RATINHO AZUL
Andy Warhol tinha razão: uma caixinha qualquer de sabão em pó – dessas que se vende em supermercado – pode significar mais do que a Monalisa. E várias reproduções baratas da Monalisa podem ter a mesma arte que qualquer original de Miguelangelo.
Depende dos olhos. Depende da cultura. Depende da vida. Mas, o que é a vida? A vida já morreu. E que sentido teria algo conhecido como vida em outras eras? Não se sabe. As pessoas deste tempo já não mais vivem e, portanto, não podem falar do que não conhecem, não viram, não sentiram.
O não-experimentar torna esta gente de hoje, contemporânea do vazio. Vida, ou algo que os antepassados a isto chamaram nos tempos primitivos, precisa ser entendida pela filosofia da existência: este pensar constante em busca de entender o mundo atual pelos conhecimentos do passado, do presente e do futuro.
Edileusa, a empregada-cabeça do Professor Machado, acabara de comprar uma caixa de sabão em pó no mercadinho da esquina e papeava com as donas de casa, na calçada, sobre o sentido do existir:
- Sou, e é isto que importa. Não é este meu corpo mulato o que os homens querem? Então para que a Pedagogia? Ensino o caminho aos homens através do cheiro e das curvas sinuosas do meu corpo. E que falar da Filosofia? Da Teologia? Da Política? Somos todos pragmáticos. Cada qual vai atrás do que lhe seduz...
As mulheres a ouviam embasbacadas. “Onde esta crioula aprendeu a pensar, aprendeu a filosofar?” E refletiam ensimesmadas sobre a praticidade existencialista de Edileusa, sem se dar conta de que cada uma delas vivia a vidinha corriqueira de suas casas, ajudando na manutenção do status quo. Tudo era igual, tudo era novo. Porém, tudo era o que cada uma queria que fosse, pois nós mesmos construímos nossa história.
Não há critérios, não há princípios, não há valores. Pelo menos os tradicionais, pois os mesmos foram desconstruídos. Nitzche redivive no moderno Marketing e todos somos a História; construímos o mundo. A modernidade trouxe uma depreciação vertiginosa dos tradicionais conceitos e valores. O mundo fundamentado em “metarelatos”, essas grandes narrativas epopéicas que compõem o mito de cada civilização, sucumbiu. Resta, apenas, um navio sem destino; um mar sem porto; uma cidade sem horizontes.
Edileusa tinha um cronômetro na mão. Suas ações eram agendadas e devidamente acompanhadas. Para as compras, planejava sempre mais tempo, pois o papear descompromissado com as amigas era sempre buscado. No passado dos Grandes Descobrimentos, havia uma bússola. Mas o homem ocidental deixou que ela explodisse em suas mãos. Naquele tempo havia crises, havia ruptura, mas havia um Norte. Hoje a crise continua. As rupturas se abrem nas brechas do tempo; porém, nas mãos do homem, continuam apenas os estilhaços da Sabedoria que o túnel do tempo engoliu.
No mundo atual ainda há rotas. Mas elas já não são mais as mesmas de ontem, nem as mesmas de hoje. Substituímos as rotas como trocamos a roupa pelo modelo mais novo de Armani ou Gerhard. E sempre haverá novas estações para substituir as velhas. Vivemos uma vertigem coletiva que nos deixa tontos e rodando em círculos. Edileusa vai toda manhã ao supermercado e ao açougue. Nem falo de padaria. E sempre há donas de casas nas calçadas. Os almoços têm um preço e as empregadas precisam de salários. Já parou para pensar no custo do sexo? Quanto custa manter uma esposa? E uma amante?
Edileusa corre. O menino tem que ir para a escola após o almoço. E ela ainda falta passar o uniforme, assar a carne. Ela sacode suas carnes na caminhada: a do almoço e a do moço da banca de jornais, seu namorado, que se alimenta diariamente desse banquete. A modernidade também sacode a existência: arte, política, comunicação, cultura, sociedade, tudo é posto em discussão e os juízos estéticos, os valores morais são subvertidos pela era da morte do sentido; do suicídio da razão.
No mar báltico da beleza e da estética, começam a surgir as rachaduras do neo-modernismo. Há um descongelamento; uma dessacralização dos valores. Os conceitos tradicionais são substituídos pelo vento. E sempre há árvores balançando e galhos quebrando. Como prosseguir o caminho se não há ancoradouros a vista? O tempo presente é gerador de crises e o traço mais marcante disto tudo é que apenas se está tentando entendê-las, dominá-las, superá-las.
Finalmente, Edileusa consegue assar a carne; dar o almoço ao guri que tem que ir para a escola; atender ao telefone que toca insistente em horas impróprias; avisar a patroa que já está saindo e arrumar a mochila do moleque. Ela corre até a esquina para entregar o menino à patroa que o levará até o Colégio Alegrias do Saber...
Quando está subindo de volta o elevador do prédio, Edileusa passa a mão na testa já suada e suspira aliviada com mais uma rotina completada:
- Ufa! Que merda de vida. Que correria. Todo dia a mesma coisa!
Todavia, ainda tem mais. A tarde será de muitas surpresas para a empregadinha que só quer viver bem, se dar bem, curtir bem a vida. Às vezes, e aquele parecia ser um dia propício para isso, ela entrava no quarto do menino para saber se ele tinha deixado o micro ligado. Era uma fiscalização de rotina, mas, de vez em quando ela aproveitava para bisbilhotar a Internet. Foi o que ela fez naquela tarde, navegando por uns sites cheios de jogos e aventuras que o garoto estava acostumado a entrar. Sua mente viajou naqueles mundos fantásticos e fantasiosos dos jogos para internautas aficionados.
De repente ela assustou-se com o avançar da hora e, desligando o computador, correu para a lavanderia. Esqueceu-se de que tinha muita roupa para lavar e que este tinha sido um dos motivos porque fora ao supermercado de manhã.
- Onde está esta caixa de sabão em pó desgraçada? Grita ela para o vazio da casa silente ouvir...
Sabão em pó é algo muito frágil. É efêmero como a existência de uma bolha que ele mesmo produz ao ser associado à água. A vida é como sabão em pó dentro de uma caixinha colorida nas gôndolas dos supermercados. Só as donas de casa vêem; só as empregadinhas adquirem. Ficam na passarela por pouco tempo; são logo substituídos. Dissolvem-se na água e desaparecem ao sol. A vida é como água ensaboada que escorrega por entre dedos frágeis que esfregam roupas sujas num canto de casa qualquer.
Edileusa encontra a caixa de sabão - este bem tão precioso para ela naquele momento -, largada sobre uma cadeira, que ela mesma empurrara para debaixo da mesa e, assim, escondera-o de sua vista. Apressada, toma o pequeno volume e se dirige para a lavanderia. Enquanto abre a caixa e deposita seu conteúdo no recipiente próprio de armazenamento de sabão em pó, seu pensamento viaja para os cenários vistos na Internet.
É neste momento que algo vai surpreendê-la. O sabão em pó está empedrado dentro da caixa. Uma porção dele escorrega para o recipiente e ela julga ver um bloco de sabão empedrado em formato de ratinho azul. Olha para aquele pequeno bloco de sabão em pó e viaja em pensamentos. Alguma circunstância, climática ou não, fizera com que o sabão empedrasse. Pode até ser que adquirira algum com prazo de validade vencido, mas o fato é que ela nunca poderia imaginar ver um ratinho azul escorregar de dentro da caixinha e cair no recipiente de sabão em pó da lavanderia.
Assustar-se com o ocorrido, o que seria normal, não aconteceu. Ela sorriu. Olhou para o simpático ratinho azul de sabão em pó dentro do recipiente da lavanderia e sorriu. E enquanto sorria, seu pensamento viajava por sonhos de vida. De amor. De prazer. Edileusa queria casar. Mas o que queria mais mesmo era Sexo. Edileusa era voluptuosa. Era quente. Lembrou do namorado na Banca de jornal da esquina. Lembrou do porteiro que vivia atazanando sua vida. Vida? Mas o que era a vida? Esta geração do sabão em pó não sabe o que é viver. Viver não é arrastar o cotidiano até o cotididécada! Vida não é tão somente transpor a meia-noite e ter certeza de que se chegou ileso ao dia seguinte. Vida não é somente chegar ao fim, até porque o fim pode ser antes do início e do meio. Por isso existe o choro, daí vêm as lágrimas. Vida é muito mais que esta era sem Filosofia, sem Estética e sem Amor pode conceber.
A empregada olhava o ratinho azul e sonhava. Até que resolveu pegá-lo. Houve um magnetismo na sua relação com o ratinho azul. Ela se sentiu atraída. E depois de viajar em pensamentos dessa Era desconstruída, dessa Era caótica de aparência e sofrer, Edileusa tomou o ratinho azul em suas mãos, segurando-o pelas pontas dos dedos. Você já deve imaginar por qual parte ela levantou o ratinho azul de entre os destroços de sabão em pó. A moça levantou-o pelo rabinho erguendo-o até a altura de seus olhos, dando a entender que queria examiná-lo, averiguá-lo mais de perto.
E aconteceu a mágica, a fantasia. O ratinho azul, assim como esta Era caótica que vivemos, não nasceu para existir. Não existe ratinho azul dentro de caixas de sabão em pó como não existe vida sem sentido, sem razão. Ao segurar o ratinho azul pelo rabinho e erguê-lo no ar, o bichinho se desintegrou e uma nuvem de pequenas bolinhas de sabão em pó se espalhou pelo ar, ajudada pelo vento norte que invadiu a lavanderia do apartamento naquela altura do décimo terceiro andar. Edileusa espirrou muita realidade e quando abriu os olhos viu algumas bolhas de sabão orbitando nos céus de seus pensamentos. E nos cenários que as pequenas e grandes bolhas de sabão refletiam, ela viu castelos e viu amores e viu esperanças. Mas ela também viu uma grande e suntuosa igreja gótica. Foi quando ela descobriu que ainda estava com os saltos altos de quando fora a rua comprar o sabão em pó e rebolar para os passantes. Tirando-os, apressada, calçou umas havaianas e pôs-se a lavar as roupas, porque o tempo urgia.
Nada daquilo tinha sentido. Até então não vivera. Tinha que haver um sentido em algum lugar. E ela estava disposta a encontrá-lo. Continuar a vida, continuar a luta, buscar um amor verdadeiro, ser feliz. Edileusa estava agora em busca de uma razão...