Pequena Autobiografia de um Gnomo
Sempre acreditei que não existe divisão entre corpo-alma, que ambos formam um todo comum indistinto e resistente e que apenas uma falha da nossa visão nos faz crer possível separá-los. O corpo acompanha a alma nos desvios da vida e a alma segue ao lado do corpo e ambos são um e não o contrário, como é o corrente pensamento nos dias atuais. Neste ponto, mantenho-me fiel aos antigos. No entanto, devo confessar que ao adormecer ontem, sonhei que meu corpo se despedia do espírito no instante final da vida e que este podia então viajar por outros espaços e caminhos, indo afinal habitar a velha árvore que me serviu de abrigo e morada durante a existência. Dito isto, posso afirmar com inteira segurança que sou um gnomo e não um pequeno homem, como antigamente às vezes ouvia me chamarem no circo. Pelo menos, deve ter sido assim noutras épocas de onde guardo algumas lembranças vagas e preciosas.
Nasci em Espanha, no ano de mil seiscentos e trinta e seis do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vivi com meus pais uma existência tranqüila e amena num bosque de pinhos numa região rural próxima à cidade de Saavedra. Ali passei a infância e boa parte da juventude, permanecendo até o ano de mil setecentos e sessenta e nove, divisor de águas na minha existência. Naquela época aconteceram dois fatos de suma importância: ingressei na carreira circense e conheci a mulher que me acompanharia por quase toda a existência. Mas, vamos aos poucos e lentamente, e então, tudo será explicado.
Devo dizer inicialmente que o primeiro circo da era moderna não assemelhava em nada aos atuais, tanto na forma quanto no conteúdo. Ele possuía unicamente um grande picadeiro onde aconteciam diversas formas de apresentação eqüestre. Ali realizei o meu aprendizado inicial nas artes cavalarianas e na vida. Dez anos depois, em sociedade com o ex-escudeiro Philipe Astley e outros companheiros de caserna, procedemos ao cercamento do picadeiro com belíssimas arquibancadas de madeira maciça e torneada, esculpida com o mais legítimo pinho importado das planícies alsacianas e inauguramos o Astley Royal Amphitheatre of Arts, na cidade de Londres, próximo de uma velha ponte. Era de se ter visto as pessoas sentadas nas arquibancadas naquela primeira apresentação! Estiveram presentes os barões de Windsor, lordes de Canterville e os mais charmosos novos ricos que comercializavam especiarias a partir das margens do Tâmisa, bem como outros velhos e jovens aristocratas. As mais felizes pareciam ser as jovencitas. Astley e eu trabalhamos juntos até por volta de 1783, quando de comum acordo decidimos dividir a nossa sociedade, tendo eu partido imediatamente para Paris, onde dei seguimento ao meu trabalho através da sucursal francesa do nosso circo. A partir daí trabalhei em diversos locais, tendo conhecido praticamente todas as pequenas cidades da incipiente Europa burguesa. Mais tarde, viajei pela China, Índia, Japão e por algumas regiões da América do Sul. De volta à França, dediquei-me à criação do circo dos Champs Élysées, conhecido popularmente como o circo de verão, nos idos de 1841 a 1898. Finalmente, trabalhei com a Família Bouglione a partir de 1932. Durante todo este período de minha vida, dediquei-me intensamente à vida circense e à criação dos meus filhos.
De algum tempo a esta parte, entretanto, o peso dos anos fez-me afastar da vida artística. Literalmente, aposentei-me. Mesmo um gnomo deve preparar-se para os frios anos da velhice. Sei que a vida não tarda a se me escapar, como uma lufada de vento retornando ao cosmos, regressando ao ponto de partida, ventania esta que me foi concedida pela divindade e por isto resolvi colocar no papel um pouco desta história, fatos que aconteceram e que acredito de algum valor para aqueles que me amaram e conheceram. Há alguns anos perdi minha esposa e desde então tenho me afastado de todo o convívio. Amigos que tive, abandonaram-me pelo caminho. Ou partiram.
Amália esteve ao meu lado por quase trezentos anos. Com ela tive três filhos, duas meninas e um menino a quem igualmente ensinei os rudimentos da arte circense. No entanto, não trago hoje nenhum deles ao meu lado, presente em minha vida.
Hoje, estou apenas aguardando o desenlace.
Apenas.