Cuidado com o cão

Um ladrão espreita por entre as barras da grade de um bonito casarão. Ele examina o quintal com cuidado, pois antes de se aproximar havia visto uma placa de alerta.

A madrugada se aproxima, o bandido olha em seu relógio pra confirmar o horário. Eram 23h50... Depois de alguns minutos vasculhando o quintal com a parca iluminação da lua cheia, ele julga a tal placa como um blefe pra espantar ladrões receosos e decide entrar.

A grade branca combina com a arquitetura daquele casarão. Era composta por 30 barras, talvez um pouco menos, divididas em dois lances que formam um harmonioso portão arredondado no qual as barras mais altas passavam de 3m, enquanto as menores não passam de 1,80m. Mesmo com as pontas de lança no alto, ela era bem fácil de transpor pra um ladrão experiente como aquele.

O homem pula e esgueira-se até a porta da casa, sacando uma chave de fenda e tentando arrombá-la sem fazer muito barulho, forçando um pouco com a outra mão. O suor escorre por sua testa, talvez a adrenalina que corria em seu sangue por causa da situação levasse seu corpo a transpirar... De fato a adrenalina era grande, mas ela o impediu de notar que aquele lugar estava esquentando a medida que os minutos se arrastavam.

Ele tem a impressão de que estava sendo observado. Um pressentimento estranho vem a sua consciência centésimos de segundo antes do sino da igreja soar ao longe a primeira badalada. Era meia noite. O homem olha pra trás, mas tudo parece tão tranqüilo e pacato quanto antes. Ele respira fundo e volta a atenção novamente pra fechadura que tentava arrombar, mas seus olhos mal conseguem crer no que viam:

Do buraco daquela fechadura saíam pequenos fios de sombras. Apesar da escuridão da noite ele percebe claramente quando os fios se enrolaram no metal, que aos poucos se tornava incandescente. Por instinto, o homem solta a ferramenta e dá um salto pra trás. Um leve cheiro de enxofre começa a impregnar suas narinas enquanto ele olha confuso ao redor. Tudo parece estar mias sombrio e distorcido, como quando se olha através do calor emanado pelo asfalto. Focos de fumaça começam a brotar das plantas que adornavam o jardim, enquanto a temperatura sobe de maneira assombrosa. Ele tenta se afastar, mas suas pernas não obedecem. Tenta gritar, mas não consegue ouvir sua própria voz. Tudo o que ele ouve são gemidos lamuriosos e risadas sinistras ecoando alto em sua cabeça. Enquanto o cheiro de asfalto derretido se mescla ao do enxofre, que agora já era intenso e incômodo, ele se vê em meio a um incêndio, num tipo de clareira entre as chamas.

O homem está paralisado pelo terror do cenário que o cerca. Ele percebe os fios de sombras se agrupando e formando um grosso tentáculo negro que arrebenta a porta e rasteja em sua direção. Ele dá meia volta pra fugir, mas é detido pelo paredão de fogo que arde em sua pele como se estivesse próximo demais de uma fogueira. O tentáculo se lança pelos ares enrolando-o e apertando forte, como uma serpente constritora. Os ossos e juntas estalam e ele começa a sufocar. Quando aquele homem pensa que seu fim havia chegado, o tentáculo começa a afrouxar e as risadas e gritos ecoam cada vez mais longe, até ficarem bem baixinhos, como um som que compunha o cenário macabro. Aquilo ainda estava longe de acabar.

O calor sufocante começa a machucar seu corpo. Parte da pele de sua bochecha começa a formar bolhas. A temperatura se torna insuportável pra um ser vivo. Nesse instante, do meio do fogo e fumaça, uma silhueta começa a se revelar. Era enorme, talvez passasse de 3m de altura, tinha olhos tão brilhantes que se destacavam entre o bruxuleio das chamas que o envolviam. Nas laterais da cabeça podia-se notar a forma de um imponente par de chifres. O som dos cascos de bode ecoava mais alto do que qualquer grito atormentado a essa hora. Eis que um rosto demoníaco com traços bem marcados emerge do meio do fogo, tinha caninos pontiagudos e protuberantes, um cavanhaque bem delineado e pele num tom vermelho vivo, porém, o traço mais marcante era o olhar, capaz de transmitir pavor ao coração do mais valente dos homens. Satanás estava bem ali, diante dos olhos de um simples mortal.

O rei dos demônios ergue sua mão e segura o pescoço daquele homem enquanto o tentáculo se dissipava numa nuvem de fumaça. A essa altura o ladrão já não tinha mais forças pra esboçar qualquer reação, não que ele estivesse ferido demais, mas o medo havia dominado completamente sua alma e destruído sua força de vontade. O diabo o segura pela cabeça com a outra mão, posicionando-o de costas pra si e caminha até o que sobrou da grade retorcida enquanto as chamas ardiam ao redor, apenas afastando-se de seu caminho como por mágica.

A placa da entrada estava intacta, presa a um resquício de metal retorcido do que um dia foi a grade daquele casarão. Ele arranca a placa com a mão livre, virando-a de frente pro rosto do meliante moribundo, enquanto um o silêncio sepulcral toma conta de todo o lugar, perdurando durante alguns segundos até ser rompido por um sussurro gutural e macabro:

- Devia ter prestado atenção ao aviso. - disse Satanás.

As chamas se tornam muito mais intensas e o bandido volta a gritar em uma dor agonizante, ele se debate freneticamente pra escapar do monstro, em vão. O fogo se torna rubro enquanto o diabo gargalha histericamente e assiste o corpo do mortal pecador ser carbonizado pelo fogo do inferno, desaparecendo em seguida.

A décima segunda badalada ecoa em toda a cidade e tudo volta ao normal. A bonita grade branca continua adornando aquele casarão onde ainda jaz o alerta que sempre deve ser respeitado:

"Cuidado com o cão".