Bruxa

A fumaça dança pela sala como uma convidada de honra, solene. E o líquido canta, víride, borbulhante. Vejo minha mão despejar o pó castanho que carrega, e o cheiro acre de árvores mortas inunda meus sentidos, eu distante, a vontade perdida entre as brumas espessas. Sem que eu mande, minha outra mão agita com vigor o caldeirão, enquanto a primeira, dormente, despeja mais um ingrediente: os pêlos de um gato sete vezes morto. Violáceas brumas agora sobem, a empurrar meu corpo, tempestuosas, tomando cada canto e espaço do recinto. Não estou em casa, mas imersa num mar lilás, perdida de mim. Não sou eu que, em seguida, mergulha um espelho partido nas bolhas agitadas. Não sou eu que agita e gira o líquido. Vejo meu corpo agir por outras vontades, e obediente, não luto, consinto. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

Palha, palha no fogo, e ele sobe, aumenta, esquenta meus pés. Remexo e giro o líquido, no outro sentido, e as bolhas tornam-se lentas, a estourar preguiçosas. Tornam-se grossas, azuis, e índigo também é a fumaça que agora se desprende, em espirais loucas, alucinadas, deixando a visão turvada, visão que não é minha, inflando o lugar em êxtase. Uma bolha estoura, minha pele sua, tremendo de gozo pelas carícias da fumaça, ansiando as delícias cantadas em seu aroma. Mas espero, me contenho, ou outras vontades o fazem, pois já não sou eu, mas instrumento. Meu braço treme, lento, envolvido pelas finas brumas, que devagar giram o líquido, perdido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

Então, sem aviso, anúncio ou sinal, a fumaça muda, descolore para um negro sepulcral, escurece a sala. Tudo se apaga, as paredes, o fogo, os sons. Sou apenas eu, eu e o líquido, que gira. Já não há bolhas, mas uma camada lisa, fina, frágil qual espelho, a deslindar certeiro uma cena ao luar. Sim, vejo a Lua, a mãe, brilhando entre os prédios cinzentos, brigando com a luz dos postes um direito a iluminar. E numa viela escura, fedendo a sangue e urina – sim eu sinto – vejo uma menina, miúda, vítima do desejo do homem que a segura, que rasga suas vestes e procura seu corpo. Sinto o gosto de sangue na boca da menina, vejo o sangue escorrer de seu queixo. Ela grita, não há som mas a ouço, ela grita, mas só eu a ouço. Os braços fortes lutam contra o corpo frágil, ela chora, ele ri, animal afoito, ri e se esfrega nojento. As sombras a minha volta se agitam – ou seriam as brumas? – e sinto o cheiro de morte. Morte. A menina grita, o homem ri, ri satisfeito e finalmente a deixa. A garota morre, e a cena treme, turva e se desfaz, o passado é frágil na superfície de um caldeirão. Agito o líquido, ansiosa. E sinto a angústia que a menina deve ter vivido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

A sala escurece mais, se é possível. Vejo minha mão erguer o punhal, terrível, e estendo o outro braço. A pele chora o sangue que derrama, avermelhando o líquido. A dor é grande, mas não é sequer um traço, da que está por vir. O líquido desprende rubra fumaça, que inflama instintos assassinos, instintos tentadores, mas que renego. Ouço a bruma exigir mais sangue, meu corpo sua de raiva e ódio, minha mão ferida treme por vingança. Ouço a bruma que dança, mas nada faço, senhora que já não sou de mim. Enfaixo o braço ferido, e vejo nova cena na superfície carmesim, e na cena vejo um homem, o mesmo de antes, dormindo tranqüilo seu sono impune. Vejo minha mão – já não a minha – buscar um pequeno estojo num bolso do vestido. Sinto uma tontura. Dentro do estojo, um fio de cabelo, da mesma cor escura dos cabelos da menina, morta há sete dias, naquela noite fria, nas sombras da rua. O fio brilha na fumaça rubra, o cabelo da vítima. E dói meu braço. A dor é grande, mas não é sequer um traço, da que está por vir. O homem contrai o rosto, como se esperasse. E jogo o fio na cena rubra, e o líquido borbulha, e borbulha e borbulha. Mexo o caldeirão. Ouço enfim, claro, um grito, de dor acometido. O líquido gira, e também giram meus sentidos.

Com força eu giro, e a cada volta o grito aumenta, a dor aumenta, o desespero vem. Sinto o medo, o medo dele, o medo que sente, eu sinto também. Agora sou ele, ele eu, sinto os lençóis ásperos de sua cama, e o suor frio de seu corpo. O grito acaba, morre em minha garganta, e acordo assustada, tremendo ainda o sonho que tive. Ouço, ouço claro, um barulho à minha janela, e vejo a Lua, e sinto medo. Então, no vidro refletido, vejo meu rosto, o rosto dele, o pânico crescendo. Pois vejo, no reflexo, uma sombra se erguendo, atrás de mim, a sombra de uma menina, pálida. Ela me olha, me odeia, e eu sequer tenho coragem de voltar meu rosto. É ela, descubro, é ela, a menina da noite escura! A menina que feri, que invadi e abandonei, é ela, como pode? É ela! Eu a vejo andar, no reflexo da janela, devagar, sair das sombras à passos leves – não ouço passos, mas o roçar de tecido. Ela voltou, voltou pelo crime cometido, veio cobrar o sangue que lhe derramei. Sinto o colchão tornar-se morno, molhando minhas pernas e o lençol, encharcando a cama com urina. Ela estende o braço, vejo no reflexo, em minha direção. Desesperada, eu grito: Não!, e me viro finalmente. A dor é tremenda, o desespero, maior! Vejo o terror nunca antes visto, e ouço o grito que grito, terrível, perfurando meus ouvidos. E vejo enfim minhas mãos, minhas mãos que giram, giram o líquido, de tom verde agora, como era no início. E vejo as brumas se dispersarem, como se ali nunca estivessem, deixando a sala, o caldeirão, a mim. Sinto o cansaço pelo encantamento proferido, volto a ser eu, eu mesma, eu bruxa. E vejo minha mão que teima em girar o caldeirão. A saudade da filha é menor, o culpado foi punido. O líquido gira, e ainda giram meus sentidos.