A DANÇA RUBRA DE LUNNA - Cap I

*Publicado no ezine Brumas Negras

— CAPÍTULO I —

Os anos se passaram e, como conseqüência da tragédia inicial, “criei-me” nas ruas ou elas me criaram, tanto faz... Enquanto pequena contava com a caridade de outros mendigos, como chamam os “passantes“. Conforme fui crescendo, os problemas cresceram comigo. As coisas se tornaram mais fáceis e ao mesmo tempo mais difíceis: Mais fáceis porque eu me tornei uma bela mulher — a única fartura que encontrei em vida cabia em meu vestido— bastava dançar, subir a saia, expor o corpo e as moedas choviam; mais difíceis pela mesma razão...

Não fosse eu conhecer as ervas certas, teria parido muitos filhos indesejados ou morrido de alguma doença qualquer, porque sexo de rua sempre leva à um desses destinos!

Durante a lua cheia eu ia à floresta, me despia de tudo e me ofertava à terra, à água e à lua, contrariando os costumes do povo que me gerou — para eles, a Dança do Sol era um dos rituais mais sagrados — para mim, o sol era o pai do fogo e, para este, eu nunca me doaria! O fogo já havia levado muito de mim.

Desde meus primeiros ritos, havia um par de olhos amarelos a me acompanhar. Olhos que brilhavam, feito pequenas estrelas douradas, dentre a escuridão da floresta. Eu o chamava de “criatura da terra”. Ele sempre esteve lá, escondido, frustrando minhas inúmeras tentativas de aproximação. Observava-me, mas nunca me fez mal; talvez porque não houvesse mal algum que eu já não tivesse sofrido.

Em minha ignorância mortal, acreditava ter as respostas. Acreditava também que estes rituais serviam para alguma coisa: Eu ia até a floresta, me despia de tudo — das roupas, dos sonhos, da realidade — entoava um poderoso cântico que há muito já esquecei, bebia uma infusão de ervas e dançava até atingir o estado de êxtase que me permitia a fusão com a terra...

...Durante este estado, eu era possuída — não me refiro apenas à viagem lisérgica — algo possuía meu corpo de forma inimaginável. Algo que eu acreditava ser um espírito da natureza, mas que talvez não passasse da fúria que sempre existiu latente em mim.

O cântico gradualmente se convertia em gemidos e estes em urros, num misto de dor e prazer, enquanto a pele era rasgada, esfolada entre as pedras e raízes que cobriam o chão.

A dança dava lugar aos movimentos ritmados do sexo, cada vez mais rápidos, urgentes, vibrantes, até que o sangue e a terra formassem uma mistura homogênea que eu comia, até que toda a fome fosse aplacada.

E assim, eu me purificava. Doava-me à terra e à lua, pedindo em troca força e proteção para enfrentar o próximo ciclo. Era nisso que eu me agarrava:

Na ilusão de que um ser qualquer, desconhecido, guiava a minha vida.

Hoje percebo que essa mesma ilusão foi por vezes minha única salvação, guiando-me feito um farol em meio à tempestade. A ilusão é um mal necessário a vida. Um grilhão que já não necessito.

...

“As pessoas precisam de fios — escritores, heróis, estrelas, dirigentes — para dar sentido à vida — o barco de areia de uma criança virado para o sol. Soldados de plástico na guerra suja em miniatura. Fortalezas. Navios de Guerra de Garagem. Rituais, teatro, danças — para reafirmar necessidades tribais e memórias, um chamamento para o culto, unindo acima de tudo, um estado anterior, um desejo da família e a magia certa da infância”

“Poder”, Jim Morrison