Em tempos antigos, Abílio Camões traçou, com craiões vistosíssimos, a rapaziada que se quedava pelo adro da igreja, esperando o fim da homilia para entrar no templo.
Sem dúvida que uma coisa é lê-lo, outra coisa era ouvi-los!
“Mancebos peraltas de cabelo talhado à janota, e de cachaços negros do sol estonados à navalha, com um cigarro aceso no canto da boca e outro de reforço atrás da orelha, patacões por natureza, mas fingindo estroinas, apertavam a passagem do adro dirigindo chalaças relambórias às moças que entravam.”
“Cinco rapazolas já espigados, de comunhão, sem brio de qualidade nenhuma, mostravam a pouca vergonha na cara de se ocuparem, quase umas crianças, a discutir a achada de um ninho de melro e a alta vantagem de se chamar sapinhos aos passarinhos em leitão para que os não fossem chuchar as formigas lambisqueiras.”
Um caçador de paixão, “capaz de secar uma figueira em pegando de conversa sobre assuntos da sua arte”, referia cenas de uma lebre maçarica que tinha a cama na bouça do Gago, à encosta da Reguenga, e que havia dado lições mestras à sua Andorinha, a rainha das galgas, matreira a pregar focinhadas nas ancas da lebre.
E repetia os berros dados do alto dum merouço, em voz de trovão: «Oh! galga, oh! Andorinha!... Oh! filha!... Ela é tua!… Pega!...... tem mão!...»
Escapou de se explicar como se escapulira a lebre.
A homilia terminou.
“Da cocuruta do pinheiro grande, na bouça próxima, o cuco, já rouco a pedir gemadas, de asas meio abertas, cauda idem, num contínuo rebulir do corpo, qual se tivera bichos carpinteiros, cantava ainda com desespero de danado.”
 
Outro personagem peculiar que, aos domingos e dias santificados, pontificava no terreiro do mosteiro, era o peixeiro Rendilho.
Recém-chegado da Póvoa, prendia pela arreata a mula a um carvalho, e tentava a um tempo desobrigar-se da devoção dominical e “armar um nadinha de negócio.”
Arrancava da carga “uma pescada enorme, ao de leve areada de sal, e, pendurando-a pelos olhos nos dedos, chamava a atenção dos fregueses para a boa pinta que apresentava a fazenda de ser fina de lei: guelras vivas a rever sangue, lista preta a correr-lhe o fio do lombo de cima a baixo, pequenez de cabeça e grossura de cauda.”
“Azedado de não ajeitar o negócio, o vendilhão antes de a tornar a acamar na carga, entalando-lhe a boca na ponta da cauda, põe a pescada em figura de rosca; em seguida dá de força aos braços e assenta-a de estalo pela abertura do ventre no nariz de um taberneiro, que não tivera alma nem bolsa para por ela oferecer mais que um cruzado e cinco.” 
 
Nestes tempos cada cruzado valia 400 reis. Quem se lembra dos tostões, há-de recordar-se de que o valor de duas moedas de vinte (XX) centavos – o preço de um pão comprado directamente na padaria – era normalmente designado por “um cruzado”.
Mas isso era no tempo em que os nossos companheiros teciam encómios ao bom melão do Júlio Trumba na romaria de S. Bartolomeu, ao pão com manteiga da Valonguense, à chocolatada no Aliança e às sardinhas do Domingos do Rego!
 
Este sucesso pitoresco faz-me lembrar o «caso das perícias do Agrinha». Não conhecem o caso das perícias do Agrinha?
 
Na narração das lendas populares de Santo Tirso há sempre dois tempos: “no tempo dos frades” e “depois da extinção das ordens religiosas”, balizando esta efeméride a data de 1834 e todos os acontecimentos que culminaram com a vitória do liberalismo.
 
O Agrinha, que tinha sido moço de sacristia dos monges até 1834, foi mandado chamar à secretaria da matriz pelo abade Pedrosa.
O sacristão reformado, já no adro da igreja fora violentado a blasfemar pela má educação de dois frangalhotes que se metiam com ele, regougando que os levasse o diabo, a ambos, que não ia rico.
– Pouca vergonha! Pouca vergonha! – vociferava o Agrinha. 
 
Ao chegar ao ádito da sacristia, o velho Agrinha deparou com o sr. Abade dando costas ao relicário e solicitou permissão para entrar, aguçada a curiosidade por se encontrarem, no recôndito do cartório, alguns cavalheiros empavesados. 
Sobre a mesa de pau-preto, de patas torneadas, lá estava ela. Não podia ser outra!
Encravou no olho esquerdo um vidro graduado, aproximou o nariz da mesa e, antes de ser chamado a manifestar-se, o próprio velho sacristão indicou com segurança:
– Olha que linda! A minha custódia de prata!
– Boa tarde Agrinha. Como vais? – retorquiu seriamente o abade que o precedera no acesso à secretaria.
– Benza-me vossa reverência – curvou-se solícito o antigo aprendiz de mansionário, ainda com muita unção monástica na voz.
O velho Agrinha arrancou a lente da órbita e esborrachou os olhos até eles reverem água. O sr. Abade sorria daquela pieguice.
Nada mais foi preciso para dilucidar o caso da sagrada jóia. Ao fim de cinquenta anos e pela mão do abade Pedrosa, voltava ao alfaiamento eclesiástico a bela custódia monacal.
       
Os rapazes que, ao domingo, se entretinham no adro da matriz a desfiar rosários de parlapatices ingénuas, na segunda-feira, dia do mercado semanal, acorriam em turnos a um recesso do Campo da Feira obedecendo a umas guinadas lúbricas que os propeliam desaustinados à fêmea viciante.
Apresentava-se todas as segundas-feiras no nosso mercado uma roleta pataqueira, onde alguns filhos «família» iam perder uns derreizinhos que os papás lhes outorgavam para biscoitos.
A imprensa avisada reclamava: “Seria bom que a autoridade administrativa desse ordem de despejo, para que essas crianças não comecem tão cedo a aprender um dos vícios que mais concorre para a desmoralização e desordem da sociedade. Também recomendamos aos papás que tenham mais vigilância sobre os seus queridos «nenés», para que de futuro não hajam de receber desgostos que de certo não lhes agradarão.”
Embora tenha resistido alguns meses às investidas do insecticida moral da imprensa, o que é certo é que a terrível formiga branca retirou da vila.
Foi retemperar-se a banhos para a Póvoa de Varzim, prometendo voltar com novos vapores.

(Publicado com autorização da minha amiga e co-autora Fabrícia Amarílis)
ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 08/10/2009
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