Coruja De-Uma-Perna-Só
Meu nome é Coruja De-Uma-Perna-Só, tenho dez invernos completos de existência, o tempo suficiente para muito vivenciar, muito observar, muito conhecer o que vivi, o que observei e o que conheci até hoje.
Logo após cinco semanas de existência, minha mãe foi morta e eu feri gravemente uma de minhas patas por um garoto e seu brinquedinho de atirar pedras. Fiquei muito assustado, perdi uma pata, ela já não se movia mais, então eu voei do meu ninho para a árvore mais alta e de copa mais espessa que encontrei, um jequitibá muito antigo, vivi por lá, observando os humanos que apareciam de vez em nunca perto dali, e notei uma senhora interessante...
Toda tarde ela aparecia por lá, e com seus xales e cachecóis pulava e dançava sozinha, naquela parte da floresta mais isolada da trilha, ela cantava, tinha uma linda voz lírica...
Certo dia resolvi acompanhá-la depois que saísse dali, e fui saltando de árvore em árvore atrás dela, até ela entrar na trilha, quando ela percebeu um movimento acima dela, que ia sempre junto com ela, ela chamou e disse para eu descer, com uma voz terna e simpática, mas, eu por ter uma natureza tímida e solitária, continuei a segui-la de cima. Saímos da floresta e eu a segui com os olhos, ela estava indo para o vilarejo, quando ela estava no meio do caminho eu voei por cima dela pousei sobre uma casa, que diferente de todas as outras tinha a frente voltada para a floresta e não para a cidade, e fiquei a esperar por ela chegar... Quando estava próxima, tirou de uma bolsinha uma chave, e coincidentemente entrou na casa em que sobre seu telhado havia pousado. Era uma casa antiga, muito grande, quase uma mansão, e tinha um jardim mal cuidado, com arbustos secos, ervas daninhas e flores silvestres. Enquanto ela passava pelo jardim, em direção à casa, escolhia algumas flores e folhas e fazia um pequenino buquê. Chegou na porta e destrancou-a, então eu desci para uma arbusto do jardim, e observei o movimento dentro da casa... A vi na sala despindo-se dos xales e cachecóis, e os colocava delicadamente num chapeleiro. Vestia um lindo vestido florido, com muitas rendas. Mesmo ela estando próxima da casa dos cinqüenta anos, possuía corpo e face de uma balzaquiana. Subiu as escadas antigas e ornadas da casa, e foi para um cômodo muito grande, que era seu quarto, mas mais parecia um salão: uma estante com mais de 5 metros de altura, que ocupava toda a parede onde tinha o portal, e estava repleta de livros, um cavalete de costas para as janelas largas, com pesadas cortinas de veludo negro, com vista para a floresta, e tinha uma cama de casal no meio de uma parede, com uma linda colcha de um tricô vinho. Estava anoitecendo, ela apanhou uma candeia e acendeu-a. Levou-a consigo quando subiu numa delicada escada dourada para encontrar um livro no alto da estante. Era um livro grosso, e lia-se “Bíblia Sagrada” em uma fonte gótica e dourada sobre a capa de couro negro. Ela levou consigo até a cama e deitou-se, com a candeia em sua mesa de cabeceira. Pôs os óculos e começou a ler. No início da leitura, via-se em sua face uma expressão de muita curiosidade, mas com o passar da leitura, via-se ela recobrindo a boca com as mãos, como se segurasse um riso, e logo depois via-se ela gargalhar alto do que lia, e passou-se assim, uma divina comédia por horas, até chegar tarde da noite. Então ela se levantou e pôs o livro aberto sobre uma escrivaninha e fechou as cortinas das janelas. Então eu me virei novamente para o jardim e observei as criaturas aos ligeiros passos por ali, eram ratos... Chamei um, e este, apavorado por eu ser uma coruja e ele um rato. Menti ser vegetariano para poder ter uma conversa com ele. Disse que seu nome era Figo-Lino, e perguntei a ele coisas sobre aquela senhora, ele me contou a reputação dela na cidade, todos chamavam-na de louca, e suspeitavam que era ela a responsável pelos ataques misteriosos de pedaços de carne na Igreja local, e só não era queimada por bruxaria por ter pais com alta influência, que tinham medo dela... A noite estava absolutamente silenciosa, não havia nenhum movimento que não fosse os das criaturas noturnas. Por volta das três da matina eu começo a ouvir passos da senhora dentro de sua casa, e logo depois gargalhadas femininas maléficas e o bater de portas... Fiquei com muito medo... De trás da casa sai a senhora, com uma bata negra, encapuzada, montada em uma geringonça movida à pedaladas, com fortes candeias à frente e uma cesta muito grande na traseira, coberta por uma toalhinha. Ela contorna a casa e entra na cidade. Vôo para cima da casa e de lá observo a senhora chegando à frente de uma capela e jogando o conteúdo avermelhado da cesta por volta de toda a construção, e voltando rapidamente para casa. Quando chegou no portão de entrada parou e ficou me encarando, e vice-versa... Então ela entrou por trás e aparentemente foi dormir, um silêncio tomou conta do vilarejo...
No dia seguinte passou a manhã inteira, e só no início da tarde foi que o primeiro movimento aconteceu na casa, ela abriu as cortinas e a luz invadiu o quarto, e abriu as janelas também. Voei para o para-peito da janela e dali vi a senhora arrumando seu quarto e de vez em quando lia versos da Bíblia e ria baixinho às vezes. Depois ela desceu e foi para a cozinha, onde preparou um chá e torradas numa fornalha, e pôs os dois em uma fina porcelana. A riqueza da família e dela eram evidentes. Ela foi para a sala de estar e abriu a tampa de um enorme piano de cauda, ornado com detalhes dourados em relevo, e passou a tocá-lo. Tocava melodias bonitas, ora rápidas, ora lentas... Tocou por muito tempo, até pôr seu xale e cachecol para ir dar uma volta na floresta.
Como ela não havia fechado as janelas, talvez propositalmente, eu resolvi dar uma olhada na casa dela. Comecei pelo quarto. Vi que de dentro o quarto era mais bonito que de fora, tinha paredes com painéis floridos e o quarto tenha uma vista magnífica da floresta. Notei acima de sua escrivaninha um lindo vasinho de porcelana com um arranjo de flores silvestres delicadas secas. Aos pulinhos fui saindo do quarto, e passei por um largo corredor, que de um lado tinha o quarto do qual acabava de sair, no meio havia um patamar que dava acesso à escada, e do outro lada havia uma porta aberta pela metade, de onde vazava raios de uma luz verde. A luz provinha de uma candeia posta sobre uma bela mesinha de três pernas, posta exatamente no centro do cômodo, absolutamente escuro, com as cortinas e janelas fechadas, não havia nada ali além daquela mesa com a candeia em cima. Dei meia volta e fui descendo a escada aos saltos miúdos pela escada de degraus largos. Cheguei à sala, onde encontrei uma poltrona individual, com agulhas de tricô e lã negra em cima, de frente para uma lareira. Todos os móveis eram incrivelmente ornados, e muito belos. Na cozinha havia sobre uma linda mesa uma garrafa de vinho tinto, um cálice de cristal, e algumas flores espalhadas sobre a superfície de ébano da mesa. Havia um armário com frascos e potes de vidro dentro. Voltei para a sala, e notei um quadro cujo qual eu poderia jurar que ali não estava anteriormente. Um quadro peculiar, de três telas... Me aproximei e contemplei-o por horas... Tinha muitos personagens, humanos e criaturas bizarras, e todos estavam fazendo coisas diferentes, num cenário realmente incomum. Passei horas observando o quadro, até chegar a senhora, e quando isso aconteceu, eu voei sobre pelas escadas e entrei no quarto, para sair pela janela, mas para a minha surpresa, esta estava fechada. Então fiquei ali, no meio do quarto, equilibrado sobre minha única perninha, até ela entrar. Estava me sentindo um estranho, um invasor, e estava com vergonha. Quando ela entrou me chamou com uma voz muito carinhosa, e meiga. Mesmo com muita vergonha, eu fui até ela. Desenvolvi um carinho por ela, era uma pessoa realmente muito interessante... Ela me acolheu em seus braços e me levou para a cozinha, onde me deu num pratinho uma quantidade de uma carne finíssima, cortada precisamente em filetes de mesmo tamanho, e me pôs numa cadeira com uma pilha de livros para que eu pudesse alcançar a mesa, e sentou do lado oposto e ficou a me observar... Não estava com muita vontade de comer, mas aquele prato estava com um jeito muito atraente, então comi sobre os olhares atenciosos dela. Ela me pôs no chão e caminhou até o piano, que agora tinha sobre ele uma flor silvestre branca em um vaso miúdo. Começou a tocar. Então eu caminhei saltitando até a sala, e fiquei por um bom tempo observando-a pelas costas. Voei até o tampo do piano, que estava aberto, com muito cuidado e delicadeza para não risca-lo com minhas unhas afiada. A senhora me olhava com olhares carinhosos de vez em quando e sorria. Fiquei ali por algum tempo, e depois voltei para o chão e fiquei observando o quadro novamente, vendo mais de seus infinitos detalhes. Percebia a senhora me olhando às vezes, mas ela continuava tocando... Passaram-se algumas horas até ela parar de tocar e observar o quadro junto a mim, e ficamos assim por alguns momentos. Então ela me perguntou: – Quer ver de perto? Não respondi, mas passei a olhá-la com interesse. Então ela disse com entusiasmo: – Venha! E saiu em direção à cozinha, e saiu pela porta dos fundos. Voei até onde ela foi, e ela estava arrumando uma cesta atrás do veículo dela, com uma almofada redonda e amarrava-a com cetins ao veículo. Então ela entrou para por sua túnica negra e encapuzada. Voei e entrei na cesta. Quando ela voltou, trousse consigo uma toalhinha de algodão e pôs sobre mim. Acendeu os faróis na frente do veículo, montou nele e às pedaladas deslizamos para fora da casa, e fomos a uma direção diferente, nem para a cidade nem para a floresta, fomos para o Oeste, para o espaço entre esses lugares. Era uma noite de lua cheia, com brisas de vento morno. Estávamos em alta velocidade, já longe da cidade, mas a floresta continuava ao nosso lado. Fomos chegando à uma região que eu desconhecia, era mais úmida e pantanosa. Atravessávamos riachos em alta velocidade, até chegarmos a uma ponte frágil de madeira, que passava sobre um grande lago no meio daquela floresta, e depois de atravessá-la chegamos ao pé de uma montanha, e agora mais lentamente, chegávamos ao cume desta montanha, e quando lá chegamos, ela parou e tirou a toalhinha de cima de mim para que eu pudesse ver o lugar, e vi.
Como estava noite, a única luz vinha de lá mesmo, de labaredas espalhadas por vários lugares, muitas pessoas nuas, algumas gritando, outras resmungando, outras correndo, criaturas bizarras, tudo o que eu havia visto no quadro...
A senhora me contou que ela era amiga do artista daquele quadro, e havia pedido para ele retratar aquele lugar, e assim o fez, e é por isso que ela tem um quadro daquele lugar...
Minha vida passou até os dias de hoje com eu morando com aquela senhora, viajei para muitos outros lugares, junto com ela. vivi dias sem iguais, e vi coisas que tenho quase certeza de ter sido a única coruja a ter visto.
Aprendi muito essa senhora, e digo apenas uma coisa dela: Não há uma senhora com sequer metade dos segredos desta...