela se esquiva para baixo sem dificuldade (ele é pesado, lento demais para acertá-la), e antes que ele possa esboçar uma reação, ela sobe num salto e sua lamina juntamente com ela, e o divide ao meio. Os outros dois a olham com espanto, a jovem se esconde dentro de um dos velhos ônibus e chora tomada pelo medo, a mulher os encara com desprezo, friamente como a morte.

O maior diz:

- Vá Brandon, acaba com ela, ninguém é melhor que você nas facas!

O grande homem hesita perante a delicada e fatal figura da mulher, mas vai ao ataque logo em seguida. A golpeia de várias formas, é habilidoso, mas está com muita pressa, fazendo movimentos mal calculados. Ela se esquiva e defende com destreza a cada momento, e quando ele erra, ela atravessa seu estomago com a cimitarra e torce a lamina para que ele sinta o gosto de sua morte.

- Melhor ir embora, deixe tudo que tem e corra. Aproveite que estou lhe dando uma chance seu porco. – Disse ela ao último deles.

O gigante treme diante das palavras da mulher, eles estão a uns cinco metros um do outro e ele viu sua habilidade, sabe que se tentar qualquer coisa vai estar morto antes de ver da onde ela veio, então ele se vira de lado para ir embora. Ela relaxa por um momento, então ele subitamente saca uma pistola e mira bem na cabeça dela.

- Obrigado, vadia.

O som do tiro é ouvido e a mulher cai. A jovem segura com suas poucas forças o braço do gigante em direção ao chão, mas leva um tapa de costas de mão no rosto e cai desacordada.

- Desgraçada, agora é sua vez! Eu faço o que quero fazer com você depois de estourar sua cabeça enquanto seu corpo ainda estiver quente! – Urrou o homem, tomado de raiva pela moça. – Isso vai ser demais!

- Tenho certeza que vai. – Disse a mulher, como que voltando do mundo dos mortos e encostando o cano do revolver na cabeça do gigante. O sangue escorre do seu ombro direito como se fosse um rio de lagrimas, a bala acertou, mas não quebrou nenhum osso.

- C-como você?!

Ela o interrompe:

- Já escapei da morte mais vezes do que já matei. Menina! Vem aqui, atrás de mim.

A jovem obedece imediatamente, tropeçando pelo caminho até chegar e se agarra ao véu negro na perna direita da mulher.

- Vai atirar em mim agora, mulherzinha? – Ele gostaria de usar outras palavras, mas sua condição não permite esse risco.

- Essas balas não são para você. – Respondeu ela, e gravou sua espada na genitália do homem, e a ponta saiu pelas costelas. Então o gigante caiu agonizando.

Ela levanta a jovem e a leva até onde estivera acampada. Eles tinham algumas latas de comida, será útil. A jovem treme traumatizada, mas depois de uma hora se recompõe. "Daria roupas para se vestir, se as tivesse a mais.". Pensou a mulher.

- Obrigada. – Disse a moça, numa voz branda e doce.

- Você está bem? Não fizeram nada com você? – Retrucou a mulher olhando para a fogueira.

- Sim, estou. Só apanhei um pouco, mas não me fizeram mais nenhum mal. – Respondeu ela com ar de gratidão.

A mulher olha-a nos olhos.

- Bom.

As duas permanecem em silencio por um tempo, a mulher limpando sua cimitarra, e a garota olhando paras suas armas, impressionada com seus equipamentos. A jovem vestia um vestido leve, mas rasgou pedaços tornado-o uma saia, e com um dos pedaços cobriu os seios, pois os homens haviam destruído as roupas que estavam sobre eles. E com o outro pedaço, fez um curativo para a mulher.

- Qual o seu nome, minha senhora? – Disse a moça, quebrando o quase silencio que só era preenchido com o vento e com o crepitar das chamas.

- Porque quer saber? – Respondeu secamente.

- Porque você salvou minha vida, e porque admiro você.

- Me admira? – Disse ela zombando – É a única.

Elas se encaram por um momento, a mulher vê os doces olhos verdes que a olham tão devotamente.

- Valkirie. Meu nome é Valkirie. – Disse ela.

A garota sorri e responde:

- Melani, mas pode me chamar de Mel.

- Ok Mel, está com fome? – Disse ela oferecendo uma lata de milho aquecido ao fogo, porém não retribuiu o sorriso.

- Estou sim, muito obrigada. – A jovem começa a comer rapidamente, como se estivesse faminta há dias.

- Aproveite a água que fica no fundo, será a sua única água até depois de amanhã quem sabe. – Acrescentou Valkirie, imaginando que a jovem atrasaria seu percurso em pelo menos mais um dia.

Depois de comerem, Valkirie começa a perguntar a Melani sobre sua vida.

- Qual a sua idade menina?

- 15 anos, minha senhora.

- Não me chame assim está bem? Não sou nenhuma nobre ou nada que mereça ser tratada bem. – Disse levemente irritada.

- Me desculpe. – Respondeu Mel.

- Já é casada? Tem idade. – Perguntou a mulher. Nos dias de hoje as pessoas não vivem muito. Seja pela fome, sede ou peste, as pessoas morrem antes do 40 anos. Valkirie considera um milagre ter chegado tão longe depois de tudo aquilo.

- Não, não sou desejada onde vivo, min... – Ela se aquieta antes de terminar, para não irritar a mulher.

- Não é desejada? Você é muito bonita para não ser desejada. Nem desnutrida você está. – Valkirie não entende.

- É verdade... – A jovem abaixa a cabeça com tristeza. – É por causa do meu acidente, ninguém me tolera como sou. - Ela se levanta e mostra a coxa esquerda e a bunda, a mulher se impressiona ao ver que são próteses de metal, robótica avançada, cobertas pela pele em grande parte, mas não nessa área que parece ter sido escoriada.

- Metade do meu quadril, minha perna direita, e duas costelas. Sou inútil para os homens, não posso ter filhos. – Continuou ela.

- Sinto muito. Deve ter sido difícil.

- Sim, foi muito, e ainda é. – Disse ela depressivamente.

A mulher permanece em silencio, está intrigada. Não que pessoas com próteses robóticas a assustem, pois lendas dizem que isso se tornou parte da medicina há dois séculos. Porém, ela mesma já passara pela Cibertropole de Astorga, e nada mais havia lá além de escombros e terra seca e cinza, justamente como dizem as lendas da guerra. Melani não deveria estar viva.

David Nadotti
Enviado por David Nadotti em 16/11/2009
Reeditado em 20/10/2010
Código do texto: T1926073
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