ROXANE
 
Os últimos dias do mês de maio vieram frios, trouxeram
noites geladas. Defronte ao “Café da Boca”, homens
permaneciam durante o dia tomando sol encostados
à parede, falando de futebol e de mulher. Eram quase
todos aposentados. Nos inícios de noites atacavam-
lhes seus reumatismos obrigando-os ao retorno para
casa. O ‘ponto’ era então marcado pela presença de
uma gente mais jovem, homens e mulheres, vindos
em busca do chocolate quente. Roxane vendia flores
por ali. Não foi onde a encontrei pela primeira vez
porque ocasionalmente passava por ela na calçada
ao sair do restaurante. Mas foi ali que pela primeira
vez nos falamos. Já não me lembro das palavras com
as quais recusei a oferta de suas flores. Ofereci uma
xícara de chocolate e ela por assim dizer grudou em
mim, como ficou na borda da xícara de porcelana a
marca de seus lábios.
 
Primeiro mentiu sobre o marido haver morrido de
repente. Depois sobre onde realmente morava. Sentia-
se então possuidora de minha amizade a tal ponto
que se comportava toda orgulhosa vestindo meu
casaco de lã enquanto caminhávamos até o ponto do
ônibus. Acho que o fato de me ver lhe fazia bem,
porque procurava se apresentar com suas roupinhas
melhores.
 
Certa noite tirou o casaco assim que nos aproximamos
do ponto.
 
— Agora vá para sua casa – disse sem olhar para
mim.
 
Contos de Amor
 
Para quando se sentir sozinha
 
—Espero você embarcar.
 
— Não!
 
— Não custa nada.
 
— Não! Vá para casa. Eu não sei se vou tomar o
ônibus.
 
— Quer me contar o que está acontecendo? Não
demora e dá meia-noite.
 
— Não vou para casa. É isso o que está acontecendo.
 
— Algum problema?
 
— Milhões. Começa que não tenho para onde ir.
 
— Claro que tem. Eu poderia oferecer um canto.
 
— Você? Comportado como é? Mais fácil um boi sair
voando.
 
— Tudo bem. Quero ajudar de algum modo.
 
— Só me faltava essa! Agora quer carregar meus
fardos.
 
Dobrei o casaco no braço e me afastei. Sentia-me
injustiçado e procurava me exercitar na arte de
reinterpretar fatos e diálogos. Devo ter andado menos
de duas quadras. Voltei. Ela estava em pé,
praticamente no mesmo lugar perto do ponto e
emburrada. Arrumei o casaco sobre os ombros dela
sem dizer uma única palavra.
 
Assim que começamos a andar ela me disse que o
marido tentara matá-la. Duvidei. Ela apenas retirou o
gorro da cabeça e havia sangue grosso e escuro no
alto, no lado esquerdo.
 
Contos de Amor
 
— E ele queria matar você, por quê?
 
— Por ser um filho de uma... Desculpe. Por uma série
de encrencas. Bebidas, jogatinas. É um tipo
explosivo.Tudo bem.
 
— Há uma Delegacia especializada em Proteção à
Mulher.
 
— É? E sabe quando aquela joça está funcionando?
Nunca!
 
— Deixo você em um hotel. Ali, onde costumo jantar
há um bom hotel.
 
— Ali onde você janta eu não passo pela portaria. Olha
para mim. Vê se tenho cara de madame de classe.
 
— Não! Não tem cara de madame de classe. Deixo
você em um hotel próximo à rodoviária. Por ali existem
alguns excelentes, embora bem populares.
 
Pouco depois entramos no ônibus. Roxane fez meu
ombro de travesseiro durante quase toda a noite
enquanto atravessamos a escuridão rodando sobre o
asfalto.
 
Não sei o que deu em mim. Simplesmente comprei as
passagens e embarcamos juntos, deixando
literalmente tudo para trás. O meu emprego, o meu
apartamento, a minha vida de moço comportado. Isso
tudo e muito mais, deixei para trás num piscar de olhos
para rodar pela noite escura com uma pessoa a quem
eu não conhecia direito, em quem não tinha confiança
e a quem não tinha jamais aberto o bolso para comprar
sequer uma rosa.
 
Contos de Amor
 
Para quando se sentir sozinha
 
Passamos boa parte da manhã comprando roupas,
almoçamos em um boteco comendo pastéis com coca-
cola. No início da tarde encostamos nossos cotovelos
sobre o balcão de recepção de um hotel meia-boca.
Era um quarto enorme, com piso de cerâmica, banheiro
arejado. O único requinte era um aparelho de televisão
sob o móvel onde deixamos as malas.
 
Eu estava muito cansado para sair. E ela me parecia
bastante agitada. Joguei alguns acolchoados sobre o
piso gelado, desejei boa noite e dormi enquanto as
luzes estavam todas acesas no quarto.
 
No dia seguinte fui à agência do meu banco pela
manhã. Ao voltar ao hotel encontrei Roxane
transformada em loira. Saímos para almoçar, eu
precisava de alguma coisa que não fosse pastel
novamente. Depois do almoço abri o bolso para a
compra de um vestido esverdeado para a loira
falsificada que não sabia dizer ‘não preciso disso’, nem
muito menos ‘não quero que se preocupe com isso’.
De certo modo parecia uma criança abraçando logo
toda e qualquer coisa que lhe viesse gratuitamente.
 
Uma semana depois nos encontrávamos somente à
noite em um flat que aluguei no centro da cidade.
Jantávamos em vários restaurantes próximos. Eu
nunca acordava antes do meio-dia. Ela saia muito cedo
e em pouco desistiu de trazer o almoço que acabava
indo para o lixo, ainda embalado. O meu mundo estava
todo virado de cabeça para baixo, mas o dela, escorado
em catálogos da Avon, prometia entrar nos eixos. Eu
nunca tinha visto alguém com tal facilidade para vender
cosméticos por catálogo. Eu a animei dizendo que ela
faria sucesso alugando um box em bom Shopping
Center.
 
Contos de Amor
 
— Ando muito curiosa a respeito de como nascem as
crianças da elite – disse ela em resposta. – Acho que
nascem todas já com os narizes empinadinhos. Eu
estaria muito mais feliz se você valorizasse o meu
trabalho.
 
— Quem diz que não valorizo?
 
— Você é do tipo que não fica na fila pedindo emprego;
compra logo a loja! Eu nasci para ralar! Quem confiaria
em alugar-me um box?
 
Foi depois disso que ela mostrou interesse em saber
de onde eu retirava dinheiro. Inventei um pai milionário,
ela abriu uns olhos enormes e brincando pediu que a
beliscasse. Brincando perguntei se estava contente.
 
— Seria melhor se você fosse um pouco mais bonitinho
– disse e passou a esperar que me viesse a vontade
de olhar no espelho. Como não olhei, ela tirou as
conclusões estapafúrdias. Disse:
 
— Alguma coisa tinha que ter nesse molho. Podre de
rico não haveria mesmo de ficar deixando namoradinha
se pendurar no braço e andar de cima para baixo dando
bandeira. Por isso sempre o vi sozinho.
 
— É verdade. Você tem razão.
 
Olhou com um sorriso esquisito. Disse:
 
— Bom, eu não tenho nada com isso. Com alguém
que venha a dizer que está morando com uma polaca
pobre. Porque todo mundo vai dizer que mora comigo.
 
Quase me abri falando um pouco a respeito de minha
verdadeira história, quase contei sobre haver deixado
de ser um homem feliz em virtude de uma desventura
no amor. Mas me calei porque não confiava nela e
 
Contos de Amor
 
Para quando se sentir sozinha
 
porque o fato de estar contando iria me levar ao
passado. Não disse nada a ela, mas passei bem mais
de quinze dias com o coração sangrando e uma bola
que latejava na boca do estômago, porque tudo voltou
à minha mente do mesmo modo. E a consciência de
não ter comigo a pessoa que sempre foi meu grande
amor, trouxe a ansiedade.
 
Agora eu já não dormia mais até quase uma hora da
tarde. Amargurado passava as noites e de olhos
abertos via o sol nascer. Minhas reservas financeiras
poderiam permitir, mas havia uma reserva mais
importante a ser mantida: a de conservar sempre o
meu norte sob qualquer condição.
 
O gerente da agência do meu banco foi de uma
importância fundamental naquele momento de meu
despertar. Telefonou pessoalmente a empresários
propagando o meu trabalho. E desse modo comecei a
ministrar treinamentos e seminários no campo da
Administração a gerentes e executivos. De certo modo
era como se eu ainda estivesse em meu emprego,
porque era isso o que eu fazia lá, atrelado a um órgão
subsidiado pelo governo.
 
Roxane permaneceu no flat por mais dois meses. Então
começou a contar uma história atrás de outra,
visivelmente embaraçada. De repente quedou-se em
silêncio, deitada na posição fetal, chorando bastante.
Eu a acariciei, procurando consolar embora ignorando
o motivo para aquele estado de alma.
 
Pintou então um clima esquisito, eu morrendo de pena
dela e ela, provavelmente, morrendo de pena de mim.
E então pintou a única noite em que fizemos amor.
 
Fui com ela à rodoviária no dia seguinte. O frio era
intenso. Ganhei um beijo no rosto.
 
— Teria dado certo – ela disse com um sorriso nos
lábios – Mas você é flexível demais para deixar de ser
um sonho.
 
— Não precisa voltar. Nem ficar comigo no flat. Alugo
um para você.
 
— Eu preciso voltar porque ele vai acabar matando
meu filho.
 
— Qualquer dia a gente se vê.
 
— Difícil. Mas quem sabe se você não acaba
comprando um lixão...
 
 

 
               
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 03/11/2009
Reeditado em 24/12/2010
Código do texto: T1901855
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