CRISÁLIDA - parte V

Rebeca retornara, descendo as escadas lentamente e em seu encalço estavam outras três pessoas. Um homem elegante, um garotinho soturno, e uma moça bela e atraente.

— Senhor Roger, o que quer falar conosco? — indagou o homem. Sua voz era grave, agradável de se ouvir.

— É...

— Ah, me desculpe! — exclamou ele. — Deixe que eu apresente toda a família.

Então, com uma sutileza notável, ele apresentou o garotinho e a moça que o acompanhavam.

— Este é meu filho, Oscar — disse ele apontando para o menino que expressou apenas um sorriso amarelo. — Esta é Suzana, também minha filha. — A moça lançou a Roger um olhar sedutor e sorriu.

Por fim ele apresentou-se: — E eu sou Bernard Ávila, muito prazer em conhecê-lo.

— Prazer senhor — disse Roger, ainda hipnotizado com o sorriso de Suzana.

Ela devia ter a mesma idade que Roger. Era alta, tinha cabelos vermelhos e lisos; seus olhos eram azuis como a água do mar nas costas da Austrália, e o sorriso dela parecia reluzir naquela penumbra em que eles se encontravam.

Suzana fixou seu olhar no rapaz, e ele sentiu suas pernas amolecerem e seu coração disparar. Ela mecheu nos cabelos e colocou as mãos na cintura, dando em seguida um sorriso provocante. Os olhos de Roger ficaram vidrados na garota; ela parecia extremamente sensual, e ele não podia acreditar no que via: ela estava “flertando” com ele.

Nesse momento o garotinho começou a rir, mas Bernard berrou com a filha:

— Pare Suzana! Já disse que não deve fazer esse tipo de coisa.

— Mas pai, só estou brincando com ele...

— Pare agora!

Cedendo à vontade do pai, a moça amoleceu e sentou-se no sofá, desviando seu olhar de Roger. Assim que o fez, o rapaz cambaleou e caiu desacordado. Bernard olhou ainda mais furioso para sua filha.

Quando Roger acordou, se viu deitado numa espécie de caixa acolchoada e forrada com cetim branco. Logo ele descobriu que havia sido colocado num caixão!

Rapidamente ele pulou de dentro do caixão que ficava sobre uma plataforma de madeira, mas como ainda estava um pouco zonzo, perdeu o equilíbrio e caiu no chão, não sem antes esbarrar numa escrivaninha e derrubar tudo que estava em cima dela. Com tal estardalhaço, logo Bernard entrou no quarto acompanhado de seus filhos.

— Você está bem? — perguntou ele num tom preocupado.

— Quem são vocês afinal? — inquiriu Roger desesperado. — Por que me colocaram naquele... caixão!?

— Fique calmo — disse Bernard se aproximando do rapaz.

— Se afaste!

— Roger, acalme-se, não vamos machucá-lo.

— Não? Ah, pois não foi isso que vocês transmitiram a mim, quando me colocaram dentro desse caixão. Sei que sua família é assassina!

— Sim, isso fez parte — disse Bernard.

— Fez parte do que? — indagou Roger indignado. — Matar pessoas não é normal como devem pensar.

— Escute Roger, só precisamos que você nos ajude.

— Ajudar? Nunca!

Bernard o agarrou.

— Me solta!

— Não, até que você nos ouça.

Bernard o levou até o sotão, um lugar úmido e escuro, com forte cheiro de bolor. Quando o homem ascendeu a luz, Roger teve uma surpresa ao ver que a parede oposta a porta estava repleta de fotos e recortes e jornais da menina Thamires.

As fotos mostravam uma menina alegre, mas os jornais apresentavam fatos horrendos. Thamires fora brutalmente assassinada, e seu corpo fora marcado por sinais estranhos. Sinais esses que pareciam tão familiares para Roger.

— Isso é terrível — disse Roger. — Foram vocês que a mataram, não é?

Suzana inesperadamente deu um tapa no rosto dele.

— Pára de ser idiota! — exclamou Suzana. — Por que iriamos reinvindicar o corpo dela, se nós a tivéssemos a matado?

— Não matariamos uma escolhida — disse Bernard.

— Escolhida? Do que você está falando?

Nesse momento o garotinho Oscar se aproximou e aplicou um chute na canela de Roger.

— Ai, porque fez isso?

— Por que você é muito chato! Deixa meu pai te explicar tudo, antes de ficar aí se descabelando.

— É que somos vampiros — disse Bernard de repente.

Roger o encarou com espanto.

— Quê?

— Sim

— E porque acham que eu acreditaria nisso?

— Será que ainda não tem indícios suficientes? — indagou Bernard. — Afinal, não saímos à luz do sol, dormimos em caixões, temos poder de atrair as pessoas.

— Isso mesmo — disse Suzana, entrando na conversa. — Eu te hipnotizei aquela hora, e você até desmaiou. Sem falar que só veio até nós porque te chamamos inconscientemente.

Apesar de achar tudo aquilo loucura, poderia isso fazer muito sentido.

— Acho que não vão me convencer de tamanha bobagem...

Em resposta, suzana se contorceu e seus olhos se tornaram rubros. Ela se aproximou do rapaz e então exibiu dois pares de presas que haviam surgido naquele instante; duas na arcada inferior e duas na superior.

— Se tiver ainda alguma dúvida, posso te morder — disse Suzana com escárnio.

Roger se afastou da garota, que estremeceu e no mesmo instante voltou ao “normal”. Ele não acreditara no que acabara de presenciar, e agora sentia um pavor que ia crescendo lentamente em seu peito.

— Impossível. Vampiros não deveriam existir.

— Mas nós somos bonzinhos — disse Oscar, também exibido suas presas. — Se você conhecesse as bruxas, daí sim ficaria assutado. A Rebeca é uma delas, mas ela não tem poderes.

— Suzana, Oscar, eu peço que nos deixem a sós.

Eles concordaram e deixaram Bernard e Roger sozinhos no sotão.

Ele se sentou numa poltrona e empurrou um banquinho para que o rapaz se sentasse. Ali ascendeu um charuto que retirou do bolso de seu paletó, e depois de duas tragadas encarou Roger.

— Sabe Roger, não somos uma família toda de vampiros — começou Bernard. — Isso se deve ao simples fato de que vampiros não podem ter filhos.

— Não?

— Acho que não conhece muitas histórias da vampiros não é? Nossos corpos estão mortos, e pelo que eu saiba, mortos não podem gerar vida. Meus filhos nasceram quando eu ainda era humano.

— Vocês já foram humanos? — indagou Roger.

— Que parte do “não podemos ter filhos” você não entendeu?

Roger ficou constrangido, mas logo Bernard riu.

— Relaxe garoto... Éramos sim humanos, uma grande família voltada para o comércio. Na metade do século XIX, eu viajei com meu filhos e minha esposa até a casa dos meus tios nos subúrbios de Paris, onde ocorreria a festa de aniversário de um primo. Lembro que era uma Sexta-feira 13, quando a casa foi atacada por um grupo de vampiros nômades.

“Eram seis vampiros, e até conseguimos acabar com dois deles, cravando estacas em seus corações, mas os que sobraram aterrorizaram nossa família. Mataram a maioria, inclusive minha esposa... — Roger não sentiu nem um pouco de comoção nesse trecho da história. O vampiro continuava com uma expressão austera, como se fosse uma rocha imune a todas as marés do mundo.

— Pois bem — continuou Bernard. — Os vampiros mataram ao total vinte e três familiares meus que estavam na festa, mas acabaram poupando cinco de nós. Eu, meus dois filhos e meus tios. Na época eu não entendia porque, mas com o tempo descobri que para vampiros como aqueles, transformar algúem em um igual é um prazer inigualável; presenteiam suas vítimas com a imortalidade, mas em troca lhe tiram o que elas mais amam...

— E aquela mulher estranha, a Rebeca? Se não ouvi errado, seu filho disse que ela é uma bruxa?

— Ah, sim, é verdade.

— Mas ela disse que iria chamar seus "irmãos"!

— É uma historia meio longa... — disse Bernard com um sorriso no rosto, como se achasse graça de suas lembranças a respeito disso. — Bem, simplificando: Rebeca é uma bruxa que perdeu seus poderes há muito tempo e veio morar aqui na tentativa de ter uma vida pacata. Então certo dia ela cometeu o erro de nos convidar pra entrar... Estamos até hoje aqui, mas ela já se acostumou com nossa presença e todos nós nos tratamos como irmãos

— E como sua família veio parar aqui? — indagou Roger, agora mostrando-se curioso.

Um brilho diferente surgiu nos olhos do vampiro. Uma lembrança realmente satisfatória e prazerosa parecia ter surgido.

— Viemos atrás dos andarilhos para matá-los, mas isso não foi possível por dois motivos; eles haviam sido mortos, e também porque passamos a entender o extinto de criaturas como aquelas — nesse momento Bernard exibiu as suas presas. — A sede por sangue ultrapassa qualquer conceito que pudéssemos ter antes, quando éramos mortais.

— Você está querendo dizer que mataram pessoas para beberem de seu sangue?

— Sim e isso continua até hoje. Já ouviu falar da história de que meus tios foram presos por enterrarem corpos no quintal? Pois bem, era nossa refeição.

— O que? — Roger se levantou, temeroso.

— Sente-se, não vou te morder — disse o vampiro num tom sarcático.

— Pensei que tivesse dito que a sede supera todos os preceitos...

— Sim, sim — Bernard voltou a sua forma comum. — Mas escolhemos os sangue que queremos beber. Bem, pelo menos isso ocorre quando não estamos em apuros... numa situação caótica, até os mortais costumam ter atitudes extremas, concorda?

Roger voltou a se sentar, no entanto, ainda permanecia desconfiado.

— Concordo — disse o rapaz. — Mas você disse que os vampiros escolhem? Como assim?

Bernard parou por um instante. Parecia estar verificando as profundezas de sua memória, buscando uma explicação que cabesse na mente limitada daquele mortal. Depois de algum tempo falou:

— Pode ser um pouco complicado para você entender, mas vou tentar exemplificar ao máximo.

— Sim, está bem — Roger achava que agora o vampiro estava subestimando sua inteligência.

— Vamos lá. Para você, sangue é sangue não é?

— É...

— Para nós sangue é como vinho.

— Vinho? — disse Roger. —Vai me dizer que você degusta o sangue?

— Sim, qual o espanto? Da mesma forma que um especialista em vinho sabe reconhecer as variedades de vinhos, vampiros também sabem reconhecer o tipo de sangue que mais lhes agrada. O ato de um vampiro moder um pescoço e sugar o sangue não é tão banal como se imagina; há todo um ritual por trás desse ato singelo.

“Quando um vampiro vê uma pessoa, pode sentir seu cheiro, pode perceber seus medos e angústias, consegue ter noção de traços de sua personalidade.”

Bernard o encarou por um instante, e Roger teve a incômoda sensação de que ele estava decifrando seus maiores segredos.

— Quando um vampiro escolhe a sua vítima, ele a conquista de diversas formas, e só então cumpre o ritual de beber de seu sangue. Ora, até meus filhos o fazem, claro que com suas restrições; um garotinho jamais tentaria seduzir uma mulher ou um homem de forma sexual. Aliás, quando falo em conquistar a vítima, não me refiro somente a relações íntimas de amor ou paixão...

Bernard então se levantou e abriu um baú, onde começou a fuçar em meio a inúmeros jornais velhos. Finalmente encontrou o qual procurava e o jogou no colo de Roger. O rapaz leu a manchete do jornal que datava de cinquenta anos atrás:

“Homicídio assustador – primeira dama é encontrada morta, com duas perfurações no pescoço. Polícia não encontra pistas do assassino.”

— Foi você? — indagou Roger.

— Não, foi o pequeno Oscar — respondeu Bernard.

Roger ficou perplexo.

— Na época a primeira dama encontrou Oscar em uma praça da cidade, logo que o crepúsculo passara. Ela se encantou com a inteligência e os modos dele, e Oscar a conquistou. Assim ele a mordeu. Pode parecer estranho para você, mas essa conquista é tão necessária, quanto comer com talheres é para você.

— Não acredito que obrigou seu filho a isso!

— Ora, não obriguei — disse Bernard calmamente. — Ele simplesmente teve sede. Deve lembrar-se que Oscar apenas aparenta ser um garotinho, mas tem uma mentalidade extremamente madura. Afinal, sua personalidade é lápidada há exatos cento e trinta e dois anos. Não subestime aqueles olhos de aparência inocente.

Naquele momento Roger sentia medo, mas a repulsa era maior. Não conseguia compreender ainda, como matar uma pessoa para beber de seu sangue poderia ser algo “normal”. Tentou sair dali correndo, mas Bernard bloqueou a porta.

— Me deixe ir embora — disse Roger, tremendo com a voz ao final da frase. Estava com medo de permanecer naquele ninho de cobras em que se enfiara.

— Nossa conversa ainda não terminou — disse Bernard.

Então o vampiro começou a se contorcer, e uma aura cinzenta o envolveu. Seus músculos se contraíram e ele começou a mudar; seu corpo e seu rosto se deformaram, tornando-se formas grotescas e repugnantes. Depois de vários gritos horrendos a transformação pareceu estar acabada, e o que Roger viu foi uma criatura mais alta que ele, que se assemelhava a um grande morcego, mas com um aspecto mais voraz e agudo.

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 24/10/2009
Código do texto: T1885038
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