O Despertar
Correu até o banheiro e bateu violentamente a porta trancando-se por dentro. O barulho fez um grande eco entre os apartamentos vizinhos. Ainda que por um instante, apoiou a maçaneta para ter a certeza que ninguém entraria. Soluçava e tinha as mãos trêmulas. Lentamente encostou-se na porta deixando-se escorregar pela superfície lisa até sentar-se com as pernas dobradas no chão gelado. Com as mãos abertas alisou o cabelo rebelde, encostou a cabeça entre os joelhos e agora chorava baixinho. Não se importou com a luz apagada. Nada importava, nada fazia sentido, o futuro era escuro como o banheiro úmido. Tinha ainda a respiração ofegante e apertava entre os dedos o papel que enxugou suas lágrimas. Escutou passos nervosos que vinham a seu encontro, mas estava decidida a não abrir. A porta foi sacudida com batidas insistentes; berros vinham do lado de fora.
- Não vou abrir, não adianta. Vá embora – Gritava quase rouca
- Não quero mais explicações, estou cheia... farta de suas mentiras.
- Não quero te ver nunca mais. Esqueça-me – repetia
automaticamente.
- Pode chamar meu Pai!! Ele vai me apoiar. Jamais acreditou em qualquer palavra que você dissesse. Ele há tempos me alertara sobre o crápula que você é... Meu Deus!! Como fui burra. Em pensar que troquei tudo que tinha, meu trabalho, minha família, meus amigos ...por você .. burra! Burra! – repetia batendo a testa contra os joelhos.
- O que? Você ainda tem coragem de me acusar?! – bradava inconsolável.
- É... você tem mesmo toda a razão. Afinal, deve me perdoar por me trair – Ria de sua própria ironia.
- Isto mesmo! Chame os bombeiros. Melhor! Chame a polícia para você mesmo, e deixe-se prender, hipocrita. É a decisão mais sensata de sua vida. Prometo que te farei uma visita. Levarei cigarros e um bolo envenenado. Brigadeiro, o seu predileto... Vai ser o melhor que já fiz! Eu prometo.
- E ainda não foi?
- Você promete que não volta mesmo! Vá e não volte mesmo! - A esta altura já de pé, dava murros no ar e gritava atrás da porta. Do lado de fora, os passos foram se tornando distantes, bateu-se então a porta da sala como numa grande explosão até o silêncio tomar conta do ambiente.
Deu-se conta que estava só. Solitária e solidária a sua dignidade. Ficou alguns minutos pensando em nada. Fechou os olhos. Meio zonza, pálpebras inchadas de tanto chorar, maquiagem borrada, sentimentos feridos, ascendeu as luzes e fitou-se no espelho. Estava horrível. Parecia preparada para filmar uma estória de terror, como se a realidade não fosse pior. Lavou o rosto com água fria, achava-se feia como nunca fora. Nada em seu aspecto a agradava. Precisava mudar. Precisava viver. Razões não faltavam para mudar... Razões não encontrava para viver. Abriu a porta do banheiro, com passos lentos foi até o quarto e deixou-se cair na cama. Jogou longe o travesseiro, que quase colidiu contra o abajour. Braços esticados para trás da cabeça, deu um grande suspiro, olhava o teto e nada via além dos últimos minutos que acabara de viver. Cada palavra proferida, cada acusação, cada insinuação iam se repetindo em sua mente sucessivamente como quem procura em cada detalhe, respostas que pudessem dar um novo lume à sua delicada situação. Lembrou-se de seu Pai, que quando na meninice, a ensinara a jogar xadrez. Por mais que visualizasse duas ou três jogadas à frente, nunca conseguia concatenar as estratégias que iam se misturando, resultando numa jogada débil. Às vezes por pura preguiça de pensar, arriscava uma jogada ao acaso e que a levava a derrota. Assim era agora, não se dava conta do que queria para o futuro, que decisões tomar, quais passos seriam os primeiros. As incertezas sobre o futuro aumentavam à medida que percebia o quão dependente fora na vida. Saíra da casa dos pais ainda moça, direto para os cuidados do amado. Sempre deixou que seu futuro fosse incumbência de seus tutores. De agora em diante ou regressava ao passado ou seria outra pessoa. Primeiro tinha que se ver livre daquele estado de espírito, desligar-se dos últimos acontecimentos que minaram sua resistência por quase um ano. A consciência acabou aprisionando-a a situações que se tornaram círculos viciosos. Devia se libertar primeiro de si mesma e se desgrudar dos planos antigos que estavam enraizados, encravados como verdades absolutas, receitas simples do que era felicidade. Não queria mais procurar a felicidade nos outros, mas sim em si mesma. Ligou o aparelho de som e colocou o volume à estratosfera, como se isto pudesse desviar seus pensamentos. Escolheu sua roupa preferida e após um banho renovador tratou de se arrumar. Maquiou-se levemente – o que não era seu costume, e na verdade a tornava mais velha do que parecia – descartou sua roupa preferida e escolheu outra que a deixava mais a vontade, mas nem por isto menos feminina. Quem a olhasse naquele instante a acharia divina, apesar do porão bagunçado de sua alma. Na verdade era como uma capa bonita de um livro complexo, numa beleza antagônica, o bonito de se ver nada mais era que uma desprezível aparência, enquanto o conteúdo efervescente, em tremenda erupção, era a transformação do caos, o desabrochar de um novo ser.
Despreocupada com compromissos assumidos foi dar uma volta. O elevador, para variar demorou a chegar devido as brincadeiras das crianças, que apertaram vários botões fazendo-o parar em quase todos andares. Isto não a incomodou, esperou pacientemente até que a porta se abriu. Dentro um casal de idosos, que a saudaram formalmente, o que foi retribuído por um breve sorriso. Corpos cansados, rostos marcados pelo tempo, permaneceram em silêncio. Quantas histórias teriam para narrar, quantas crises superaram. Teriam tido tantos contratempos? A principio as marcas em seus rostos lhe pareceu um capricho do tempo, que esculpiu em suas faces as vitórias alcançadas ao longo dos anos. Mas logo depois não deixou de imaginar que estes traços pudessem ter sido, ao contrário, infligido um ao outro em constantes confrontos como os que acabara de ter. A vida não deveria ter sido monótona para eles também? Será que um deles já teve algum amante, ou ambos? Divertia-se com as várias possibilidades que pudessem decorrer de suas histórias. Agora então tinha certeza, ambos tiveram. Fazia questão de imaginar naqueles segundos que a vida deles deveria ter sido muito mais interessante do que aquelas figuras inertes olhando os números do mostrador que decresciam rumo ao subsolo. Paga-se um alto preço pela maturidade, pensou.
Absorta em seus pensamentos, não percebeu que o elevador chegara a seu destino.
- Oh! Desculpe-me. Tenham também um bom dia e obrigada pelo mocinha – respondeu constrangida.
- Estou bem sim. Estava apenas pensando na “morte da bezerra” como dizia minha mãe. Até logo – disse refeita.
E caminhou despreocupada, passos lentos sem pressa de chegar a lugar algum. Pessoas a ultrapassavam com a sede diária de sorverem as mesmas necessidades triviais e superficiais do dia a dia. Alguns passos mais e estava diante da praça de sua infância. Árvores velhas se dobravam ao sabor do vento frio, que traria mais tarde a chuva consigo. Crianças brincavam, duas senhoras andavam juntas num cooper vagaroso; próximo à igreja bem ao centro da praça, algumas barracas estavam armadas com artesanatos à venda, não muito longe um mendigo oriental sentado sobre um monte de trapos, parecia uma estátua. Há anos vivia ali, sempre sentado no mesmo local, voltado para o norte, como uma bússola. Não conversava com ninguém, seus cabelos e barba cresciam selvagens. A grama onde ficava morrera, do seu lado direito uma árvore teimava em crescer, do esquerdo uma outra quase morta de tanta urina regada. Vez por outra aceitava a comida ofertada por alguém, tinha ao seu lado um guarda-chuva. Muitas estórias se contavam sobre o japonês. Dizia-se que era muito rico e num incêndio perdeu seus parentes e toda riqueza, outros diziam ainda, que foi abandonado pela esposa e se recusava a continuar vivendo, esperando a morte vir buscá-lo. Estava ali há tanto tempo que já fazia parte da paisagem. Sempre se recusou a ser levado a albergues e se algum assistente social tentasse extrair alguma informação, ou mesmo ser atencioso e ajuda-lo para qualquer coisa, ele, como resposta, apenas observava sem externar qualquer sensação e continuava lá. Quando menos se esperava o japonês começava a bater palmas - para espantar maus espíritos diziam – era o máximo o que fazia.
Por alguns minutos ficou observando-o, se nossa mente nunca para de funcionar, por mais ocioso que estejamos, como pode alguém durante anos, permanecer naquele estado de hibernação, alienando-se completamente do mundo, menosprezando quaisquer valores, vínculos afetivos, vaidade, alheio a qualquer coisa a não ser nos mostrar o Norte? Sua mente deveria ser então um disco riscado numa fração muito pequena, repetindo e repetindo o problema que lhe deve ser insuperável. Assim era seu próprio caso, se auto definiu, sua vida também era um disco riscado, mas numa fração um pouco maior, o que a permitia viver outras coisas sem se dar conta que não conseguia seguir adiante. Riu de si própria.
Mas não teve muito tempo, pois do outro lado da praça, amparado por duas muletas remendadas um senhor de cabelos brancos, gritava impropérios que lhe saiam da garganta misturado a sua baba que voava longe. Xingava um rapaz de uns 30 anos, não mais que isto, de todos os palavrões que sua voz tresloucada conseguia pronunciar. Quando conseguia se escorar levantava uma de suas muletas - o que o tornava um ancião de quase três metros - com a intenção de atingi-lo. O rapaz ria e também o provocava chamando-o de Ganso. O já insuflado senhor, aumentava a ira contra o outro, e ao chegar bem próximo do rapaz, levantou seu cajado para desferir um portentoso golpe...
- Ai meu Deus! - colocou as mãos na cabeça esperando o desfecho.
Mas o rapaz foi mais rápido e sacou de seu bolso uma moeda de um real, o que imediatamente mudou o humor do cavaleiro quase andante, que então alterou seu semblante e foi assombrar outras áreas. Assim continuou seu dia, sentada, deixando o tempo passar. Várias outras cenas sem importância se mostraram a seus olhos. Naquele instante porém podia respirar fundo. Alguns homens que passavam não deixavam de admira-la, havia até um outro que a paquerava descaradamente. A chuva que parecia inevitável, começou a cair, espantando todos que corriam tentando se proteger. Apenas o japonês se manteve no mesmo local, já de guarda-chuva aberto. Nossa heroina não se preocupou com os pingos gelados e manteve-se no banco, com o olhar perdido, vendo apenas sua vida. O descarado se aproximou, segurando uma sombrinha, com um sorriso maroto veio dar-lhe proteção.
- Obrigado, estou bem assim – disse educadamente.
- Não se preocupe se me molho, estou apenas lavando minha alma.
- Por que eu penso tanto?! - Arregalou os olhos e retribuiu o sorriso - Boa pergunta!
E começou então a pensar porque pensava tanto... Deu então uma grande gargalhada, levantou-se rápido, quase atropelou o enamorado e foi tratar de viver.