A Mais Pura Forma de Amor - II
A Mais Pura Forma de Amor - II
Havia dormido pouco e mal.
Inicialmente atribuíra a culpa de sua insônia à presença nefasta daquele vampiro em sua toca. Onde já se viu um Garou convidar um vampiro para passar o dia?
E bem, de fato a culpa era daquele vampiro. Todavia, o motivo não era bem aquele... Estava mais para a estranha aura de maldade e degeneração que não vinha daquele ser.
Já tinha enfrentado –e matado- uma boa porção de vampiros, todos muito desagradáveis, cruéis, com o cheiro da Wyrm impregnado neles.
Mas esse era diferente. Tinha uma aura mais pura, e os espíritos incrivelmente não pareciam nada incomodados com a presença dele.
Acima de tudo, ele fora gentil –apesar de muito desagradável com seus comentários inoportunos, era fato.
Era a primeira vez desde seu nascimento que alguém que não compartilhava de sua triste condição demonstrava se preocupar com ele, que cuidavam dele e que não o tratavam como se fosse um ser nojento e inferior. Quem diria que um dos mais típicos representantes da Wyrm se mostraria mais amável do que um dos seus ‘irmãos’, Filhos de Gaia?
Está certo que ele era um impuro, fruto e vítima de uma relação proibida e trágica, quase que incestuosa. Seus pais, ambos Garou, apaixonaram-se e pecaram, e por esse pecado, pagaram com suas vidas, deixando apenas um inocente descendente, defeituoso e indesejado. Maldito e ultrajado, que deveria também pagar pelo crime de seus pais.
E por mais que ele acreditasse no infinito amor e na infinita bondade da Mãe Gaia, era difícil continuar, avançar, sobreviver, quando tudo insistia em dar errado na sua vida. Era frustrante ver seus esforços e vitórias jamais serem reconhecidos, enquanto as menores falhas eram apontadas como grandes motivos para mais humilhação e desconfiança.
E a grandes falhas... Ah... Era um milagre não terem lhe matado pelo que fizera...
E apenas por ainda respirar que ele podia acredita que a Mãe Gaia era de fato muito, muito generosa...
Mas por vezes não se perguntava se sua sobrevivência seria mais um castigo do que uma dádiva.
Um velho sábio que o adotara em sua tribo, antes de sua desgraça, uma vez lhe dissera que ele não devia nunca perder a fé na Mãe... Que Ela amava a todos sem distinção, e ajudava a todos os filhos que precisassem...
Prepotente, como todo bom filhote costumava ser, ele respondeu ao velho que não acreditava, pois se a Mãe o amava tanto, por que havia lhe reservado tão terrível sorte? Porque que ele tinha que pagar pelos erros de seus pais? Porque ele havia vindo ao mundo incompleto? Por que sua vida havia de ser tão injusta?
O velho apenas sorriu-lhe de maneira emblemática, e respondeu-lhe calmamente:
“A Mãe tem seus caminhos misteriosos, meu pequeno, e não cabe a nós ficar julgando as decisões Dela como justas ou injustas.”
Ele se calou, fingindo aceitar e compreender. Jamais ousaria discordar de seu mestre, afinal... Mas era fato que, mesmo acreditando no amor da Mãe, mesmo sabendo que suas provações serviam para lhe deixar mais forte, não deixava de pensar que a injustiça era a maior marca de sua vida.
Lembrara-se das palavras do velho quando estava preso naquela armadilha. E quando teve a certeza de que a morte lhe ceifaria a alma, ele apelou para a fé que havia abandonado após o dia de sua desgraça. Implorou à Mãe para que o perdoasse, e para que o ajudasse. Pediu que ela lhe mandasse mãos, para tirar a prata do seu corpo, e olhos, para que o ajudassem em seu escuro caminho de volta à retidão.
E quão grande foi seu espanto quando ele sentiu a presença de um vampiro, sendo este superado quando viu que aquele morto-vivo tinha intenção de lhe ajudar.
Seriam aquelas as mãos e aqueles os olhos que Gaia lhe mandara de presente?
Francamente, estava mais para praga. Se ele já era mal visto quando andava só entre seus semelhantes, que dirá se fosse pego andando com um vampiro... Traição clara à Wyld, morte certa.
“Oh Irmã Lua, iluminai meu retorno, pois o caminho que eu percorro é tão obscuro...” –Sussurrou na já quase morta e esquecida língua Garou a parte de um antigo cântico.
-Hã? –O vampiro perguntou sonolento, espreguiçando-se um pouco.
-Nada.
-A perna ta melhor?
-Sim. –Respondeu indiferente. Estava doendo horrores, é claro, mas ele jamais admitiria isso. Precisava ser forte, sempre forte.
-Já anoiteceu, né? Tenho que procurar comida... E ir para Las Vegas... –Riu um pouco, sentindo-se fraco pela falta de sangue. -Mas obrigado pela hospitalidade, viu camarada? –Foi bom te conhecer. –Disse sorrindo. Estava feliz por ter acordado. Jurava que o lobo iria lhe matar de vez durante o sono, mas ele acordara inteiro, sem um arranhão sequer.
E seu sorriso ainda de alargou quando o hominídeo ergueu sua mão, mostrando o belo coelho branco que ele tinha capturado.
-Cara... Não brinca com meus sentimentos! Vai dizer que isso é pra mim? –Perguntou muito animado.
O hominídeo apenas fez que sim com a cabeça, e estendeu o pequeno animal trêmulo para o vampiro faminto, o qual o pegou cuidadosamente e pôs-se a acariciar o pêlo macio.
-Ah, droga... Tinha que ser logo um coelho? –Resmungou.
-Paladar refinado? –Zombou o lobisomem.
-É que eu tinha um igualzinho quando era criança... –Comentou nostálgico, olhando com pena para o animal. –O nome dele era Flik...
-Se não quer, solte-o.
-Tá louco? Tô morrendo aqui de fome! É Flik, infelizmente não tem jeito... –Comentou, fazendo um ultimo carinho no bicho, depois levando-o à boca com relutância.
Detestava ter de fazer isso, tanto com animais quanto com humanos, mas era uma questão de sobrevivência.
O bicho fez um barulho esganiçado e agudo, e um pouco de sangue escorreu pela pelagem branca. E não demorou até o pequeno animal ficar seco.
Era pouco e insípido quando comparado ao sangue de um humano, mas definitivamente era melhor do que nada. Limpou os lábios com a costa da mão e depositou com cuidado o corpo do animal no chão.
-Valeu mesmo, cara... Como você conseguiu pegar ele? Acho que a sua perna ainda está lascada demais para sair por aí correndo atrás de coelhos.
-Ele que veio até mim.
-Coitadinho... Não sabia o que o esperava... Pobre Flik...
O lobisomem achou o mínimo estranho e inusitado ver um vampiro com pena de matar um coelhinho. Aquele morto-vivo era mesmo muito, muito estranho. Provavelmente por isso que ele não emanava a Wyrm. Não parecia ter sido tocado pela corrupção.
-Você deve estar com fome também... –O vampiro comentou, interrompendo os pensamentos do outro. –Sei lá, você come coelho?
-Eu geralmente evito matar animais... Mas como o Flik já está morto, acho que não teria problema comê-lo assado...
-Eu posso te ajudar a preparar, mas não conte comigo para fazer o fogo, viu?
O lobisomem deu um leve sorriso, e em seguida assumiu a aquela forma que ele chamava de Hispo, algo quase lupino, mas não totalmente, e sobre as três patas, prosseguiu em seu andar manco em direção à saída da toca, sendo seguido pelo vampiro.
-Cara, a lua está linda hoje... –O vampiro disse tão logo saiu, olhando maravilhado para belo risco prateado que se exibia no céu.
-É... Está linda mesmo... –O lobisomem concordou, já voltando a sua forma hominídea, sem todavia olhar para o céu uma vez sequer. Sentou-se com cuidado no chão e começou a passar sua mão pela terra, compenetrado.
O vampiro achou aquilo no mínimo estranho, e não mais contendo a curiosidade, perguntou:
-Por que você nunca olha para mim?
-Meus olhos são cegos. –Respondeu calmamente.
-Sério?! –Quis confirmar, aflito. Arrependera-se no mesmo instante por ter zombado dele por ter caído naquela armadilha. O cara era cego e conseguia sobreviver sozinho na floresta?! Definitivamente era um grande feito! –Digo, eu jamais que ia supor isso... Você se vira tão bem, anda sem se bater... Funciona como bússola, quer dizer, sabe em que direção ir... Essas coisas... –Comentou sem graça, fazendo uma nota mental: “Pensar antes de falar.”
-Eu tenho meus outros sentidos para me guiar... Além disso, consigo ver coisas que poucos conseguem ver.
-Como assim?
-Olhe para a lua. Você comentou que a lua está bonita, e de fato ela está. É uma lua crescente. Você sabe disso porque vê a luz e o formato dela, eu sei porque a sinto, especialmente porque é a lua sob a qual eu nasci. Ao nosso redor você apenas sente o vento, enquanto eu vejo os inúmeros espíritos que nos cercam, e vejo a sua aura, assim como vejo a aura de cada ser vivo, de cada parte de Gaia. Nós estamos envoltos em uma infinita gama de luzes, todas brilhantes e muito fortes, mas com seus olhos perfeitos você não as vê. –Respondeu calmo, com uma sabedoria de dar inveja, fazendo jus à lua que regia seu augúrio.
Era um Theurge, um vidente, um sábio, um xamã.
E ainda assim, um Impuro.
Depois daquela resposta, o vampiro não sabia nem o que falar, ficando um tempo em silêncio, apenas observando a lua.
-Sabe de uma coisa curiosa? –Quebrou o silêncio. –Eu ainda não sei seu nome...
-Águia. –Respondeu, sem querer entrar em muitos detalhes. Antigamente diria também sua tribo e sua matilha, mas ele agora não tinha mais tribo ou matilha, restando-lhe apenas seu nome.
-Águia... Tem haver com a sua visão? –Perguntou, achando aquele nome no mínimo sarcástico.
-Meu antigo mestre tinha um senso de humor doentio... E o seu nome?
-Carlo.
-Descendente latino?
-Não tenho aura de latino? –Riu um pouco. –Minha mãe era mexicana.
-Hum...
Silêncio. Nenhuns dos dois estavam acostumados a manter conversas amigáveis... O vampiro juntou um pouco de madeira seca e a colocou perto do lobisomem.
-Infelizmente eu não fumo, então não tenho isqueiro.
Águia apenas passou sua mão sobre a madeira, e ela instantaneamente pegou fogo.
-Cara, que legal isso!
O Garou mais uma vez soltou um discreto sorriso.
-Você fica sempre sozinho por aqui? –O vampiro perguntou, observando o outro tirar uma faca saber-se de onde e começar a tratar com habilidade do coelho morto, tirando-lhe a pele.
-Os espíritos estão sempre comigo.
-Tá, mas eu me referia à ‘gente’... Ou lobos, sei lá...
-Não, eu fui expulso da minha matilha.
-Por quê? –Perguntou muito interessado.
-Prefiro não falar a respeito.
-Entendo...
Mais silêncio.
-Você parece bem solitário também. –O Garou comentou, já começando a assar o que sobrara de ‘Flik’.´-Por que não está com seus ‘irmãos’ cadáveres, na cidade? –Perguntou sem conseguir evitar alguma rispidez em sua voz. Tinha um nojo genuíno de vampiros, muito embora estivesse se sentindo à vontade perto de Carlo.
-Digamos que eu seja um filho bastardo, e por isso meus ‘irmãos’ querem me matar.
-Acha que em Las Vegas vai ser diferente?
-Eu não estava pensando seriamente em ir para Las Vegas... Qualquer cidadezinha na qual me deixem em paz tá bom... Mas quem sabe eu não consigo ganhar a vida lá, né? E chove pouco lá também... Não gosto muito de chuva.
-Las Vegas é uma cidade seca, suja e degenerada. Você seria engolido pela corrupção lá. –Disse sério, sua voz soava um pouco triste.
-Não pode ser pior do que Atlanta.
-Sempre pode piorar. E quanto mais desenvolvida a cidade, mais perigosa e próxima da destruição ela se encontra.
-Por isso que você resolveu morar aqui, no meio do mato?
-Não foi bem uma escolha... Foi o jeito...
-Entendo... –Mentiu. Não estava entendo nada, mas achou que aquilo poderia confortar Águia. –Hei, enquanto o Flik tá torrando aí, você não quer ir no rio lavar o ferimento?
O lobisomem mais uma vez sorriu discretamente. Tocou a terra e levantou seu rosto na direção da Lua, deixando que os raios prateados adentrassem seus olhos mortos.
“O que estás reservado para mim, Mãe?” –Ele perguntou na língua Garou antes de se deixar ser ajudado pelo vampiro a andar até o rio.
Ser amparado por ele repentinamente havia deixado de lhe parecer tão grande desonra.