Acampamento em Gericinó.
Acampar em Gericinó era a pior coisa que nos podia acontecer, durante o período em que estávamos no CPOR. Fiz o curso na Infantaria durante dois anos e sete meses; a bem da verdade, só freqüentávamos diariamente na época das férias da Faculdade; fora daí, apenas aos domingos. O convívio no Centro era muito bom, pois, os alunos, na sua imensa maioria, eram universitários das várias faculdades do Rio. As escolas no CPOR tinham trinta alunos cada uma, sendo os mesmos conhecidos por números; eu era o 351; até mesmo os amigos do mesmo bairro, durante a permanência no serviço, tratavam-se por números; assim, Ivan meu grande amigo era o 354, o José era o 368...As novas amizades eram conhecidas e tratadas apenas pelos números; Isaac , aluno da engenharia e violinista era o 352. Às vezes, conseguia ser divertido freqüentar as aulas de combate, topografia, transmissão e informação, onde aprendemos a importância da catenária na implantação de linhas elétricas (!) - como falei no início, o pior era o acampamento em Gericinó; comentava-se que durante os acampamentos sempre morria algum aluno; de fato, era um grande risco alunos patuscos mexerem com metralhadoras, bazucas, canhões e outras armas menos votadas; eu mesmo experimentei o desgosto, durante exercícios de tiros de bazuca, de ter um projétil encravado na arma, sem coragem de retirá-lo, seguindo a orientação do manual: colocar as mãos na boca do tubo virá-lo para baixo, e deixar que o obus, suavemente, descesse na concha das mãos; felizmente ao meu lado estava um armênio naturalizado brasileiro suficientemente louco para seguir as regras, e me tirou da situação aflitiva. Em Gericinó os dias eram extremamente quentes e as noites muito frias; era um verdadeiro martírio, quando nas férias íamos acampar; é lógico que havia alguns que gostavam da idéia e achavam uma aventura reconfortante; melhor do que um safári africano, onde estar cercado de feras seria menos excitante do que estar cercado de projéteis e obuses, para não contar, os ensandecidos oficiais de campo. Havia um deles, um capitão cearense, que ao chegar ao local do acampamento dizia: felizmente chegamos em casa! Outros mais sofisticados chegavam a fazer confidências sobre as dificuldades do militarismo; geralmente pertencentes às famílias de militares, viam-se forçados a tentar o generalato, sem a mínima convicção militar; carreira que não dá para mudar quando bem entender, pois, existem rígidas normas, o chamado RISG - terror dos militares menos graduados. Éramos obrigados a estudar com afinco, todas aquelas teorias militares, pois, havia um prazo para terminar o curso de oficiais da reserva; dois anos perdidos significariam ter de prestar serviço na tropa, como recrutas. A disciplina era rígida e a inspeção da tropa ao término do expediente era um terror; os oficiais examinavam o aluno: barba, cabelo, roupas, sapatos e, caso não estivessem de acordo, obrigavam o retorno à noite para nova revista. Eu costumava juntar uma tropa heterogênea e, à hora da saída, saíamos do quartel em ordem unida; tudo funcionou bem, até que a minha tropa começou a crescer muito, gerando desconfiança dos oficiais. Felizmente tudo transcorreu bem e depois daquele sacrifício inútil, recebi o espadim; diga-se de passagem, que não o comprei, pois, o Tenente, pai da Terezinha, emprestou-me o dele para a solenidade no campo do Vasco em presença de Getúlio Vargas. Após receber meus certificados, nunca mais voltei ao Ministério da Guerra, chegando a esquecer que era militar da reserva.
Durante o período de acampamento aumentava a camaradagem entre os colegas, e eu sempre insistia com o Isaac para levar o violino e, nos momentos de lazer, fazia com que ele tocasse a Meditação de Thais, de Massenet. Isaac formou-se em engenharia, mas nunca abandonou a música, formando um conjunto de música de câmara. Certo dia solfejou uma música e me disse: quero ver se você entende mesmo de música clássica, qual o compositor que eu solfejei? Respondi sem pestanejar: Katchaturian; ele ficou perplexo com meu conhecimento e eu mais ainda, pois, nunca tinha ouvido nada do compositor!
Havia uma certa rivalidade entre os militares das diferentes armas. Falavam mal dos intendentes, acusando-os de se beneficiarem nas compras (segundo diziam, reafirmo); chamavam os infantes de pés de chumbo, servindo como bucha de canhão; a cavalaria tinha a fama de abrigar os militares menos inteligentes, e a engenharia seria a elite militar, restando a artilharia como reduto dos militares mais frios e objetivos. Quando me inscrevi no CPOR, pretendia ir para a intendência, onde o trabalho seria meramente burocrático, sem ter de pegar em armas, coisa que abominava; como segunda opção coloquei engenharia; como era de esperar, acabei na infantaria, aborrecido, mas com a vantagem de não precisar dar banho em cavalos! Durante o ano estudava-se umas 12 a 15 matérias, com provas difíceis, onde os instrutores tiravam os recalques em cima da massa universitária; a pior matéria era combate, onde eram criadas situações de guerra e nós tínhamos de decidir a conduta a ser seguida; havia matérias agradáveis, como topografia, para citar um exemplo. Às vezes, estudávamos intensamente para uma verificação, e no dia da prova o instrutor resolvia fazer uma surpresa, como por exemplo, escrever as letras daqueles principais hinos, que levam o soldado a morrer alegre; era demais! Houve uma prova final, em que uma das questões era escrever o hino nacional brasileiro; foi um fiasco! O Zezinho, ou seja, o 368, ainda deitou falação dizendo da importância cívica de se conhecer a letra do famigerado hino. A música até que dá pra agüentar, principalmente, quando se a escuta em forma de fantasia do compositor Gottschalk.
Havia exercícios noturnos de treinamento com mapa; colocavam em nossas mãos um mapa da região, e mandavam que nos embrenhássemos na mata, devendo apanhar em determinados pontos um comprovante da passagem pelo local; parecia gincana! Meu grupo organizava uma dormida na mata, próxima ao acampamento, e depois regressava, evidentemente, sem os comprovantes da passagem pelos locais combinados; deixávamos o brilhareco para os candidatos a heróis. Ainda havia a programação erótica, quando os alunos iam para o bordel de Ricardo de Albuquerque beber e amar.Como nunca bebi e passava longe desses amores de aluguel, nunca foi. Teria agido certo?