Os lobos à minha volta

OS LOBOS À MINHA VOLTA

A primeira vez que vi uma peeira foi há cinco anos. Na época, minha ignorância sobre os outros seres, me impediu de ver a verdade e com quem eu estava lidando.

Seu nome era Camila, um nome comum que não dava dicas sobre o que ela era. Eu a conheci em um bar, próximo ao meu antigo apartamento. Ela estava sentada no balcão, bebendo algo, que depois descobri ser vodca com limão, uma bebida tão simples quanto seu nome. Camila vestia uma blusa de seda roxa com mangas compridas, uma calça – talvez social – preta e um par de sapatos da mesma cor da calça. Sua pele era bronzeada, o que criava um contraste interessante com seu cabelo longo e loiro.

Sentei-me ao seu lado e pedi um copo de uísque. Sempre que peço alguma bebida, perco mais tempo admirando-a, do que realmente bebendo-a.

Percebi que ela me olhava constantemente, o que me deixou intrigado, principalmente por deixar dúvidas se eu deveria usar ou não minha hipnose com ela, mas dessa vez, decidi esperar algum interesse a mais da parte dela.

Quando estava quase pronto para pedir minha segunda dose, eu ouvi ela se virando em minha direção.

- Olá, meu nome é Camila – ela disse, com um sotaque carregado.

Coloquei meu copo de volta no balcão e respondi ao cumprimento:

- E meu nome é Thales.

Ela sorriu, deixando seus dentes brancos se destacarem em seu rosto bronzeado.

- É minha primeira semana na cidade. Você não conhece nenhum lugar interessante aonde possamos conversar a sós?

Ela era mais atirada do que sua aparência mostrava, e sendo assim, eu não precisaria enfeitiçá-la - usando um linguajar mais romântico.

- De onde você é? – eu perguntei, tanto como curiosidade, quanto como uma tentativa de ganhar tempo e lembrar-me de algum lugar aonde pudesse levá-la.

- Portugal – A resposta me pegou de surpresa, queria ter visto meu rosto em um espelho naquela hora, pois pelo sorriso de Camila, minha expressão devia ter sido no mínimo engraçada. De qualquer forma, isso explicava seu sotaque.

- Sério?

- Sim, vim da capital, Lisboa. Estou aqui para aproveitar minhas férias. Dizem que as noites de lua cheia neste país são maravilhosas.

- É, acredito que realmente sejam – foi uma resposta vaga, mas não sabia o que dizer.

Olhei rapidamente para o fundo do bar e lembrei-me do corredor das prostitutas. Era um corredor com vários quartos, que obviamente ficava atrás do bar no qual estávamos, porém, muitos diziam que não pertencia ao dono do bar e sim a um vampiro empresário, cuja renda vinda das mulheres que pegava nas ruas.

- Venha comigo – eu disse, enquanto puxava Camila pelo braço.

Sem falar nada, ela me acompanhou. Não parecia espantada com lugar que a levara. Tudo continuava igual: o corredor imundo ainda cheirava à estupro, havia apenas oito quartos abertos, porém dessa vez tudo estava vazio, sem nenhum grito de prazer ou dor, sem ninguém transando como desculpa para conseguir dinheiro. Nada. Silêncio.

Entrei no terceiro quarto e Camila veio atrás. Observei rapidamente como o lugar era nojento, uma cama de casal com um colchão rasgado era a única decoração lá dentro, mas não deixei isso me impedir.

Eu sentei na beirada da cama e comecei a assistir Camila se despindo. Primeiro ela tirou sua blusa, o que me deu a reposta do que ela queria esconder: cicatrizes. Os dois braços estavam marcados com arranhões, alguns bem antigos, outros nem tanto, o que me fez pensar se ela havia fugido de Portugal porque apanhava de alguém, algo como violência doméstica, ou se ela era apenas uma fugitiva, daquelas que ficam na lista das mais procurada no mundo.

Essas fantasias só aumentaram minha excitação, era como se antecipassem o melhor sexo da minha vida.

Ela continuou tirando sua calça, e eu comecei a fazer o mesmo. Deitei-me na cama, tentando não me focar em como tudo era nojento e repugnante naquele quarto. E ela veio por cima.

Consegui sentir uma força estranha vinda dela, e não era apenas física, mas uma força que a fazia especial, alguém mais parecida comigo do que com uma humana qualquer.

Quanto senti que estava dentro dela, essa força se intensificou, o que fez meu instinto pensar em matá-la, mas lutei contra isso. Fazia anos que não matava alguém sem intenção durante uma relação sexual. E isso só acontecia porque era um íncubo que não tinha noção do que fazia, mas com o passar do tempo essa noção finalmente apareceu.

Quanto mais o sexo se intensificava, maior era essa força, assim como a vontade de matá-la, mas nada fiz.

Antes de seu orgasmo, Camila soltou um urro extremamente forte, que me assustou, principalmente por ter vindo do nada e porque pensei que estava machucando-a ou até mesmo começando a matá-la, sem querer.

Ela deitou-se ao meu lado, como se quisesse que eu dissesse algo, mas fiquei quieto. Nós dois ficamos.

Após alguns minutos, que pareceram horas, nesse silêncio insuportável e ao mesmo tempo necessário, Camila levantou-se e começou a se vestir.

Ainda na cama, observei como sua costa também era cheia de cicatrizes, levando-me a uma terceira teoria: masoquismo. Se eu soubesse disso, talvez tivesse aproveitado mais enquanto transávamos, e não teria me preocupado tanto.

Ela estava calçando seus sapatos quando repentinamente quebrou o silêncio.

- Encontre-me aqui na frente, amanhã, às 18:00.

- Não é muito cedo? – e realmente era.

- Sim, mas poderemos ver a lua cheia em seu estado completo. Desde o começo.

Sinceramente, ainda não entendia sua obsessão com a lua, mas apenas concordei com a cabeça.

Ela deu uma última olhada para mim e saiu do quarto.

Não estava acostumado a fazer nada antes do anoitecer e, para mim, 18:00 era um horário impróprio para qualquer atividade. Por isso cheguei atrasado ao local combinado.

Camila estava parada em frente do bar. Percebi que estava impaciente e mostrou isso ao falar comigo:

- Você não deveria ter se atrasado. Agora teremos que correr – eu havia me esquecido de como o sotaque dela era carregado.

Ela me puxou pelo braço e começou a correr em direção à estrada que levava até a cidade vizinha. Eu a seguia, mesmo não sendo tão rápido quanto ela, o que era estranho, já que sempre vencia os humanos em uma corrida. Mas ela não parecia estar consciente disso.

Depois de alguns minutos correndo, percebi que ela entrava em uma das reservas florestais que ficavam ao redor das estradas. E por um breve momento me perguntei há quanto tempo realmente ela havia saído de Portugal e chegado até aqui, pois parecia bem informada sobre o lugar aonde queria ir, e tudo o que podia ver era obscuro, nenhum lugar conhecido.

Ela começou a mais rápido quando finalmente ficamos rodeados de árvores, e eu precisei acelerar o passo, coisa que nunca foi necessário. Isso me deixou questionando a real humanidade de Camila, tudo nela era a mais, até mesmo a beleza.

Finalmente, ela parou. Olhou para cima e o céu já estava escurecendo, em poucos minutos ficaria um breu completo, porém a lua cheia já era visível.

- Você nos irritou, Thales – ela disse ao afastar os olhos da lua e focá-los em mim.

- O que você está dizendo? – perguntei tentando dar sentido àquele absurdo que saiu da boca dela.

Ela ergueu os braços e como em um desses shows em um circo de palhaços, sete homens desceram das árvores ao nosso redor. Formaram um círculo, impedindo que eu ou Camila saíssemos dali.

Tentei reconhecer algum daqueles homens, mas ninguém era no mínimo familiar. A única certeza que tinha era que eles não eram humanos, mas sim lobisomens.

Camila abaixou os braços e voltou a falar:

- Sabemos de seus assassinatos. Sabemos de todos os nossos aliados que você matou. Eu sei da morte de morte de meu irmão. Sabemos... – eu precisei interrompê-la.

- Espere – eu disse, e toda a neutralidade de seu rosto se transformara em pura raiva – Eu não matei nenhum de seus... aliados, ou seu irmão, por pura diversão ou por vontade própria. Eu sou contratado, um mercenário, nada do que faço vem do espontâneo.

Ela ergueu apenas sua mão direita, como se estivesse dando uma ordem muda, e a transformação começou. Os sete homens começaram a gritar e se retorcerem de agonia. Seus pés e mãos começaram o processo de crescimento, assim como suas mandíbulas e orelhas. Era a transformação clássica de lobisomens. Apenas gritos e a mudança angustiante.

Eu sabia que esse era o momento exato para que eu fugisse, porém Camila ainda estava lá, em sua forma humana. E eu ainda não tinha certeza do que ela era.

Após os gritos e urros que pareciam intermináveis, a transformação acabou.

Camila continuava com a mão direita ainda levantada.

- Você sabe que se eu abaixar minha mão, eles irão te atacar – a voz dela estava rouca, como se os gritos que eu acabara de escutar fossem dela.

- O que você quer de mim? – perguntei, temendo a resposta.

- Quero que você trabalhe para nós - resposta simples, e até certo ponto previsível.

- Como? Hoje? – sabia que poderia ficar a noite inteira fazendo perguntas que às vezes não necessitavam de respostas.

- Não será hoje. Quando for necessário, eu te procurarei e você irá nos ajudar. Mas para que eu possa te liberar ileso, preciso de algo em troca, alguma coisa que garanta que seu instinto de demônio não vá fugir e tornar difícil o nosso contato futuro.

Eu sabia que não conseguisse sair ileso dali, sairia morto. Não tinha nenhuma chance contra sete lobisomens, principalmente contra àqueles que estavam ansiosos para um ataque. Eu gostava de pensar em minha imortalidade, mas como vampiros, eu poderia morrer, de uma forma ou de outra.

- Tudo bem, eu te darei uma garantia – agachei-me e peguei um pequeno graveto seco no chão, e com meus dentes, não tão afiados como de um vampiro, mas mesmo assim forte o bastante, mordi meu pulso direito, deixando o sangue escorrer. Pude sentir o prazer dos lobos à minha volta, enquanto o sangue caía, mas sabia que aquele truque seria minha única chance. Deixei algumas gotas do sangue cair no graveto e joguei em direção à Camila.

Ela abaixou-se, ainda com a mão direita levantada, e pegou o graveto com a outra.

- O que é isso? – perguntou.

- É a minha garantia. Se você beber desse sangue, uma parte de mim estará sempre com você, assim saberá onde estou, em qualquer lugar do mundo. Basta beber e logo seu corpo sentirá o que eu estou falando – ela olhou bem em meus olhos, tentando desvendar minhas intenções, mas logo desistiu. Então começou a lamber o sangue do graveto.

Esse era um dos maiores truques que nós íncubos e súcubos usávamos. Ela nunca saberia onde eu estaria, meu sangue só a faria ter uma sensação muito parecida com um orgasmo, porém duraria menos que duas horas, o suficiente para que ela acreditasse na mentira e me deixasse fugir sem precisar lutar com seus lobos domesticados.

Ela jogou o graveto no chão e logo percebi que meu plano já estava funcionando. Ela ergueu os dois braços e pediu que os lobisomens abrissem caminho.

- Agora você pode ir, mas cuidado para quem trabalha – ela disse tentando parecer ameaçadora, mas meu sangue a acalmara, então tudo que consegui tirar daquilo foi um aviso amistoso.

Andei lentamente para fora do círculo das feras, e sem olhar para trás, comecei a correr.

Anos depois, Camila me encontrou, furiosa e pronta para me matar, mas esses anos de distância me ensinaram a viver nesse mundo com tantos segredos e mistérios, e com o conhecimento certo, descobri o que ela realmente era: uma peeira, ou “fada dos lobos”, como muitos a chamavam. Peeiras eram as mulheres mais poderosas de uma alcatéia, capazes de controlar os lobisomens, além de permitir ou não suas transformações.

Meu conhecimento sobre peeiras foi tão obsessivo, principalmente por quase ter sido morto por sete lobisomens, que acabei conhecendo uma fora dos padrões de Camila. Seu nome era Soncha, uma peeira amiga e eventual amante, mas quando me encontrei com Camila, ela era apenas uma loba contratada para matar outra. Foi aquela velha história de caça e caçador, presa e predador. No fim, matar alguém de sua espécie é mais prazeroso do que possa parecer.

FIM.

Lucas Bonini
Enviado por Lucas Bonini em 29/08/2009
Código do texto: T1781638
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