O Sumiço do Primus
Os cinemas de minha infância mudavam de programa duas vezes por semana; constavam uns filmes de aventuras, um de amor e um filme em série, como se fosse novela. Realmente, a grande emoção era o seriado - El Zorro, Flash Gordon, A Sombra, Aranha Negra, O Guarda Vingador etc. Aplaudíamos, gritávamos e assobiávamos como desvairados. Imaginem, uma semana sem dinheiro para ir ao cinema; uma verdadeira tragédia; assim, me cuidava e economizava, além de procurar ganhar algum dinheiro realizando serviços como faxina, capina de quintais ou jardins, ou ainda, virando menino de recados, fazendo compras para quem precisasse. Era muito comum nos subúrbios, as donas de casa usarem meninos para compras, menos por preguiça, do que por ciúmes que os maridos tinham dos comerciantes. Não esquecer de comprar arroz do Armazém Vaticano por ser melhor, carne no açougue do Osvaldo por ser mais fresca, embora ele fosse “ladrão como um rato,” segundo a freguesia, além de ser metido a conquistador, valendo-se do sorriso, onde pontificavam caninos superiores de ouro 18 quilates.. Eu me lembro que no Café e Bar Oceano não havia um leite recomendável. Seu Domingos colocava água e, eu mesmo, o vi colocar no vasilhame de 50 litros enormes pedras de gelo pesando mais de uma tonelada. Quando era de todo impossível conseguir o dinheiro do cinema, procurava-se vender vidros e metais que davam um bom preço. Um dia, o Juca vendeu o fogareiro Primus a gasolina, depois de lhe arrancar as pernas, vendendo o bojo que era de metal pesado, uma liga de cobre maciço. O fogareiro era de grande consideração do seu pai, que vivia falando de suas admiráveis qualidades. Eu achava o fogareiro de alta periculosidade. Era um tanque de gasolina com um tubo de metal com canal filiforme, por onde a gasolina se evaporava e onde se colocava o fogo; como um bico de Bunsen a gasolina. O sumiço do fogareiro causou o maior rebuliço e não poderia ser de outra maneira; como fazer uma comida rápida? Seu Borges, pai de Juca, foi buscá-lo, após a apuração do caso, num comprador de ferro velho, no Caminho do Mateus ou do Faleiro; exigiu que o desonesto lhe soldasse as pernas, tarefa mal cumprida, que tirou a elegância do fogareiro. O Juca com esse comportamento exagerou nos desatinos... Eu tive mais sorte, pois, o Donga, marido de D. Luzia, me arranjou um importante serviço pra fazer; trazia milhares de etiquetas de madeira, usadas nos sacos de correspondência do D.C.T. e eu as recuperava, raspando-as com cacos de vidro, prestando grande serviço à economia pátria. Eu recebia mil réis por milheiro, não faltava dinheiro para o cinema e ainda juntei dezoito mil; comprei um sapato de camurça verde pelo valor de dezoito mil etiquetas. Como podem ver, a rigor fui o iniciante da raspadinha como fonte de lucro!