NABILAH
 

 
 
 
          Extremamente consternado, um rei viu todo o seu império participando das cerimônias fúnebres de sua filha caçula, acometida por doença inesperada e fulminante que a levou antes de completar dois meses de idade. Na capital e nos mais longínquos vilarejos houve luto fechado e muita tristeza. Passados os dias de luto, nova provação caiu sobre aquela região remota; o soberano precisou reunir seus soldados às pressas e fugir, com a família e seus nobres, de poderoso inimigo que se aproximava em marcha forçada. Foram, entretanto, alcançados e mortos.

          Alguns dias antes do sepultamento do bebê houve, ao sul da capital, um assalto a uma caravana de mercadores que se aproximava de um oásis. Todos os bens, incluindo os camelos, foram tomados num golpe extremamente hábil, repentino e devastador. Os integrantes da caravana foram todos mortos. Todos, menos duas pessoas; um homem cuja idade não chegava a trinta e cinco anos, e uma criança de colo. 

          Rahman sobreviveu por ter percebido a aproximação dos bandoleiros. Afastou-se do grupo levando a criança nos braços, e oculto aguardou até bem depois que sobre o deserto voltou o silêncio naquele final de tarde. Cauteloso inspecionou os arredores e constatando a existência de uma nuvem de pó no horizonte, soube que os malfeitores se afastavam. Tomou a direção quase oposta. Marchou com seu pequeno fardo até encontrar relva e habitações modestas. 

          Rahman precisava avançar com urgência retomando a rota que deveria ter feito com a caravana dizimada. Não poderia levar o bebe. Procurou pelo prédio do mercado, e, tendo acomodado o anjinho sobre uma das bancas de flores, foi instantaneamente rodeado por pequena multidão de curiosos. Relatou então as circunstâncias que o aproximaram e o uniram à criança. 

          Sendo muito pobre e esquecida, a comunidade não possuía os meios necessários para se defender de eventual ataque de bandoleiros. Houve, portanto, quem desejasse que o forasteiro nunca tivesse vindo parar ali. Mormuraram pelos arredores, esguios como as serpentes. O forasteiro poderia estar sendo seguido. 

          Entretanto, a chegada daquela criança em condições tão precárias despertou a solidariedade. Jawad, homem muito generoso, imediatamente se apresentou desejando adotar a criança. Darya sempre desejara ser mãe e Jawad entregara dez anos de sua vida amando-a verdadeiramente.      

          Na falta de um nome chamaram a criança de Nabilah. Haveriam de reanimá-la com leite de cabra, amor e carinho. 

          -- Foram felizes na escolha do nome para a menina. – garantiu o líder religioso ao casal – Significa inteligência e ao longo da vida elevar-se-á. 

          A profecia alegrou ao casal, tanto mais que o mulá compreendia a linguagem dos astros e certamente os havia consultado para fazer tal afirmativa. Todos nascemos para marcar nosso retorno no caminho das estrelas.

          Apegaram-se à menina desde o primeiro dia. Quando a notícia do luto oficial pelo falecimento da princesinha chegou ao povoado, Darya passou dias com a filha nos braços implorando a Deus que não a levasse também. Condoído pelo sofrimento a que se entregara a esposa, Jawad fez fervorosas orações ao longo daqueles dias, sendo-lhe na oportunidade particularmente penoso afastar-se de casa para cuidar de suas cabras no campo. 

          Nabilah precisou de algum tempo para se recuperar dos incomodos que sofrera no deserto em tão tenra idade. Mas os meses foram se sucedendo e em menos de um ano aprendia a andar. A mãe adotiva a levava acavalada em seu quadril até o mercado, no final da rua, alegrando com ela a todos os vendedores e compradores. No inicio da noite o pai adotivo brincava com ela na frente da casa, entretendo-a ao luar enquanto o frio não vinha. Adormecida nos braços dele era posta para dormir. Ela era a alegria da casa, despertando na mãe a vontade incontida de cantar marcando o ritmo nas palmas das mãos e ensaiando passos de danças na pequena sala de chão batido. O pai adotivo vivia em imensa ventura em razão daquele pinguinho de luz que punha brilhos de felicidades nos olhos de sua adorada Darya.

          E em poucos anos Nabilah era uma menina crescida. Ganhou para si um cubículo na casa passando a contar com uma cama confortável e cortinas na janelinha oval. Ter só para si um quarto especial naquela residência de reduzidos espaços era um luxo sem tamanho. Tinha consciência da pobreza em que viviam. Era, entretanto, grata a Deus, pois sabia que morava em uma das melhores habitações do povoado, feita de adobe com um telhado que impedia a entrada das águas das chuvas ocasionais. 

          Conhecia as crianças que passavam o dia todo carregando água ou galhos secos para venda aos moradores do vilarejo. Também ela ia à fonte de onde trazia a água para casa, mas o orgulhoso Jawad jamais permitiu que transportasse água ou lenha para vender. 

          Quando Nabilah completou quatorze anos de idade, Rahman voltou ao povoado. Era ainda um homem forte, viúvo, comerciante. Ele e dezenas de outras pessoas traziam tecidos e tapetes, mercadorias de rara beleza e muito valor, transportados sobre camelos e cavalos. 

          Contente, Jawad apresentou-se à hospedaria e assim que reconheceu Rahman fez menção de ajoelhar-se.

          -- Este é meu filho Ghalib – disse o mercador sinalizando a Jawad para que se recompuzesse e apresentando-lhe um moço que naquele momento entrava na sala da hospedaria com um livro de anotações.

          Ghalib fez uma reverência inclinando a cabeça para Jawad e manteve-se em pé, calado. Jawad o elogiou ao pai.

          -- Tem suas feições, Rahman. Que Deus faça dele um homem generoso.

          Em homenagem ao mercador, Jawad vendeu algumas de suas cabras e com o produto da venda ofereceu um jantar em sua casa, enfeitada por Darya e Nabilah.

          -- É uma honra tê-lo em nossa casa. Em razão da amizade que nos une, e para que possamos expressar toda a nossa gratidão, permita que minha mulher e minha filha participem de nossa mesa dispensando, nesta noite, o uso do véu.

          O prato principal, carneiro assado com legumes, teve como alternativa abobrinha recheada de verduras. Em vasos de vidro colorido vieram xaropes com vários sabores. Pela primeira vez Jawad e sua família experimentaram das bebidas de origem ocidental, provando da coca-cola, trazida por Rahman.

          A reunião íntima foi bastante feliz, as historias contadas eram alegres e Darya estava disposta a cantar. Nabilah e o moço Ghalib, entretanto, raramente estiveram realmente à vontade, constrangidos, um em razão da presença do outro.

          A partir daquele jantar, em que a rigor quase nada conseguiu comer, Nabilah constantemente punha seus olhos sobre o moço Ghalib. Algumas vezes alterava seus caminhos de modo a passar pelas imediações do mercado, onde os mercadores expunham seus tapetes e tecidos na calçada. Ghalib estava sempre sobre pilhas de tapetes esticados. Entretidos com o trabalho estavam sempre com ele outros rapazes tagarelas e risonhos. Mais contido, Ghalib parecia sempre atento ao movimento dos transeuntes, procurando identificar eventuais interesses por seus produtos. Aparentemente nem notava a aproximação de Nabilah.

          Em casa, executando o trabalho doméstico, Nabilah não conseguia evitar que o moço lhe viesse à mente. Ele a encantava com aquele seu sorriso, com o modo como se portava enquanto negociando suas mercadorias, com o conhecimento que ele obviamente possuía a respeito de tantos lugares por onde havia passado. E com  aquele seu modo de andar.

          As coisas se passaram assim ao longo de todas as semanas em que Rahman e demais mercadores permaneceram no vilarejo. Para não dizer que nunca se falaram, trocaram sim algumas palavras as quais em verdade não foram doces da parte dela. Não era mal educada e não tinha a intenção de ferir, mas a emoção a dominava e seus lábios diziam o que seu coração não desejava. Foi assim que recusou a ajuda dele para o transporte da água.

          -- Obrigada, mas não devo aceitar ajuda.

          Em cumprimento ao calendário, Rahman anunciou que chegara a hora de sairem do vilarejo. A caravana começou a ser formada logo no início da tarde do mesmo dia, embora partissem apenas na manhã seguinte. Rahman supervisionava os preparativos para a partida indicando a posição de cada mercador na longa fila indiana de camelos que por dias e noites cortaria longos trechos de deserto. Era preciso ordem e disciplina, era preciso organização a fim de que ninguém se perdesse em caso de tempestade de areia, a fim de que todos pudessem oferecer ajuda em caso de ataque de bandoleiros e a fim de que as disputas pelas posições consideradas privilegiadas não evoluíssem para brigas internas na caravana.

            O sorriso de Ghalib permaneceu na mente de Nabilah. O sorriso e o modo de andar. E muitos meses depois, aquele sorriso era a única lembrança mais nítida que possuía do retorno de Rahman ao vilarejo, vindo agora com sua comitiva de comerciantes. Isso permaneceu assim até a terrível manhã em que o povoado acordou sob a mira das armas.

            Jawad foi morto como se fosse um cão sem dono, dos quais o vilarejo tinha às dezenas. Cães esqueléticos, famintos, cobertos de pó, com seus olhos brancos, súplices, afastados de todas as portas sob ameaça de açoites com varas ou contusões por pedradas. Modelo de vida que nem mesmo o mulá, com suas leituras do traçado das estrelas pôde prever para aquela população.

            Sem a proteção de Jawad e separada de Darya, Nabilah passou a habitar um campo de refugiados, vivendo sob lona em uma região da fronteira. Ali passou fome, sede e frio, conhecendo as penúrias da pobreza mais intensa, aquela em que a pessoa não tem nenhuma certeza de que estará viva nas próximas horas, e, se viva, terá energias para negar seu corpo.

            Ela agora vivia em uma região de montanha. Pela manhã e no início da tarde podia ver o nevoeiro ocultando os baixios. Algumas pessoas que estavam com ela diziam que do nevoeiro surgiriam os guerrilheiros que enfrentavam as forças oficiais. 

            -- Alguns deles foram vistos recentemente na região. Há quem diga que o moço Ghalib vem obtendo ajuda armada do exterior.

            Ao ouvir o nome de Ghalib, Nabilah gelou. O sorriso voltou-lhe à mente e seu coração bateu acelerado. Passou a perceber que aquele nome era pronunciado com respeito, admiração e esperança no acampamento. Soube, alguns dias depois, que existia no acampamento quem guardava pedaços de jornais com notícias sobre os insurgentes. Que o nome de Ghalib estava nos recortes dos jornais. O nome e a fotografia. 

          No coração de Nabilah nasceu um orgulho imenso daquele rapaz de sorriso danado. Era alguém a quem ela conhecera. A quem estivera frente a frente. A quem agora sabia que havia amado, em sua puberdade, na forma mais pura do amor. Era mais do que um conhecido, mais do que um amigo, mais do que um irmão. Sentia-se orgulhosa dele. Orgulhosa de ter tido contato pessoal com ele que agora defendia o antigo império. Devotava-se ao serviço do povo e seu nome corria o mundo! 

          Ela sentiu que ainda o amava e estava confiante em que aquele amor antigo a manteria viva.

           Aquele sentimento cresceu no dia em que ela foi chamada a participar dos assuntos a que se atinha pequeno grupo de refugiados. Foi quando soube que lhe seriam fornecidos os documentos para cruzar a fronteira de modo a estar a salvo e desfrutando de mais conforto em país estrangeiro.

            -- O passe está assinado por Ghalib. Isso garante certa segurança na estrada por toda a região de fronteira até a linha de divisa. Mas, depois, podemos encontrar sérias complicações.

            Por ser uma das escolhidas nominalmente, Nabilah compreendeu que Ghalib conhecia seu paradeiro e sua sorte, e que tentava pô-la a salvo.

            O grupinho foi transportado inicialmente por um ônibus que depois de sacolejar por horas a fio quase em marcha lenta, parou de repente em um vale cuja vegetação rasteira continha pequenas flores. As árvores eram esguias e as ordens eram para que se mantivessem em silêncio. As horas de espera foram eternas e cansativas. Olhando para cada um dos companheiros de infortúnio Nabilah sabia que sua aparência, maltrapilha e esgadelhada, esquelética, assemelhava-se bastante à imagem de uma doida.

            Não foi essa a imagem que os olhos de Ghalib colheram para o coração do moço. Ele surgiu como que brotando da terra em companhia de companheiros de luta armada. Tinha o rosto descoberto, o mesmo sorriso maroto e a mesma atenção para com todos os que lhes estivessem ao redor. E do mesmo modo de sempre, comportou-se inicialmente como se não lhe fosse notável a presença de Nabilah naquele grupinho de pessoas assustadas.

            Depois, entretanto, naquele seu modo de andar, veio-lhe e a separou dos outros. E aquelas mãos que portavam armas pesadas e estavam sempre prontas a tirar vidas, a acariciaram de um modo simplesmente divino.

            -- Querida eu me orgulho de você. De sua coragem, de sua determinação, de suas vitórias e de suas derrotas. Eu nunca mais vou esquecer você.

            Emocionada, extremamente feliz, ela não conseguiu expressar seus sentimentos. Em sua mente voltaram as cenas que com ele vivera no povoado, e que tendo se passado em apenas algumas semanas lhe pareciam agora ter durado uma vida inteira. 

           Ela seguiu pouco depois, a pé, com o pequeno grupo, sem ele. 

          E enquanto caminhava tropeçando para descer a montanha sob as árvores que traziam o anoitecer prematuro, reviu mentalmente seus pais adotivos que a criaram com tanto amor. Reviu as cenas do jantar, viu de novo Ghalib sobre a montanha de tapetes e com aquele sorriso danado. Talvez jamais voltasse a vê-lo.

            A luta armada permaneceu ceifando vidas e produzindo maltrapilhos por vários anos, durante os quais o nome de Ghalib desaparecia do noticiário internacional por longo tempo. O que vinha na tela da televisão e promovia a venda de jornais e revistas, eram imagens e relatos de seqüestros, bombardeios, e exposições de corpos mutilados. Ao longo desse período, no exílio, Nabilah sobreviveu. Morou em casa de pensão, serviu como camareira em hotel, conviveu com gente miúda nos bairros repletos de gente miúda que faz das grandes capitais um formigueiro humano. Nabilah foi cantora e dançarina. Nabilah teve, enfim, uma vida.

            E então, surpresa, viu-se de um momento para outro reconhecida como pessoa e, protegida por batedores, tomou ciência de que era a herdeira do trono de sua pátria. Era ela o bebezinho que o rei tentara proteger do ataque dos inimigos e que, para isso, encarregara seu fiel amigo Rahman de conduzi-la a salvo entre caravaneiros.

            Ela voltou dois meses depois disso à sua capital. Coroada rainha, se fez cercar por ministros altamente qualificados.

            Quanto a Ghalib gostaria de vê-lo para matar as saudades, falar sobre suas vidas, conhecer os sonhos dele de futuro. Mas, como? As responsabilidades assumidas por uma rainha são tão grandes. 

           E o amor?

          Ah! é! O amor! 

          Vamos torcer para que pelo menos neste conto, o amor não seja eterno apenas enquanto não fenece apunhalado pelos envolvimentos a que nos atrelamos.


Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 25/10/2009
Reeditado em 17/11/2009
Código do texto: T1885414
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