Sem, sono, sem nada
Sem, sono, sem nada
Para fazeres justiça ao órfão e ao oprimido, a fim de que o homem, que é da terra, não prossiga mais em usar da violência
Salmo 10-18.
Começou de novo. Esse zumbido maldito que não dá uma só trégua. Lembro-me das vezes em que estive no regaço de uma noite sem sono, em que os pensamentos iam e viam imunes a qualquer propósito descente. Eis que se inicia tudo mais uma vez, o mesmo zumbido, os mesmos pensamentos sem propósitos, a mesma imunidade desumana, as mesmas idas e vindas sem trégua e sem sono. O telefone toca... Esboço uma tentativa qualquer de atendê-lo, meu corpo não responde, o coração menos ainda. Faço um movimento qualquer, só pra dizer que não estou inerte aos acontecimentos externos. Coisas assim me chateiam deveras. Saio. Saio em busca de algum alento fora do recanto do meu lar. Dá pra imaginar um algo assim?!
Vejo-me apático diante de uma praça. Uma raiva corpulenta toma conta de mim ao ver uma ruiva inepta lançar ao chão um maço vazio de cigarros. Incomodo-me com tamanha agressão. E tomei como se fora meu, o próprio maço amassado e arremessei-o com toda força contra a primeira lata de lixa ao alcance do arremesso. E digo, a mim mesmo, ao pé da fúria: “os porcos não estão a limpar o chiqueiro, estão?! Eis o que me cabe.” Sua face sem rosto, sem olhar, sem nada fora inquisidor e ao mesmo tempo assombroso.
Olhares inquisidores, não mais me causam horror, me perseguem apenas por todos os lugares. Já estou familiarizado com tais manifestações de ojeriza. Acordo.
Meu corpo, ainda imóvel na cama, não ameaça nem a mim mesmo. Quero sair. Uma força sem rosto, sem cheiro, sem nada... Pressiona meu esquelético corpo contra a cama. É como se o mundo inteiro estivesse contra mim a me diminuir. Meu mundo se torna menor e nem por isso melhor. A imagem da ruiva retorna. A chuva cai, o sono sai e eu continuo inerte a movimentos alheios. A ruiva me pede alguma coisa. Heim?! Não ouço. Não quero ouvi-la dizer coisas inúteis sem nexo, sem caráter, sem coisa alguma. Insisto. Heim?! Ela se aproxima. Tremo. “Posso?! “ Ela pergunta. Pode o que, porra?! Apenas penso, não digo não respiro, somente lamento a sua inusitada visita. Claro que pode, respondo. Que saco! Cochicho.
Ficamos os dois ali parados, sem uma só palavra a ser dita para o outro. Percebo com certo horror a sua de rosto. Antes era apenas mais uma falta. Que lindo! Algo diferente pelo menos, acendo um cigarro após o outro estou bastante nervoso com toda essa situação. A ruiva sem rosto se lança e diz: “você me parece familiar.” Curioso isso. É como se todo negro, careca, míope tivessem o mesmo aspecto físico e caricato. Replico: “a sua falta de rosto também me é familiar, eu sempre as vejo em algum lúgubre lugar.” E ela se lança ao chão, despreocupada, inocente e sem culpa, se alça e se queima e em uma crise frenética de risos sem propósito, sem graça, sem nada e com um gosto amargo de ironia. Pois é, a vida nos prega peças de doer em Cristo. E então durmo, pois era noite.