CRISÁLIDA - parte IV
Roger parou diante do endereço onde residia a família Ávila e se deparou com uma funerária que falira há muito tempo, em condições no minímo bizarras. Era um casarão antigo, de aparência mórbida; seus vidros encontravam-se empoeirados e alguns quebrados; no jardim o mato crescia a uma altura de quase um metro e meio e a placa do estabelecimento estava caída na calçada: “Halick” – lia-se no letreiro enferrujado. Nas condições em que se encontrava aquele lugar, era difícil crer que alguém ainda morasse ali; entretanto, ele sabia que de fato existia uma família esquisita que habitava aquela casa agourenta.
Alguns anos antes, o casal dono daquela funerária se envolvera num escândalo macabro: foram acusados de homicídio e ocultamento de cádaveres.
Tal crime fora descoberto após a denúncia anônima de vizinhos, que viam constantemente sacos plásticos negros sendo enterrados no quintal. A polícia foi acionada e no jardim da família foram encontrados oito corpos em estado avançado de decomposição, e mais várias ossadas enterradas ao redor da casa. Eram os restos mortais de pessoas que haviam desaparecido e não eram vistas há anos, até aquele fatídico momento.
O casal acabou preso e o casarão ficou abandonado por cinco anos, até que alguns parentes distantes vieram e se instalaram no local, porém, sem fazer benfeitoria alguma naquela casa caindo aos pedaços. Os novos moradores eram anti-sociais, dificilmente saíam de casa, e possuíam o estranho hábito de ficarrem acordados durante a noite; quem passasse de madrugada em frente àquele lugar, via todas as luzes acesas e vultos nas janelas, que perambulavam de um lado para o outro.
Até então, Roger não ligara o nome Ávila àquela família homicída, mas agora que encontrava-se diante daquele lugar sombrio, toda a história nefasta que os envolvia veio lhe a mente. Sentiu seu coração por um instante parar.
Ele sentia medo e queria agora apenas voltar para casa e deixar a história da menina esquecida pelo tempo. Entretanto, quando ele iria dar meia volta, suas pernas vacilaram e sua vontade de fugir dali passou. Roger olhou para a fachada daquela casa e se sentiu atraído por uma força maior que seu bom senso. Era como se uma curiosidade incontrolável o tivesse possuído, e ele sentia que poderia explodir caso não atravessasse aquela porta.
A passos apressados ele entrou pelo portão de ferro, atravessou o jardim e bateu à porta do casarão. Ninguém atendeu. Roger insistiu; bateu mais algumas vezes até que a porta se escancarou.
Diante dele estava uma mulher jovem e sorridente, porém muito pálida e magra. Antes mesmo que Roger lhe dirigisse a palavra, a mulher o puxou pelo braço e o trouxe para dentro, logo em seguida fechado a porta com um baque.
— É ótimo receber visitas! — disse a mulher, contente. — Sente-se e relaxe, vou preparar um chá.
— Ei, espere! — exclamou Roger ainda zonzo com a situação. — Quem é você? Desculpe, mas acho que deve estar me confundindo com alguém.
— Ah, desculpe-me! Deixe eu apresentar-me; sou Rebeca Ávila, mas meus irmãos me chamam de “Bastarda”— ela proferia essas palavras com uma alegria muito sincera, o que Roger achou estranho, pois muitas pessoas se sentiriam ofendidas se fossem chamadas de bastardos. — E sobre eu ter te confundido com alguém — continuou ela —, bem, eu creio que não. Afinal, nunca te vi antes, nem tenho amigos ou familiares parecidos.
Ela empurrou Roger no sofá empoeirado da sala e saiu daquele cômodo. Ele ouviu o barulho de panelas batendo e água saindo de uma torneira, e logo Rebeca retornou saltitante, sentando-se ao lado de Roger com um sorriso tão expansivo quanto de início.
— Me conte... hum, qual é o seu nome mesmo? — perguntou ela.
— Roger, mas me responda: Por que é que está me tratando desse jeito?
— Desse jeito como? — indagou ela, parecendo surpresa.
— Desse jeito, sabe. Você recolhe um estranho para dentro de casa, acomoda-o e ainda fica com esse sorriso estranho no rosto.
— Não gosta de ser tratado com cortesia, senhor...
— Roger — completou ele. — Bem, claro que gosto, mas por que está me tratando com tanta cortesia? Vocês têm o hábito de tratar as pessoas assim?
— Temos sim — sorriu Rebeca. — Você quer falar com meu padrasto, ou com meus irmãos? — perguntou ela de repente, ficando com um semblante sério.
— É... — nesse momento Roger hesitou. De fato não sabia com quem falar e nem como falar. Tinha sido conduzido até aquela casa por uma espécie de impulso que se manifestara nele, mas agora que alcançara o objetivo de adentrar o casarão, não sabia o que falar. Afinal ele diria o que? Que viu uma menina que morrera anos antes, e estava tendo sonhos com ela? Não seria surpresa se ele fosse escorraçado dali.
— Se quer falar com qualquer um deles, deve voltar à noite — disse Rebeca. — A não ser que seja algo realmente importante.
— É importante — disse Roger devagar, ainda tentando construir um argumento em sua cabeça. — Mas creio que não é necessário que sua família esteja aqui. Não gostaria de retirá-los do trabalho, ou de qualquer outro afazer.
Rebeca riu: — Não, eles não estão trabalhando. Eles estão em casa, mas estão dormindo. Mas me diga qual é o assunto. Se for realmente importante, irei despertá-los.
— Não, não, isso não será necessário!
— Conte sobre o que é, logo! — apressou-se Rebeca.
— Está bem... — Roger respirou fundo e começou. — É sobre uma parente de vocês. Thamires.
Repentinamente a mulher parou, olhando surpresa diante da menção daquele nome.
— De onde conheçeu ela? — inquiriu Rebeca num tom de voz agressivo.
— Bem, parece ridiculo...
— De onde? — indagou ela aos gritos.
— Eu não a conheço, apenas sonhei com ela! — disse Roger finalmente.
Rebeca o encarou parecendo estar repentinamente alheia a tudo, lembrando de algo ocorrido em um passado muito longinquo. De repente a chaleira em que ela colocara água para esquentar começou a assobiar, e ela despertou. Correu até a cozinha e desligou a chaleira.
Roger escutou o barulho de cortinas sendo arrastadas por um trilho, e viu que aquele cômodo ficou mais escuro. Logo em seguida ela retornou à sala e fechou as cortinas, mergulhando-os num escuro véu instransponível aos olhos dele.
A mulher ascendeu várias velas espalhadas por vários cantos daquela sala, e tomando para si um candelabro, subiu as escadas correndo.
— Espere aqui, não saia — disse Rebeca ao chegar ao topo da escada. — Vou buscar minha família e logo retornarei. — então desapareceu no corredor.
Nesse momento Roger pensou seriamente em fugir dali, mas aquela mesma sensação que já o possuíra antes retornara, só que dessa vez muito mais forte. Sua vontade de nada adiantava, sendo que seu corpo não obedecia sua mente.
Tentou até lutar contra si mesmo, mas logo desistiu. Ficou ali no sofá, aguardando o momento em que aquela mulher esquisita retornaria com seus familiares psicopatas, e juntos iriam provavelmente matá-lo e ocultar seu corpo multilado.
Não demorou muito e Roger ouviu vários passos surgindo no alto da escada. Prendeu a respiração e olhou para cima. Ali estavam eles.