O Anjo de Ling Ly

As noites em Kowloon eram bastante animadas, podia-se assim dizer. Casas de ópio não eram ilegais em meados da década de 1920, e eram bem freqüentadas tanto por orientais quanto por ocidentais. As casas de jogos e os cabarés e as ruas do bairro, na cidade de Hong Kong, então território britânico, no litoral chinês, andavam mais apinhadas de gente, de todo tipo, mais do que durante o dia. Facções da Tríade por vezes lutavam por pontos de prostituição, ou de venda e consumo de ópio na região.

Gabriel Youth já vivia em Hong Kong há seis anos, havia chegado a Kowloon em 1919, mas era como se não estivesse ali, ele não se envolvia, permanecia invisível, depois de tanto tempo, ninguém o conhecia, não tinha amigos ali. Somente observava, de vez em quando, uma figura estranha, que também freqüentava as casas de ópio onde ele ia para alimentar-se do vício dos usuários da droga, alienados, deitados em esteiras, não notavam as ostes de vampiros à sua volta, nem que estes fizessem nenhum esforço para ficar invisíveis. Gabriel mesmo não se preocupava em parecer invisível nas casas de ópio, depois de ter se acostumado a parasitar as criaturas que miseravelmente se chapavam nessas casas, ficando tão distantes do mundo a seu redor quanto ele mesmo.

Numa madrugada de verão de 1926 Gabriel estava tão despreocupado ao sair de uma casa de ópio, que não teve tempo de desviar duma sombra pequena que esbarrou com tanta força nele, que acabou caindo estatelado em plena avenida. Levantou-se com uma velocidade que parecia ter flutuado no ar, então seus olhos pousaram em quem o havia derrubado. Seus olhos negros e opacos recaíram sobre a figura magra de uma menina de seus 8 ou 9 anos, paralisada, com ar embasbacado ao cruzar seus pequenos olhos ligeiramente puxados com seu olhar negro e penetrante como uma noite sem luar. Ouviu atrás de si alguém gritar irritado em cantonês, Gabriel não entendia muito bem a língua, ainda, mas sabia que os três homens que corriam agora em sua direção, com porretes e adagas, estavam atrás da menina. Gabriel olhou na direção onde ela estava, estaqueada, e a menina não estava mais lá, tinha desaparecido, percebeu que havia se recuperado bem rápido do choque de tê-lo visto, já estava bem a frente, correndo desesperada. Fosse o que fosse que a menina tivesse feito para aqueles homens, não parecia haver razão suficiente para se correr atrás de uma criança com paus e facas. Gabriel, então, resolveu tomar uma atitude, pela primeira vez, desde que chegara em Hong Kong. Manteve-se parado enquanto os homens vinham correndo, e quando estavam perto o bastante, esticou o braço esquerdo, acertando o pescoço de um dos homens, fazendo-o cair pesadamente a seus pés, batendo a cabeça no calçamento da rua, ficando assim desacordado. O segundo homem recebeu um soco na boca do estômago, sendo jogado duzentos metros para trás, caindo também desacordado ao solo. O terceiro aproximou-se com certa velocidade, levantando o porrete sobre a própria cabeça, e quando estava prestes a desferir um golpe, seus olhos cruzaram-se com os de Gabriel. O porrete escorregou de sua mão e caiu sobre sua própria cabeça, o homem caiu sentado nos paralelepípedos do calçamento. Levantou os olhos, que novamente se encontraram com os penetrantes olhos completamente negros de Gabriel. O homem arregalou os olhos puxados de tal forma que quase ficaram semelhantes aos olhos dos ocidentais. Gabriel sorriu sarcástico e disse apenas: “Bu!” Foi o suficiente para o rapaz sair correndo desesperadamente na direção da escuridão da rua por onde viera, esquecido de seus parceiros e da menina a quem perseguia.

Duas semanas depois, Ling Ly não viu mais o moço ocidental de olhar estranho em quem esbarrou. Também ficou fora das ruas por uma semana, voltou a abrigar-se no orfanato das freiras, do outro lado da cidade. No entanto, não se dava bem com a disciplina das irmãs, e logo voltou às ruas. Evitou voltar, no entanto, a Kowloon, mais por medo dos capangas do senhor Wong do que por receio de encontrar novamente a quase fantasmagórica figura do ocidental de olhos escuros como breu. Aqueles olhos estranhos pareceram mexer de alguma forma com ela, pareciam ter penetrado sua alma e lido cada pensamento seu, embora ele parecesse ter ficado tão ou mais surpreso que ela. Parecia realmente surpreso por ela tê-lo visto, até por ter esbarrado nele! Tudo aquilo aconteceu porque ela batia carteiras, geralmente de bêbados e fumantes de ópio, mas deu o azar de roubar um relógio de ouro que pertencia ao senhor Wong, um perigoso cafetão com ligações com a Tríade. Por isso não poderia mais voltar a Kowloon. Mas não foi por isso que tinha decidido parar de roubar. O olhar do estranho é que parecia lhe ter tirado tal capacidade. Ling Ly agora só continuava andando sozinha pelas ruas, às vezes pedindo alguma esmola. Naquela tarde de quarta-feira já estava anoitecendo, e ela já estava tomando o rumo do orfanato das freiras, quando deu de cara com um dois dos três capangas de Wong, que haviam lhe perseguido há duas semanas. Desta vez não teve tempo de correr, foi logo agarrada por um deles que lhe torceu os dois braços. Ling Ly ouviu os ossos estalarem mais do que a voz do outro, perguntando o que havia feito do relógio. A dor era lancinante, e ela começou a chorar, com medo que o capanga mais forte lhe tivesse quebrado um dos braços. O homem torceu com mais força seu braço, e ela deu um grito agudo, mas ninguém parecia lhe ouvir. O outro disse que era melhor ela entregar o relógio, se não quisesse que a levassem até senhor Wong, para que ele decidisse a melhor forma de ela pagá-lo pelo prejuízo. Ela deu mais um grito, quando o mais forte lhe apertou novamente o braço. De repente, seu braço não estava mais sendo apertado, e o grito que chegou aos seus ouvidos não era seu, parecia que seu agressor estava caindo longe. Ling Ly desfaleceu, caída no chão, mas antes de perder a consciência, viu o outro homem, mais baixo e de bigodinho fino também ser arremessado como se não fosse mais que um monte de trapos, há metros de distância dali.

Ling Ly acordou com o moço enfaixando seus pulsos, com o que parecia ser uma mistura de ervas medicinais que deixavam-nos um pouco dormentes. Já estava se acostumando com seus olhos muito negros, ou seu olhar parecia mesmo transmitir mais tranqüilidade, ela não sabia dizer. Seus olhos voltaram-se para os dela, não estavam tão penetrantes quanto na noite em que esbarrara nele, os lábios dele abriram um leve sorriso, ele falou em cantonês, ainda com algum sotaque europeu: “Está tudo bem. É só uma luxação.” Ela perguntou em inglês: “O senhor é médico, moço?”

Ele voltou novamente o olhar para seus pulsos, terminando de fechar os curativos. “Não, sou militar... ou fui! Mas aprendi alguma coisa sobre ervas medicinais com uma velha curandeira.” Ele ficou em silêncio por um tempo, depois seu olhar voltou a ficar um pouco mais penetrante. “Você é muito nova pra andar arranjando encrenca com gente da Tríade. Qual seu nome?”

“Ling Ly” respondeu ela, baixando os olhos timidamente. Não teve coragem de retrucar, dizer que não existia isso de estar muito jovem, por ali, ainda mais para uma garota órfã. Ele sorriu e o olhar arrefeceu novamente. “Bonito nome, Ling Ly! A propósito, sou Gabriel Youth.” Ela levantou os olhos e abriu um sorriso. “Puxa vida!” disse ela, num tom divertido, “Nunca acreditei quando irmã Dorothy falava que temos anjos da guarda!” “Eu não sou um anjo” retrucou ele. “Mas seu nome”, disse ela, “lembra o do arcanjo... e para mim, o senhor é como se fosse um anjo da guarda! Salvou minha vida!” Ling Ly viu então os olhos de Gabriel brilharem, e um sorriso incontido de satisfação iluminou seus lábios, e as mãos dele entrelaçaram-se com as dela. “Obrigado” disse ele simplesmente.

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 19/10/2009
Código do texto: T1875524
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