Meio Termo

Tudo a sua volta era o Nada. Não compreendia o que acontecia, não fazia idéia de como havia chegado ali e sua última lembrança era de estar cavalgando em uma praia deserta. Pensava em abrir os olhos, mas sentia como se eles já estivessem abertos - apesar de não conseguir enxergar nada além do Nada. Sentia como se estivesse caindo lentamente, como uma folha seca de outono que percorre seu quase imutável destino contra o chão. O Nada era tudo a sua volta.

Quando a queda pareceu terminar sentiu seu corpo deitado em algo frio, aos poucos sua vista, que parecia totalmente embaçada e cega por um tipo de clarão branco, foi ficando nítida. Estava numa estranha e familiar sala branca, um cheiro enauseante inundava o local.

Levantou-se aos poucos enquanto tentava reconhecer aquele quarto, as paredes e piso brancos, a eterna sensação de nostalgia, os gemidos, gritos e dores que vinham dos corredores... Estava em um quarto de hospital. Demorou até que notasse que havia alguém numa cama próxima e quando viu quem era esse alguém seu espanto não pode ser contido.

Não conseguia compreender. Como poderia ver a si mesma deitada numa cama? Estava confusa, levou instintivamente sua mão em direção à boca entreaberta como gesto de espanto. Ambas as mãos estavam trêmulas, seus passos eram fracos e sentia-se perdida, foi em direção ao corpo que aparentemente era seu pretendendo tocá-lo com uma inexplicável ansiedade. Esperava que sua mão nem ao menos tocasse na cama, já suspeitava que estivesse morta, lembrou das cenas típicas de filmes sobrenaturais onde os espíritos são intangíveis, mas a reação foi outra. A jovem tocou os próprios pés e sentiu a princípio um estranho formigamento, tanto na mão quanto no próprio pé, algo como um calafrio, e também o calor do corpo que tocava. Achou aquilo curioso, mas em seguida recuou dando passos para trás ao se lembrar de quem estava tocando.

Respirou fundo e aproximou-se da cama para ver mais de perto aquela que era talvez ela mesma. Os cabelos escuros e ondulados, a pele quase pálida, as bochechas não muito redondas, os detalhes infantes de seu rosto. Não poderia ser outra pessoa. Mesmo assim, para ter certeza, procurou um sinal que possuía no braço esquerdo, um pouco abaixo do cotovelo e lá estava ela: uma pequena mancha no formato similar ao de uma folha.

Apesar de ter agora certeza de que estava morta seu desespero não foi maior. De fato parecia até se sentir mais aliviada, mais leve, como um peso a menos para si. A única questão restante era saber o que fazer agora de sua nova vida... ou não-vida. Precisava descobrir o que exatamente havia se tornado. Um espírito sem rumo? Espectro talvez... Nem sabia se existia realmente um céu ou inferno.

- Não existe céu, nem inferno. Até existem alguns planos exteriores, mas nada como o céu ou inferno estereotipado pelas pessoas. Tudo depende do ponto de vista.

A voz surgira do outro extremo do quarto. Marina virou-se procurando o dono daquela voz tão infante e viu realmente uma criança. Era pequeno e descabelado, usava roupas velhas e amarrotadas, um tênis desamarrado e sujo, fazia o tipo esquisito. O garoto se levantou segurando o que parecia ser um grande galho de árvore, um pouco mais grosso que um cabo de vassoura, com sinuosidades similares as de uma cobra, porém não tão bruscas, e não possuía nenhuma ramificação – talvez tivessem sido arrancadas. Usava o galho como apoio para andar, mas não parecia precisar de apoio algum.

- Quem é você? - Perguntou Marina.

- Tenho muitos nomes. Thanatos, Anúbis, Hel, Shinigami, Anjo da Morte, Coletor de Almas, Ceifador... Mas pode me chamar só de Caim.

Atônita, não conseguia compreender tanta informação em tão pouco tempo. Morrer, tornar-se espírito sem rumo e depois conhecer a morte: um garoto que anda desgrenhado! Respirou fundo e perguntou: - Então eu morri e você vai me levar para outro mundo?

- Claro que não! Vim aqui para te explicar sua situação.

- Que situação?

- Você não morreu, mas também não está mais viva. Seu corpo está em coma, quando uma pessoa entra em estado de coma seu espírito fica preso entre os dois mundos achando não ter mais volta, mas é tudo questão de escolha. Se você quiser pode vir comigo e abandonar seu corpo para sempre, ou voltar a viver e esquecer toda essa experiência sobrenatural que está tendo.

Aquilo era confuso. Viver ou morrer? Ela tinha uma escolha. Sempre tivera, mas nunca havia cogitado escolher. Apesar de tudo estava cada vez mais curiosa... e não conteve suas curiosidades.

- Então, por que uma pessoa em coma demora tanto para acordar ou morrer?

- Ora essa! Eu sou o mensageiro da morte, não do coma! Não posso ficar viajando de hospital em hospital para avisar a todos os espíritos perdidos que eles podem voltar. Acha que é fácil cuidar de todas as mortes do mundo inteiro? Certas vezes acho um ou outro vagando por ai ao acaso e explico tudo... com você foi assim. Morreu um recém nascido na sala de cima.

Caim deu as costas e caminhou até a porta do quarto, seus passos eram curtos devido a seu tamanho. Marina observou e pensou em dizer algo, mas antes disso ele falou enquanto saia: - Volto quando você se decidir, precisa de tempo para pensar e minha presença aqui vai te atrapalhar. Até.

Logo depois dele ter saído ela decidiu segui-lo, mas a maçaneta não girava, parecia travada. Achou aquilo estranho e tentou forçar mais usando as duas mãos... nada. Compreendeu finalmente que estava presa naquele quarto de hospital. “Então isso que é estar preso entre os dois mundos...?”; pensou consigo mesma, novamente tentando entender sua situação.

Sentou-se no chão da sala recostando na parede e começou a pensar em sua antiga vida... Precisava decidir logo o que fazer: Viver ou morrer? Definitivamente não queria viver, nunca gostou de sua vida apesar de não ser uma pessoa muito depressiva, apenas não tinha muitos motivos para viver. Sua mãe morreu enquanto lhe dava a luz e seu pai nunca se aproximou muito dela, provavelmente a culpava pela morte da mãe e ela sabia disso. Os amigos que possuía eram apenas interesseiros já que a família dela tinha um status elevado na sociedade, não eram exatamente ricos, mas eram muito bem acomodados. Seu pai até possuía algumas fazendas e terras pouco cuidadas.

Nada mais importava, nunca importou quando estava viva, importava menos ainda agora que estava semi-morta. Não queria voltar para uma vida sem sentido então restava apenas... “Morrer?”; também não se sentia preparada para morrer, ter uma segunda vida num suposto céu ou inferno (como poderia saber para onde iria?). “Não existe céu, nem inferno.”, disse o jovem que se intitulou Caim. Então para onde iria? “Planos exteriores”? Nem fazia idéia do que era isso...

Estava decidida, ficaria presa naquele quarto de hospital. Já que não queria viver nem ao menos morrer permaneceria “entre os dois mundos”. Não era exatamente o que ela queria, pois ainda achava que tinha coisas que gostaria de fazer como viva, só que tais coisas não poderiam ser feitas com seu pai também vivo. Precisaria fugir de casa, dar um jeito de acabar com seu cotidiano, mas ainda não tinha forças para fazer isso sozinha e teria de agüentar sua antiga rotina tediosa e sem motivos.

- Parece que encontrou uma solução - era a voz dele novamente, mas dessa vez não como a voz de uma criança - e fico feliz que tenha sido uma bem criativa, me pegou de surpresa.

Ele estava andando na parede do quarto, ignorava a gravidade como se ela fosse apenas uma regra a ser quebrada. Descia como se tivesse saído do teto, seu corpo estava perfeitamente na horizontal e caminhou até chegar ao chão onde normalmente colocou os pés e tornou a respeitar aquela velha lei que nenhum mortal nunca conseguira desafiar com tanta facilidade.

Marina apenas ignorou o que acabara de ver já se acostumando um pouco com coisas fora do normal. O que mais chamou a atenção é que dessa vez ele não era uma simples “criança desgrenhada”, agora apareceu na forma de um jovem aparentemente de 19 anos, mas que ainda era um tanto esquisito - era como a “criança desgrenhada” só que amadurecida. Os cabelos bagunçados, tal como os olhos e o olhar, eram os mesmos. As roupas não pareciam velhas, mas ainda fazia o tipo rebelde - o galho de árvore ainda era o mesmo. Algo nele chamava sua atenção, ignorou esse algo e perguntou: - Que solução?

- Entre morrer e viver você encontrou um “meio-termo”: continuar em coma, ficar presa aqui. Não que isso seja uma novidade para mim, mas você tomou essa decisão em menos de dez minutos, acho que temos um recorde.

- E que prêmio vou ganhar por isso?

Ele sorriu, odiava admitir, mas aquela jovenzinha lhe lembrava uma pessoa de algumas décadas atrás. Nunca sequer imaginou que poderia haver outra que lhe cativasse com tanta facilidade. Marina não era tão guerreira, possuía uma grande força de vontade e era uma grande pessimista. Entretanto o ar de ironia era muito similar ao da outra, como também o ar desafiador.

- Por que está sorrindo?

- Nada demais, me lembrei de uma situação similar... Mas respondendo sua pergunta, seu prêmio é que você não precisará ficar presa neste quarto. - nisso ele bateu com a base daquele estranho galho no chão e a porta se abriu – Estou quebrando algumas regras e estendendo sua área de interação no “meio-termo”. Existe apenas um porém: terá que ficar sempre próxima a mim, não poderá se afastar mais de vinte metros senão seu corpo morrerá e não poderá mais vagar nesse mundo. O único lugar em que essa regra não conta é esse quarto onde seu corpo se encontra. Enquanto seu corpo viver poderá ficar por aqui...

A morte estava lhe ajudando... Por que? Não importava, pois agora ela tinha uma nova vida. Não poderia chamar aquilo exatamente de vida, mas era melhor que viver ou morrer. “Um meio-termo...”; sussurrou consigo mesma e sorriu em seguida. Gostara do nome, era melhor do que “além” ou “mundo dos mortos”.

- Bem, sou uma entidade ocupada, tenho muitas coisas para fazer.

Caim levantou-se e não disse mais nada, apenas saiu pela porta, parou do lado de fora olhando para ela como se a esperasse, esboçou um sorriso e estendeu-lhe a mão. Marina levantou e foi até ele, saiu do quarto naturalmente, como se ainda estivesse viva e realmente se sentia viva apesar de saber sua atual situação. “Talvez a vida depois da morte seja exatamente como antes dela.”; concluiu enquanto pegava pela primeira vez a mão dele.

- Faz décadas que não tenho uma boa companhia. – ele lhe disse ainda sorrindo como se sussurrasse um segredo. Aquele Caim era tão diferente, parecia tão mais simpático e agradável. Era estranho como uma pessoa conseguia mudar de personalidade tão rapidamente, mas não importava. Nada importava.

Ela fechou a porta do quarto e foi embora.