Confissões do desamor
Chegamos afobados ao restaurante. Pudera, pouco tempo para o almoço e enfrentaramos um trânsito caótico. Chovia muito, fruto de um verão extremamente quente que resulta em chuvas intensas. O táxi deixou-nos próximo a uma poça de água. Meu blazer gotejado e meus sapatos molhados, acabavam por combinar com o vestido florido igualmente úmido que Ester usava. Ainda tensos com a correria, fomos acomodados por uma jovem garçonete que se desfazia em sorrisos e gentilezas. Pouco depois ao retornar, anotou nosso pedido e desapareceu por alguns minutos.
Finalmente estávamos a sós e absolutamente compenetrados do que inicialmente trataríamos. Confesso estar curioso sobre o motivo ao qual Éster tanto queria me falar. Após um rápido quebra-gelo em que ela me fez um elogio imediatamente retribuído, sua expressão alterou-se. Compenetrada deu ênfase sobre a importância daquele momento e desatinou a falar lentamente medindo a gravidade das palavras.
Enquanto a ouvia, matutava taciturno.
Como poderia aquela mulher inteligente, decidida, mas, sobretudo independente se revelar tão fragilizada? Nunca levou desaforos para casa. Era referencia em todos os ambientes que freqüentava, sinônimo de força e determinação. Imaginei que casos semelhantes, que aliás acontecem às pencas. acontecessem apenas a mulheres submissas, imaturas, acomodadas, muitas inclusive sem instrução. Pobres meninas que comprometem suas vidas envolvendo-se com príncipes da mediocridade.
Sentada à minha frente, mantinha os antebraços deitados sobre a mesa. Os ombros tensos escoravam um rosto triste e olhar melancólico. Apesar de tudo, ainda era bela.
Vez ou outra fitava meus olhos, mas imediatamente pendiam desanimados. E foi assim que quase num sussurro, enquanto dedilhava lentamente o saleiro, que afirmou quase só para si, entre frases entrecortadas.
- Sabe... Há muito tempo eu sou muito infeliz em meu casamento. Não sou amada. Não tenho carinho. Sou tratada com o mais puro descaso. Posso dizer até, que sou humilhada e mal tratada. Ás vezes sou até agregida fisicamente. Semana passada escondi alguns hematômas com roupas compridas. E o pior, afirmo com a maior vergonha do mundo que aceito tudo sem forças, sem esperanças. Às vezes, aceito por conveniência.
A palavra conveniência me deixou atônito.
Suas lágrimas brotavam e escorriam facilmente pelo rosto sem contenção. Éster fazia questão de mostrar abertamente o mais íntimo de sua alma e eu, apesar de me postar ao seu lado, ora sentia certa satisfação de sua tristeza, ora inveja de não ser eu o alvo de sua imensa dor. Apesar de me procurar como amigo, necessitando de apoio, eu não fazia nenhum esforço de esquecer o que indiretamente me fizera passar. Se ao menos soubesse o quanto a amei, e ainda a amo, jamais me diria estas coisas.
Enquanto pintava um quadro surreal, eu, infelizmente, não sentia nem mesmo compaixão. Mantinha-me atento porém frio. Ouvi atentamente aquela confissão amarga com o rosto sem expressão. Ao terminar, certa da reprimenda, perguntou-me o que achava com os olhos ansiosos querendo conforto.
- É o amor - respondi dispersivo. Deixei com que o silêncio após a frase curta talvez elucidasse tudo. Meditativo, insinuei pesaroso - O que nos torna e o que tem feito conosco?
- Nos torna?! - encarou-me à espreita curiosa com a cumplicidade. Não me diga que está apaixonado! Mas estou certo que você com toda sua força interior jamais estaria na mesma situação em que me encontro. Mas de qualquer forma, diga-me o que te tornou? - ergueu levemente as sobrancelhas.
- Tornei-me uma figura de pedra... - Envergonhado, baixei os olhos fitando a toalha impecavelmente limpa. Um dia me apaixonei pela Medusa. - Encarei Ester como quem quisesse ser entendido sem esforço.
- Estes poetas e suas alegorias... - Torceu a boca com um discreto sorriso sem associar o que eu havia dito. Não é aquele monstro que tinha os cabelos formados por serpentes? Não vá me dizer que a serpente te picou...
- Não... Não fui picado. Mas você há de entender - tratei de esclarecer - Sua história também é triste. Era uma mulher maravilhosa mas foi transformada em monstro. Notadamente, as pessoas lembram-se apenas do resultado grotesco que sua beleza indiretamente a condicionou. De qualquer forma, fitei-a e me transformei em uma criatura de pedra. Minha alma se foi, parece que perdi toda a sensibilidade. No jardim que habito muitas mulheres fascinam-se comigo. Algumas se apaixonam por mim. Caem perdidas pelas minhas formas e com a certeza de que jamais me terão ou sequer me atingirão. Meu coração, porém, é de pedra, assim como é de pedra a minha alma. E isto me levou a ficar só. A solidão parece um caminho sem volta. Estar na multidão é o mesmo que não ter ninguém ao lado. Quando alguém se interessa por mim, não consigo me exteriorizar e dar vazão a minha alma que permanece fria como se nada valesse a pena.
- E o que te valeria a pena? - devolveu rápido.
- Não sei. Hoje tenho apenas o superficial, o distante. - Desta vez fui eu quem desviou o olhar.
- Você as faz sofrer, como me faz sofrer o homem de pedra que eu amo - Seus olhos brilharam por um instante enquanto sobrepunha levemente sua mão sobre a minha - Não seja insensível. É muito pior que ser indiferente. Não culpe ninguém por suas escolhas. Se hoje você está assim, foi porque você optou por isso. Em nossa vida, destruir é muito mais fácil que construir. Se me entendes, há de concordar comigo que a autodestruição é mais simples ainda. É um caminho sem volta que nos mergulha em um círculo de dor. Olhe bem... É disto que tenho me desvencilhar e muito me entristece saber que você está seguindo o mesmo caminho.
- Esta é uma das qualidades do amor. - Ponderei com ironia - Podemos ser sublimes ou desprezíveis, estamos sempre no fio da navalha. Qualquer que seja nossa posição, estamos sempre corretos. Queremos nosso amor do lado e esta ilusão de felicidade nos nos causa uma cegueira branca. É a mais pura verdade afirmarmos que não se pode ser feliz e amarmos ao mesmo tempo. Talvez você seja vítima da segurança do amor que escraviza. O dono de nosso coração tem a tranquilidade de dominar a situação e provocar as mais duras condições que acabam por esmagar nossa alma como uma cobra constritora. Neste caso, liberte-se e será feliz sem seu amor. Em todo caso, é muito difícil opnar em um caso em que não conhecemos os dois lados da estória.
- Acho que ele ama outra e acaba descontando em mim a falta do amor que não lhe é possível ou acessível quando lhe convém. - Neste instante estava resignada, suas lágrimas secaram. Sinto que acabei jogando fora meus sonhos e minha individualidade quando optei por aceitar suas exigências. Abandonei minhas amizades, meus estudos, minha carreira. Até minha família ficou em segundo plano.
- Este é um erro grave que acaba por envenenar a nossa alma. Jamais devemos abandonar nossa individualidade e nossos sonhos. Nossa felicidade não depende da participação de outra pessoa. Quando fazemos isso negamos a nós mesmos. Por outro lado, e isto tem um pouco de sarcasmo, quem sabe ele também tenha encontrado uma Medusa e tornado-se uma outra criatura de pedra. Neste caso, todos somos vítimas do desamor e do capricho do destino. Em todo caso, a fome é o tempero da comida e todo estas dores dão um certo sentido a nossas vidas.
A garçonete apresentou-se novamente sugerindo a sobremesa que foi descartada. O tempo passara depressa demais e nossas obrigações nos chamaram de volta a nossas responsabilidades.
Bebemos um café saboroso, trocamos amenidades e nunca mais nos vimos.