A Primeira Explosão

Após a morte de Ling Ly, Gabriel Youth voltou a velhos hábitos. Deixou o prédio de três andares na Rua do Templo, quase esquina com a Jordan Road, em Kowloon, voltou a freqüentar as casas de ópio, onde anteriormente parasitava os usuários da droga. Foi refugiar-se na Nathan Road, próximo ao templo Tin Hau, voltou a esconder-se dos chineses e ingleses, deixou de ir aos parques e praticar o Tai Shi, não mais se misturava à população local.

Passou o resto do outono, um rigoroso inverno o sucedeu, veio a primavera, e já estava no fim, os dias estavam ficando mais quentes, o calor do verão estava começando a dar o ar de sua graça. Passaram-se, então, seis meses desde a morte da filha adotiva, eram então meados do mês de junho de 1933. Gabriel pareceu regredir, voltar ao tempo em que fora deixado pela noiva, após a guerra. Mas aquela dor não o incomodava mais... tanto! A dor da perda de Ling Ly, morta de um modo tão cruel, tão covarde e atroz, já era muito maior. O circuito que fazia pelas casas de ópio e majong da periferia era apenas uma fuga, uma tentativa de livrar-se da dor, do ódio que ainda sentia por aqueles canalhas que a violentaram na sua frente. Mas não importava quanto tempo passasse parasitando, ele alimentava-se da energia do vício no ópio, mas a droga em si não tinha mais nenhum efeito, não o alienava da dor, nem do mundo degradado a seu redor.

Nos anos que se sucederam a seu vampirismo, Gabriel ainda conseguia alienar-se e ficar insensível às pessoas, à pobreza e falta de perspectiva a seu redor, mas agora, depois de ter conhecido Ling Ly, e depois da morte prematura da menina, ele não conseguia mais ficar insensível. Ao mesmo tempo em que sentia-se como se tivesse morrido pela segunda vez, parecia-lhe que estava mais ligado ao que vivenciava, e via, do que antes. Durante os seis meses que se passaram, não houve um dia em que não remoesse o ódio, a frustração, a tristeza... costumava dizer a Ling Ly que ela era o raio de sol que brilhava em sua vida. Lembrava-se que ela enlaçava seu pescoço bem forte e com um doce riso infantil dizia: “E você é meu anjo guardião, é o melhor pai que existe em todo mundo!”

Sentiu culpa, pensou em mil maneiras de impedir a tragédia, pensou que talvez devesse ter proibido a filha de ver o canalha, ou levá-la para longe dele, talvez para Londres...não adiantava nada agora, Gabriel irritava-se por ter aparentemente encontrado as soluções somente depois de tudo ter acontecido, mesmo aquela estranha força, aquele queimar como chamas atrás dos olhos e nas mãos e pés, não lhe foi útil! Mesmo o seu instinto para o perigo, que o avisara sobre Dave McCulling muito tempo antes de ficar frente a frente com o verme lhe foi inútil, pois não o preparou para aquele ataque de surpresa, provavelmente desferido por Joe McCulling. Por vezes achava que estava odiando a si mesmo, mais que àqueles sanguessugas covardes.

Enquanto relembrava os seis anos felizes, em que tivera uma filha, a quem amou e por quem sentiu-se responsável, e todos os acontecimentos de seis meses atrás, Gabriel não percebeu que estava andando pela Rua do Templo. Como se estivesse dentro de um sonho, parou em frente ao pequeno prédio onde morara até o ano anterior, e ficou olhando para a janela do antigo apartamento. Vindo da direção de Jordan Road, um homem de túnica e calça pretas vinha a seu encontro. Já estava começando a escurecer, mas Gabriel reconheceu a figura magra e um pouco encurvada de Ching Hong.

“Perdeu alguma coisa ali?” perguntou o ancião inquisidoramente, o olhar negro e opaco parecendo atravessar os olhos de Gabriel, parecendo perscrutar sua mente. Ele sentiu-se indignado com o tom com que o velho chinês se dirigia a ele, e retrucou: “Está ficando senil, velho parasita? Esqueceu o que aconteceu?...” Os olhos de Ching Hong tiveram um fugaz brilho que pareceu-lhe ironizá-lo. “Bom!” disse, com certa satisfação. “VOCÊ ainda não se esqueceu!”, e acrescentou, num tom reprovador: “Está atrasado! Eu falei um mês, e não seis...”

Gabriel sentiu o formigamento atrás dos olhos começar, era um sinal de que aquela força estranha estava começando a tomar conta dele, era a fúria, que lhe dava imenso poder e tirava todo controle de si mesmo. O velho chinês sorriu com ar de ironia. “Você chega sempre atrasado, Gabriel Youth! Se não fosse tão lerdo, a menina ainda estaria viva!” disse com rispidez. O formigamento aumentou atrás dos olhos e começou a alastrar-se, sentia como milhares de agulhas quentes espetassem as palmas das mãos. “Está senil mesmo” retrucou, “Não tem noção do que está dizendo!” Ouviu a risada do ancião ecoar pela rua. “Eu sei exatamente o que estou dizendo, Gabriel Youth... você sabe que estou certo! Se fosse um pouco mais inteligente, não teria nem deixado aqueles sanguessugas chegarem perto da garota!”

As palavras de Ching Hong soavam-lhe aos ouvidos excessivamente duras e cruéis, Gabriel sentiu a onda de fúria ultrapassar o limite, seus olhos pareciam estar em chamas, o formigamento nas mãos e pés agora tinha alcançado o ápice, ouviu a si mesmo grunhir como um animal ferido, não via nada mais, via apenas o velho chinês a sua frente, sorrindo ironicamente para ele. Ouviu algo como um estalo, como se algo estourasse dentro de sua cabeça.

Gabriel não sentiu o vento soprar, prenunciando uma tempestade, não percebeu o céu escurecer, sendo encoberto por nuvens enegrecidas, tampouco os raios verde-azulados que começavam a riscar o firmamento. Partiu para cima de Ching Hong com tremenda velocidade, e no entanto, antes de desferir o primeiro soco contra o velho chinês, ouviu um estrondo, talvez um trovão. O soco não acertou o rosto do ancião, cujos olhos negros e opacos, quase como os seus, pareciam emitir faíscas elétricas, como pequenos raios vermelhos. Ching Hong sorria, e Gabriel não entendia como, mas via que o ancião tinha desviado seu soco. A surpresa dele durou milésimos de segundo, desferiu um cruzado de esquerda, que também foi desviado, agora via, Ching Hong repelira seu golpe com a mão direita espalmada. A raiva somava-se agora a uma onda de frustração, desferia socos e pontapés quase a esmo, sempre desviados pela mão espalmada de Ching Hong, que moveu-se numa velocidade impressionante, repelindo Gabriel com a mão direita espalmada em seu peito, depois golpeando-o com o punho esquerdo fechado, um soco com o impacto de um tiro de rifle para caçar elefantes, jogando-o longe, como se não pesasse nada. Caiu pesadamente no calçamento da rua, há uns cem metros de distância do edifício onde morava. O formigamento arrefeceu e a onda de fúria diminuiu, deixando em seu lugar só a frustração. Quando levantou-se, com certa dificuldade, Ching Hong já estava a seu lado, o estranho faiscar dos olhos diminuindo e a opacidade dos olhos retornando. “Venha” disse simplesmente, num tom vagamente autoritário, indo de volta na direção de Jordan Road. Gabriel, sem retrucar, apenas o seguiu, vendo o chinês entrar na sua antiga moradia. Sentiu-se contrafeito, mas não tinha mais energias para questionar o ancião, também entrou no velho prédio, seguiu pelo corredor, subiu um lance de escada e deparou-se com a porta do antigo apartamento, sentindo-se desconfortável o bastante, a ponto de enfim perguntar: “Você está morando na minha antiga casa, Ching Hong?” O ancião sorriu, acenou positivamente com a cabeça. “É uma boa casa”, disse apenas em resposta. Gabriel correu o olhar pela sala, os móveis foram todos mudados, as paredes e o piso foram concertados, a pintura foi modificada, mas ainda sentia a atmosfera do antigo lar, onde criara por pouco mais de seis anos Ling Ly. Ching Hong sentou-se numa cadeira estofada, convidando com um gesto Gabriel a sentar-se na outra cadeira a sua frente. “Sente-se” disse com um toque de humor, “a casa é sua!” O rapaz não sorriu, mas sentou-se na outra cadeira. Os olhos do velho chinês tornaram-se inquietantemente perscrutadores. “Eu entendo você, Gabriel Youth”, começou ele, “melhor do que pode pensar. Eu mesmo passei por perda das pessoas que amei, eu também não conseguia controlar a explosão de fúria, no começo.” Explosão de fúria! O som semelhante a um estouro que Gabriel escutara. Ele percebeu, durante a luta, que Ching Hong também tinha esse... poder, capacidade, Gabriel não conseguia pensar num nome para aquele fenômeno. “Todos temos esse...?” ouviu-se indagar, num murmúrio. Ching Hong meneou a cabeça lenta e negativamente, sorrindo. “Você diz nós vampiros, presumo. Não, na verdade até conhecer você, Gabriel Youth, eu pensava que era o único com esse poder, dom, capacidade, ou como quiser chamar... eu, na verdade, chamo apenas de explosão.”

“Você falou que não conseguia controlar isso, no começo” inquiriu Gabriel, “Quer dizer que também perdia o controle?” Ching Hong sorriu. “Da mesma forma, quando perdi minha esposa e filhos. Foi quando ocorreu a primeira explosão. Por isso”, completou ele, num tom de ressalva, “falei que entendo você melhor do que imagina!” Gabriel pensou como teria sido a perda de Ching Hong, teria sua família sido atacada por vampiros, como aconteceu com ele? O próprio ancião respondeu a pergunta que não foi verbalizada. “Minha família”, começou, “me tinha como morto, há dez anos. Mas eu permaneci ao lado deles. Minha esposa, Fei Na Mey; meus filhos Ching Fong e Ching Mary, só se tornaram mais importantes que o ópio pra mim, depois que me tornei parasita. Mas eles nem sabiam que eu estava ali. Às vezes parece que minha filha sentia minha presença, mas não me viam, nem me escutavam, na maioria das vezes. Mesmo assim eu estive presente... até o dia em que um bando de notívagos invadiram minha casa e se banquetearam, com minha esposa e duas crianças, de dez e catorze anos. Eu cheguei a tempo de pegá-los ainda, mas atrasado demais para salvar qualquer um dos meus familiares. Explodi e os matei a todos.” Notou o olhar de Gabriel e se apressou: “Eu cheguei tarde demais. Não me senti melhor depois disso. E eu consegui matá-los porque eles eram mais fracos que eu. Os irmãos McCulling... eles são mais fortes que você agora. E são vampiros mais antigos também. Você, com a explosão, se tornou tão forte quanto os quatro juntos, mas não controla essa força extra. Posso ensiná-lo a controlar a explosão, se quiser, Gabriel Youth. Você pode se tornar o mais forte vampiro, e pode usar essa capacidade para o fim que imaginar. Mas você deve decidir. Não vou ajudá-lo a obter uma vingança inútil.”

Os olhos de Gabriel brilharam fugazmente, de modo penetrante, por uns minutos. Os dois pareciam procurar ler a mente um do outro. O rapaz acenou afirmativamente, arrefecendo o olhar, com um sorriso meio amargo. “Eu achava que estava morto, até conhecer Ling Ly.” começou. “Agora sinto que morri novamente, com ela. Mas uma parte de mim, estranhamente, quer dar um sentido a essa maldição que me tornou um parasita.” Ching Hong sorriu e concordou com a cabeça. “Sim. Então eu o ensinarei, Gabriel Youth, a controlar sua força, e também a explosão.”

O sol levantava-se no horizonte, a maré começava a baixar na praia de Canasvieiras. A manhã de outubro estava fria, após uma noite chuvosa. Enquanto praticava o tai shi, Gabriel lembrava os acontecimentos de 76 anos atrás. As notícias da tevê foram o que desencadeou aquele retorno no tempo. Gabriel estava preocupado. Por anos procurou os irmãos McCulling, e mesmo tanto tempo depois, sentiu de repente que talvez não estivesse ainda preparado para enfrentá-los. Tempos depois descobriu que Ling Ly não fora a única vítima dos McCulling em Hong Kong, soube de muitas outras pelo mundo afora. O padrão estava se repetindo, ali, em Florianópolis. A parte de si que queria dar um sentido a sua meia-vida o fazia lembrar da promessa que fizera à filha, em frente ao seu túmulo, um dia antes de partir da cidade chinesa. “Vou honrar sua memória, raio de sol” disse, na fria tarde de fevereiro de 1935. “Não vou permitir que nenhuma criança sofra o que você sofreu. Eu prometo.”

Essa promessa parecia estar esquecida há tanto tempo. Ele ficou nos últimos cinqüenta anos estagnado, andando sem paradeiro. A luz do sol que subia lentamente bateu em seu rosto, seus olhos ofuscaram-se. Um vulto familiar pareceu materializar-se diante do sol, os cabelos esvoaçando com a brisa da manhã. Ouviu a voz de Ling Ly então, como se as ondas do mar lhe dissessem: “Este é o momento de cumprir com sua promessa, pai.” Uma lufada de vento tocou seu rosto, era como se a suave mão da criança o tocasse. Gabriel suspirou e sorriu. “Eu entendi” disse.

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 22/10/2009
Código do texto: T1881559
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