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                                    NAQUELA MANHÃ DE SOL
 
            Naquele ano a primavera demorou um pouco mais para vir, ou pelo menos as flores não se abriram de imediato colorindo os campos. O inverno dissera adeus, mas deixara um pouco de frio para as manhãs e inícios de tardes. Com isso obrigava as pessoas ao uso de agasalhos.

            Era manhã de sol. Na Praça da Igreja eu esperava por Susana postando-me exatamente no lugar escolhido por Adriana para a gruta na celebração do Natal há três ou quatro anos. É claro que a gruta já não estava mais ali, tinha sido apenas um cenário, mas aquele espaço ficara impregnado de lembranças de Adriana. 

          Sempre que Susana se demorava um pouco pela manhã eu sabia que estava saindo de uma noite mal dormida e que passaria pela farmácia antes de vir ao meu encontro. Era a maneira que tinha para justificar o transtorno que em tais situações julgava me causar. Mentia dizendo que precisou apanhar alguns medicamentos dos quais apenas pela manhã se lembrou.

            -- De onde vem toda essa paciência para comigo? – havia me perguntado Susana já no verão anterior.

            -- Os nossos relógios estão subordinados ao relógio do Universo, sabia?

            Por alguma razão que eu desconheço ela se mostrava fascinada por pensamentos assim. Por coisas que envolvem os mistérios do Universo e que começaram a desafiar a mente humana já há milhares de anos entre os povos do oriente, dos quais Susana descende e é uma das flores mais representativas.

            -- Fala mais sobre isso.

            -- A espera é sempre angustiante, Susana. Contudo o tempo não sai de seu ritmo e não para. E todos os fenômenos ocorrem rigorosamente sincronizados no tempo. A angústia da espera provém da expectativa. Portanto, provém da existência da esperança. Mesmo que seja um delgado e frágil fio de esperança.

            -- Devo estar entendendo?

            -- Deve estar entendendo.

            E ela estava entendendo. Procurando ser bastante hábil eu lhe falava na linguagem do coração, única forma de penetrar no sacrário de seu íntimo e assim tranqüilizá-la afastando os seus fantasmas interiores. Suzana era leonina, filha do Sol, herdeira dos brilhos de ouro, sensível aos descuidos que podiam ferir profundamente seu ego. Filha do Sol, regida pela Lua. Os flashes de clarividência rompendo e iluminando os reinos da imaginação e dos sonhos. A respeito de si mesma, de seus sonhos e seus mistérios, não se expressava facilmente. Solidária, ativa, susceptível à diversão, era envolta por uma aura contemplativa mesmo em seus momentos mais alegres. Ela era imã, atraindo para si pessoas incomuns, às vezes obscuras e até mesmo destrutivas.

            Era menina quando os fardos dos outros começaram a deslizar para seus ombros. Tão menina que o peso ameaçou curvá-la um pouco para frente e foi preciso aplicação para corrigir um desvio de coluna. Muito antes de começar a atender no balcão da farmácia ela desaparecia por longas horas durante o dia. Quase sempre havia alguém precisando de sua solidariedade e eu nunca descobri os verdadeiros motivos que a levavam a esse alguém, fosse quem fosse. Ao meu modo eu a amava desde sempre. E em minhas orações pedia aos céus que aquelas suas atitudes fossem mesmo frutos de sentimentos de caridade e não uma fuga de si mesma. 

            Naquela manhã de sol ela me surpreendeu. Disse ao vir sorridente, atravessando descalça diretamente sobre os canteiros, que lhe faltara o sono. Pela manhã dormira demais.

            -- Quero que me fale sobre aquela história do relógio do Universo.

            -- Vamos falar sim. Conversamos aqui mesmo?

            -- Não gosto deste canto da Praça. Ele é todo Adriana.

            -- É! De certo modo ela ficou por aqui em espírito. Estou terminando um painel. Gostaria de ver como está ficando?

            Eu ainda morava na casinha de madeira. Nas manhãs de sol transformava o pequeno quintal em um atelier e ali me entretinha praticando a minha arte. Vez por outra minha esposa, ou minha filha, uma das duas, aparecia com uma conversa qualquer disfarçando a preocupação que as afligia em relação a minha saúde. Temiam por meu coração em virtude de minha idade. Eu estava ganhando peso e as sucessivas primaveras haviam deixado os meus cabelos brancos. Ambas queriam que eu me espairecesse e a maneira que encontrei para não contrariá-las foi acompanhar Susana em suas rondas pelas favelas, levando solidariedade a enfermos e oprimidos. Naquela manhã de sol, entretanto, éramos nós os enfermos e oprimidos. Por isso a favela estava em meu quintal e foi para onde fomos.

            Entramos eu e Susana pelos fundos e enquanto eu estava retirando os painéis do abrigo, ela se sentiu atraída por alguns dos quadros pendurados quase uns sobre os outros.

            -- Vou fazer seu retrato- falei

            -- Não hoje. Hoje quero que fale sobe o relógio.

           Compreendi quase imediatamente.

            Susana sofria por estar apaixonada. 

            Nós nos sentamos à sombra sobre toscos banquinhos de madeira.

            -- Susana – eu disse – ele talvez não volte. 

            O rosto de Susana me pareceu pálido.

            -- Eu sei – continuei no mesmo tom – que ele ama você e que gostaria de estar com você. E eu sei que de certo modo ele também está sofrendo.

            -- Mas porque diz que ele talvez não volte?

            -- Porque você o ama.

            -- Ele não volta porque eu o amo?

            -- Não! Claro que não. Não é porque você o ama que ele não volta.  Eu estou dizendo que ele talvez não volte porque você o ama. E por amar você sofre. A ausência, a expectativa, isso tudo gera a ansiedade, a insônia, o sofrimento inútil. Você aguarda pelo reencontro que talvez não ocorra. E mesmo que ocorra. Você sabe que nada que possa dizer a ele será capaz de alterar a situação. Digamos que ele venha. Que conversem. Que ele lhe conte tudo o que está acontecendo. Que garantia você tem de que ele tome a decisão que você deseja? O mais provável é que ele lhe diga que precisará ainda de um tempo indefinido para decidir se volta ou não.

            -- E o relógio?

            -- É preciso aprender que o relógio marca a passagem do tempo do Universo. Tudo passa. Não tenha medo dos finais de semana solitários. Eles também passam. E depois que passam, podem atirar você ao vazio, porque tudo continua indefinido e tudo o que pode ver no horizonte é o rascunho de novos finais de semana solitários.

            Ela abriu um sorriso constrangido.

            -- Vou fazer o seu retrato – insisti.

            -- Não! Você fez o retrato da Adriana.

            -- Fiz. Mas posso lhe contar uma história? Ele já veio aqui várias vezes depois que Adriana foi embora. Algumas vezes deixei o retrato dela propositalmente à mostra e ele nem olhou. Não! Não desviou os olhos, não olhou com o rabo dos olhos, não precisou conter o descompasso do coração quando os olhos ocasionalmente deram com o retrato na tela. Adriana apenas passou pela vida dele, mas não marcou. Ele ama você. E é o seu retrato que está no coração dele.

            -- Como sabe?

            -- Sabendo.

            Ela sorriu. Molhou meu rosto negro e velho com um beijo de gratidão. 

             E naquela manhã de sol eu não sei se agi como anjo ou demônio. Mais certo seria dizer que agi como jardineiro regando a florzinha da esperança que ela cultivava com tanto desvelo.

            Naquela manhã de sol, quando a primavera ainda não havia coberto os campos com uma intensa profusão de cores, olhei com ternura para Susana sentada à minha frente, no quintal de minha casa feita de tábuas, tendo ao fundo alguns painéis que estavam por terminar.

           Susana, ali, era a personificação do amor. 

          Por mais que a realidade contrariasse seus desejos, dispunha-se a esperar até a eternidade por um amor que talvez tenha lhe sido destinado desde antes da criação do próprio tempo.  


(Fragmento de meu livro "Do Coração e Com Saudades "- 2004
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 01/11/2009
Reeditado em 13/11/2009
Código do texto: T1899380
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