Crônicas do Sol - Parte II

Uma seca tem se espalhado e aumentado pelo mundo há quase 200 anos. O deserto tomou conta de tudo, implacável, impiedoso, o assassino mais frio e sádico de todos. As mulheres com suas secas lagrimas já perderam a conta de quantos velhos, crianças e maridos tiveram de enterrar. Seu pranto, de coração forte, porem ferido já é descido as profundezas da terra. Para elas já não é como as lendas antigas contam de mulheres que cuidavam da casa e dos filhos em harmonia com a terra, não, não para essa triste geração. Algo que se espalhou pelo mundo, um demônio devorador de homens, uma praga sobre a vida humana, contam os anciões, homens que vivem além dos 40 anos. “Um demônio, uma força negra do além, visitou esta terra para drenar a vida de todo homem e menino, para se alimentar de suas almas e corpos tragados pelas areias do deserto.” Dizem eles. E assim as mulheres se tornaram as forças sustentadoras da vida. Elas dão a vida, e a guardam, até o fim.

Quando a mulher acorda, ainda não chegando a aurora, arruma rapidamente seus poucos pertences e sai da cidade para continuar sua busca. Um cantil que comporta 13 litros de água, que se ela tiver sorte não acabará antes dela conseguir chegar a dois dias da próxima cidade, uma bolsa feita de sacos e estopa, que ela joga sobre os ombros e leva alguma comida, algumas moedas de níquel que carrega em seus bolsos, e suas armas. É tudo que ela tem, talvez muito para se carregar durante uma viagem a pé pelo deserto escaldante, mas pouquíssimo, para sobreviver nesse mundo que traga vidas como se fossem a palha de seu cigarro.

Enquanto o mundo gira com malevolência, conspirando com o Sol para torturar a humanidade mais um dia, a mulher caminha na terra áspera e rude do deserto. “Sol, que transpassa os céus com fervor e ansiedade, que abençoa com a luz, mas amaldiçoa com o calor. Estrela brilhante, arrogante, tirana, que veio para acabar com o que restou desses seres de pouco valor.”. Recorda-se ela, um verso que ouviu em algum bar onde haviam outras pessoas tão bêbadas quanto ela, ou de alguma mãe se lamentando durante o velório de seu filho. Ela não se lembra ao certo, apenas recita esses insultos ao sol, que ja começara a nascer, e ela sabe que logo ele retribuirá com grande ódio.

É meio-dia, e ela já vem sentindo a resposta aos seus insultos há um tempo, mas permanece andando firme, determinada, implacável. Talvez correria se pudesse, mas é impossível nesse calor tão aterrador, ela perderia toda água do corpo em segundos. Ela permanece focada em sua busca, sabe que não pode morrer, não aqui, não dessa maneira; não pode se dar ao luxo de morrer até encontrá-lo. Não pode. Nenhuma sombra para descansar, a água é preciosa demais para ser bebida a esmo, e o caminho é longo até sua próxima parada.

A noite cai e ela aproveita para descansar um pouco sob o luar quente. Se decepciona a ver que bebera pouco mais de um litro de água durante o dia. Ela pensa consigo: “Se eu continuar sendo tão fraca não aguentarei chegar na metade do caminho.”. A noite está bem razoável, uns 28 graus de temperatura, para uma noite de inverno está ótimo. A terra e as areias estão tão quentes que ela tira quase toda sua roupa, e juntamente com sua bolsa e cantil, improvisa um fino colchão apenas para afastar um pouco o calor, ela se deita e coloca seu revolver sobre a barriga marcada de cicatrizes, carregado e pronto para qualquer emergência que possa surgir. E então adormece.

O campo de batalha é avassalador, a planície branca, dura, salgada. O som de tiros e gritos de agonia e sofrimento é audível a quilômetros de distancia, tropas de latinos avançam bravamente contra uma pequena resistência, em parte indígena, em parte os habitantes do Grande Deserto (um deserto de proporções colossais que se inicia nas terras frias do litoral de Salvador, se estende por todo o continente e termina nos Andes). A batalha é sangrenta e animalesca, do tipo que nem os coiotes e lobos selvagens ousam se aproximar, tiros que armas arcaicas como SP-12, Glock, M-16, e outras armas até mais antigas como Winchester e revolveres são como urros de feras esfomeadas loucas por carne humana. Espadas, baionetas e facas, armas que tornam o branco sal do deserto um rio de sangue e vísceras. Em uma tenda da resistência uma jovem grita e pranteia com sofrimento e dor maiores do que de todos que estão lutando...

Quando o sol começa a irradiar suas primeiras ondas de calor há quilômetros, já é visto o amanhecer diferente que acontece hoje, pois a força do sol é tamanha que mesmo uma hora antes da aurora em si, o céu já se torna vermelho. A mulher acorda, mas não pela iluminação cor de sangue dos céus, mas porque sentiu algo em sua barriga, um toque estranho. Ela não move as mãos e levanta a cabeça devagar, então avista uma enorme tarântula caminhando sobre seu umbigo, ela sabe que não deve se preocupar, sabe que tem de ficar calma e não ter medo, vagarosamente ela coloca a mão diante da aranha, que sobe em sua mão e ela a devolve com certa gentileza ao chão, talvez, com mais gentileza do que tratou qualquer outra pessoa nesses últimos tempos. Então a mulher se levanta e aproveita para analisar o horizonte enquanto o sol ainda não veio lhe ofuscar a visão. Enquanto ela examina o deserto a sua volta, avista algo que a deixa perplexa, com olhos arregalados e desconfiados ela segue alguns metros a frente e se abaixa para examinar algo no chão. “Ah seu Desgraçado... Deveria ter imaginado! Jamais poderei alcançá-lo assim, estou em desvantagem, pelo menos até chegar na próxima cidade. Cão bastardo...”. Disse ela, olhando com profundo desgosto para as marcas de rodas de carroça logo a sua frente. Ela se veste, guarda seus pertences e segue determinada a trilha deixada pela carroça no quebradiço e árido chão do deserto. “Pelo menos sei que não vou me perder dele” Pensou ela, desaparecendo no horizonte em direção a Manaus.

David Nadotti
Enviado por David Nadotti em 13/11/2009
Reeditado em 16/11/2009
Código do texto: T1920842
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