A viagem

Chovia intensamente na rodovia. As janelas do ônibus estavam sendo fustigadas por vários pingos, e boa parte deles acabava no interior do veículo, de forma que sentar na janela não era uma boa opção aos passageiros. Por isso, Regiane optara por sentar-se num dos bancos do fundo do ônibus, onde estava bem seca e tranqüila. Tentava ler um livro, mas a luz fraca e amarela piscava o tempo todo, tornando essa atividade complicada.

Por fim, desistiu da leitura e começou a observar as poltronas. Estavam quase todas vazias, já que a maioria dos passageiros tinha descido na rodoviária de São Francisco de Paula. Agora só havia sobrado ela e mais um passageiro, sentado alguns bancos à frente, além do cobrador, que conversava com o motorista lá na frente.

O outro passageiro pareceu notar isso. Levantou-se de seu lugar e foi até onde ela estava. Era um homem alto, com cabelo castanho ondulado e olhos azuis.

-Será que posso sentar aqui? Lá na frente está chovendo mais do que lá fora. – Ele perguntou tentando parecer despreocupado.

-Fique a vontade. – Ela respondeu docemente.

-Então... O que uma moça bonita como você faz sozinha num ônibus, num dia de chuva desses?

-Viaja. – Ela retrucou.

Ele riu de forma sonsa.

-E não tem ninguém esperando por você na rodoviária não?

-Não.

Ele continuou sorrindo, avaliando os traços da moça, que devia ter uns vinte anos e tinha cabelos ruivos na altura dos ombros, ondulados, emoldurando o rosto de traços delicados e pele clara, onde dois olhos verdes estavam incrustados como se fossem um par de esmeraldas.

“Hoje eu tirei a sorte grande...”, ele pensou, antes de se voltar para ela outra vez.

Cerca de meia hora depois, o ônibus chegava a sua última parada. O cobrador parou ao lado da porta, esperando que os dois últimos passageiros saíssem. A moça veio primeiro. Entregou a passagem, sorridente.

-Moça... Sua calça está suja. – Ele apontou para uma pequena mancha vermelha no topo da coxa dela.

-Ah... Pois é... Aqueles dias. – Ela fez uma careta.

-Ah... Desculpe. – Ele sorriu constrangido.

Ela seguiu em frente, dando passou largos pela rodoviária que já estava bastante escura.

O cobrador sorriu, observando ela requebrar sobre o salto alto. Não via uma mulher daquelas todos os dias.

Ainda sorrindo, ficou esperando o outro passageiro. Ficou ali alguns minutos e nada do cara aparecer.

“Droga, esse cara capotou aí atrás?”, pensou, aborrecido, seguindo para a traseira do ônibus, a fim de acordar o homem que, provavelmente, havia adormecido.

Chegou ao banco onde ele estava sentado, com a cabeça virada para o lado. Estava mesmo ferrado no sono, pelo visto.

-Hei, acorda, última parada. – O cobrador sacudiu o homem. A cabeça dele sacudiu molemente e o corpo caiu para o lado lentamente, revelando duas pequenas perfurações no topo do pescoço do passageiro e uma mancha de tamanho bastante considerável no lado esquerdo do peito.

Em estado de choque, o cobrador saiu do ônibus, disposto a encontrar um telefone público para ligar para a polícia.

Enquanto isso, Regiane chegava numa casa antiga, que estava aparentemente abandonada. Quando entrou e acendeu as luzes sentiu-se bem. Os móveis de madeira, antigos, davam um ar todo especial à sala de entrada.

Ela jogou-se no sofá, satisfeita e retirou do bolso um pedaço de carne vermelha, que já não pulsava mais. Sorriu, exibindo para a noite suas presas sujas de sangue. No fim das contas todos eles lhe entregavam não apenas o sangue que lhe fazia sobreviver durante décadas naquela eterna noite de sua existência, mas também o coração, que estaria guardado com ela até que não passasse de um monte de tecido putrefato, sendo comido por vermes e enfim transformado em nada... Como tudo um dia.