Ana Tanque de Guerra

TANQUE DE GUERRA, esse foi o apelido que Ana recebeu de um ex-colega de trabalho. Um dia, durante uma discussão, ele a acusou de ser “uma mal-amada, umazinha que não se abria nem entregava o coração a ninguém”.

-- E ele me disse, exasperado: -- contou-me Ana -- “Tu é um... um... Um tanque de guerra! Um Brucutu! Isso é o que tu é!” -- Sabe que é mesmo? Nunca havia parado pra pensar nisso... Isso eu lhe respondi fingindo refletir. Porém, sem lhe dar chances de contra-ataque, antes de encerrar a discussão e deixar a sala, emendei: “Então cuidado comigo, bichão. Se não sair do meu caminho, eu passo é por cima!”

E passava mesmo, pois bravura é o que não falta a esta criatura. Ninguém que viesse se meter a besta com ela não! Desde pequena aprendera a defender seus pontos de vista, a correr atrás do que queria e achava certo. Nunca, até hoje, deixara-se levar por qualquer conversa besta.

Aprendeu a ler sozinha, aos quatro anos de idade. A mãe tomava as lições de casa da irmã mais velha, com 6 anos na época, e que só conseguiu ser alfabetizada mesmo aos 7. Ana observava as duas e os segredos das letrinhas foram se desvendando para ela.

Livros e hábito de leitura eram coisas inexistentes em sua casa. Porém, Ana, dona de uma curiosidade monstruosa, arrumava aqui e ali, na vizinhança, coisas interessantes para ler. Aos treze, já havia devorado livros que certos universitários chiavam por terem que ler.

Isso até que lhe rendeu muito, pois vários estudantes ‘meia-pataca’ recorriam a ela para que lhes escrevesse resenhas ou preparasse trabalhos de classe. Ana possuía uma vasta e fiel clientela. Graças a esses ‘bicos’, adquiriu vários conhecimentos e ganhou dinheiro.

Os clientes (preguiçosos), por sua vez, recebiam boas notas pelos trabalhos que ‘escreviam’. E assim, aos dezesseis, Ana já havia passado por vários cursos superiores, em diversas áreas, sem nunca ter posto um pé nas instituições de sua cidade.

Fora o fato de estar adiantada na escola -- concluiu o ensino médio aos dezesseis e só não terminou antes porque o sistema freia os mais adiantados --, Ana levava uma vida normal.

O nível dos estudantes que a procuravam para fazer trabalhos era razão, mais do que forte, para que não quisesse fazer um curso superior naquela cidade. Esperava ansiosa seu décimo oitavo aniversário para poder sair de casa e ir correr mundo.

Desde muito pequena, descobrira o poder imenso da combinação leitura, observação e análise:

-- O segredo está na leitura de tudo. O segredo, o segredo do negócio. -- foi o que ela me disse numa de nossas conversas, rindo, como de hábito. Ana sempre foi de tirar suas próprias conclusões e seguir sua própria filosofia.

Quando pequena, dentre os cinco irmãos, Ana foi a quem mais apanhou. Isso, segundo dizia a mãe: “Porque era atrevida e não se calava.” Ana recorda-se:

-- Naquela época, muitos pais só conheciam um corretivo para criança ‘atrevida’. Mamãe me batia muito, Edmar, porque não entendia (ou não queria entender) o que eu dizia. Eu nunca fui de me calar pra coisa errada. O meu padrasto tinha outras mulheres na rua e ela, ao invés de tomar uma atitude contra ele, fazia-se de vítima e descontava sua frustração na gente, só porque éramos pequenos e não tínhamos como nos defender. Eu dizia isso a ela e ela me batia. Batia porque era a verdade. Ficava com mais raiva ainda quando me batia e eu não chorava. Batia, batia, e vendo que eu não chorava, dizia: “Não vai chorar?”. Eu engolia o choro e respondia: “Choro quando chego ao meu limite” e não chorava.

Ana conta que sua relação com a mãe e o padrasto sempre foi problemática. A mãe estava já no terceiro casamento. Ana e sua irmã mais velha eram filhas, cada uma, dos relacionamentos anteriores. Ana ressentia-se da mãe, pois essa autorizava o padrasto a aplicar-lhe ‘corretivos’. Esse, como não gostava de Ana, exagerava nos castigos.

-- Este homem dificultou-me a vida deveras, Edmarzinho – disse-me Ana -- Mas tudo isso só me fez mais forte. Não dizem por aí: “O que não mata, engorda?” Pois é...

Perguntei o que ela hoje sente pela mãe, ao que ela me respondeu:

-- Tento não julgar mamãe. Ela só estava passando adiante o que tinha recebido de vovó, essa sim, uma doida que bem fazia o Estado se a tivesse impedido de ter parido os cinco (pobres!) filhos que teve, sendo minha mãe a única mulher. Sim, mas essa é uma outra história. Maior é Deus que está no Céu pra nos julgar a todos, não é mesmo?

O pai de Ana abandonou o lar quando ela nasceu. Como não era casado oficialmente com a mãe dela, juntar e separar foi tudo o mesmo esforço. Esse homem, um dia dizendo-se arrependido, tendo-se convertido a uma crença cristã, procurou Ana para pedir-lhe perdão. Ela, nessa época com dezesseis, achou até boa a ação daquele que se dizia seu pai. Conta até ter ficado feliz por ele, que pelo menos parecia estar tentando melhorar. Perdoar ela disse tê-lo perdoado; preferiu, porém, manter distância, ao que já estava acostumada. Contou-me que, certa vez, escreveu num diário: “Vivi até aqui sem pai. Para mim está mais do que provado de que não preciso dele mesmo pra nada.”

-- Sim, eu sei que soa cruel, Edmarzinho, mas foi o sentimento da época -- isso ela me disse, arrematando a lembrança do pai.

Homens. Com estes Ana aprendera a lidar desde cedo. Logo na infância, observara que as criaturas ficavam mais tolas ainda diante de mulheres bonitas. Ainda bem que eu não me enquadro nessa categoria... Eu, hein? Cruzes!! Durante a adolescência, em conluio com algumas beldades, Ana perdeu a conta das vezes em que foi de graça ao cinema, com pipoca e lanche incluídos, servindo de companhia às ‘belezas’ para que pudessem ir aos encontros que ela mesma arranjava.

-- Se os cabras abriam a carteira como faziam só para poder trocar uns beijinhos no escurinho, imagina o que não dariam por mais? Imagina... -- falou maldosa, comentando essa passagem. Se bem que as coisas ficavam só em ‘amassos’ inocentes mesmo. Como não pensavam em outra coisa que não fosse casamento, não era difícil convencer as beldades do lugar a saírem com os candidatos.

Certa vez, pensando numa forma segura de ganhar dinheiro, e percebendo o potencial dos negócios que lidavam com sexo, drogas e jogos, chegou a arquitetar um plano: -- que só ficou mesmo no papel -- montar um tipo de bordel-cassino. Depois, achando a idéia imoral, totalmente contra seus princípios, tratou de esquecê-la. Veio a conhecer muitas vítimas de prostituição, pedofilia e abusos para sequer pensar em ganhar dinheiro com uma coisa dessas. Seu lugar é ao lado dos que combatem tais crimes, e não ao lado de quem os explora. Por certo, que hoje em dia uma de suas bandeiras é o combate acirrado à prostituição infantil. Por causa dela, muitas ‘almas sebosas’ já foram parar ou estão esperando julgamento pra ir pro ‘xilindró’.

Mulher po.de.ro.sa taí, viu? Tô pra ver! Ana parece que já nasceu sabendo o que queria da vida... Foi também aos dezesseis que decidiu iniciar-se sexualmente. Isso ela me confidenciou:

-- Pois é, Edmarzinho, eu já havia lido muito sobre o assunto e achava que era hora de fazer experimentos com outras pessoas... Foi uma decisão totalmente consciente. O primeiro escolhido foi um ex-colega de escola. Nem lembro mais o nome dele. Sim, até que eu gostava um pouquinho dele... Já ele... Bem, ele era apaixonado por uma das ‘belezas’ da cidade. Tínhamos, se bem recordo, a mesma idade. Lembro que ele se assustou com a minha proposta e -- lógico! -- aceitou de bom grado. E depois do “veni, vidi, vinci”, com cara de ‘babaca’, veio me dizer: “Vem cá, quem era mesmo virgem nessa história? E eu pensava que o experiente aqui fosse eu!!”

Nessa passagem eu não me segurei, ri que me acabei só do jeito de Ana contar essa “iniciação”. E depois desse, vieram outros experimentos. Ana precisou repetir vários deles pois queria confirmar várias hipóteses, incluindo a de que o sexo bom, entre pessoas normais, estava muito longe da imagem vendida no cinema e na TV. Uma vez confirmadas as hipóteses, decidiu aguardar a boa vontade do amor para poder dar continuidade às pesquisas na área. Um tipo de espera consciente, diria eu. Durante as várias conversas que tivemos, Ana revelou:

-- Desde muito cedo eu era convicta (não me pergunte de onde veio tal convicção) de que era meu direito viver minha sexualidade do jeito que eu bem quisesse, assim como você. E isso sem ser rotulada de piranha, galinha, safada, vadia, ‘sapatão’ e coisas afins. Interessava-me o supra sumo do meu prazer. Jamais confundi sexo com amor. Não, meus interesses na época eram puramente carnais, se assim posso dizer.

Ana tem longos cabelos negros, cacheados. E enquanto trazia às nossas conversas essas lembranças, gostava de brincar com os cachos, enrolando-os entre os dedos. Como não fuma, diria que um tal gesto equivaleria a umas tragadas daquelas bem demoradas. Ana continuou:

-- Os interesses eram também psicológicos, meu nego, pois eu necessitava descobrir do que eu gostava, né? Acho que os homens de minha cidade tinham era medo de mim! Eu os olhava de cima porque achava seu comportamento tão primitivo... Na verdade, eu os estudava de certo modo...

Nesse ponto ela fez uma pausa. No dia em que tivemos essa conversa, estávamos sentados ao ar livre, numa praia. Ana ficou um bom tempo olhando as ondas antes de seguir. Ao que parecia, não lhe era fácil recordar todas essas coisas. Num de seus habituais repentes, soltou uma gargalhada gostosa, renovadora, como de quem vê seus fantasmas desaparecendo nas ondas, lá bem no meio do mar bravio, feito surfistas suicidas, e continuou:

-- Sabe, Edmar, meus melhores amigos sempre foram de outro sexo, assim como você, hoje. Naquela época eu já não me via como mulher, e sim como um ser humano. Para esses meus amigos eu era um igual, um companheiro, jamais olharam para mim como uma parceira em potencial. Isso sustentava nossa amizade. Virei um tipo de conselheira pra eles. Homossexuais, tanto homens quanto mulheres, vinham me procurar para falar sobre seus problemas, suas angústias... Eu os ouvia e tentava ajudá-los a ver com clareza os próprios caminhos. Isso era uma afronta aos guardiões da moral e dos bons costumes da minha cidadezinha -- Provinciana!!... -- Imagine os problemas e as discriminações que sofri por conta desse comportamento...

Sim, posso imaginar... Por isso, ao completar dezoito anos, Ana não pensou duas vezes antes de pôr uma mochila nas costas e partir por esse mundão sem fronteiras.

-- “Fronteira é coisa que só tem na cabeça das pessoas!” -- essa frase, que ela diz ter aprendido com um cientista, um cara que passou a vida cruzando oceanos e organizando expedições, é o que, vez ou outra, gosta de soltar.

Tudo o que Ana precisava cabia direitinho na mochila que ela carregava quando saiu de casa. E tinha a sensação de que não deixava nada para trás. Lembro-me do que me disse: -- Não digo que tenha sido fácil. Porém, passar um tempo (uns seis meses, que seja) vivendo só com o que se pode carregar numa mochila é uma experiência e tanto! Recomendo.

Quando se agradava de um lugar, arranjava um jeito de ficar mais um pouco até que chegasse a vontade de mudar de porto. E assim viveu por muito tempo. Conheceu gente de todo tipo, viu muitas coisas. Sobretudo, aprendeu muito. Diplomou-se também em outras áreas, mas antes disso graduou-se com louvor na Escola da Vida e tornou-se Mestre em Sobreviver com Poucos Recursos. Respeitava e sempre soube fazer-se respeitar. Ao longo de seus 30 bem vividos anos, não havia ainda jamais entregue o coração a alguém. Cria encontrar, no tempo certo, a pessoa certa.

-- É isso, como diz aquela canção que você gosta de cantarolar de vez em quando:

“Tem pedra no sapato de todo mundo

E no mundo tem sapato pra todo pé”

É verdade, gosto muito das canções do César... Talvez porque me façam lembrar do meu Maranhão. Sim, e assim foi. Poucos meses depois, em meio às suas andanças, Ana achou um sapato que lhe casava perfeitamente no pé e estão juntos e felizes até hoje.

Quando lhe pedi autorização para contar sua história, pediu-me uma única coisa:

-- Por favor, meu amigo, deixe claro em seu texto que não desejo que ninguém saia por aí, simplesmente, fazendo o que eu fiz, vivendo como eu vivi. Não incentivo ninguém a seguir meu exemplo, aliás não quero incentivar ninguém a fazer nada, você sabe! Estou cansada de pessoas me acusando e falando mal de mim porque eu sempre tive coragem de viver como acho que tem que ser. Dizem que vivemos num mundo aberto, onde todos são iguais. Balela! Vez ou outra sempre aparece um se metendo a besta, querendo jogar coisas na cara da gente. É preciso ter coragem, ser muito homem mesmo, ter ‘culhão’ de verdade pra ser mulher, viver como eu vivi e assumir a responsabilidade. Liberdade é coisa que não vem sem sofrimento. O mundo está cheio de gente mesquinha, covarde, morrendo de vontade de sair do armário, e que vive sua frustração atirando pedras em gente como eu. Não fui a primeira nem serei a última. Portanto, se alguém quer tirar alguma moral da minha história que seja a seguinte: Leia muito, aprenda a pensar por si mesmo e descubra o que é bom pra si. Viva sua vida com responsabilidade e deixe de ‘aporrinhar’ os outros. Talvez alguns moralistas esperem que eu seja punida de algum modo, assim como a personagem de João Ubaldo Ribeiro, uma ‘porra-loca’ que ele descreve no livro Luxúria, da Série Os Sete Pecados Capitais. Já leu esse livro, não? Sim, sou temente a Deus sim, e só a Ele! E acima de tudo sei que, se tenho vivido de forma errada cabe a Ele e somente a Ele me julgar. Deixe estar, que se eu merecer eu hei de pagar, já se eu não merecer... Só Ele é quem sabe...

* * *

Ana, espero que minha narrativa esteja a contento com a vida intensa que tiveste até aqui. A ti, amiga, tiro meu chapéu! Bem vinda à minha galeria de pessoas interessantes.

Teu amigo de sempre,

Edmar.

* Sapato Pra Todo Pé, canção de César Nascimento, Álbum Quero Fogo.

* * *

Nota da autora:

Este conto é o primeiro de uma série de exercícios que aqui publicarei sob o rótulo: 'Explorando Novas Vozes e Caminhos'.

ERRATA:

Em lugar de “veni, vidi, vinci”, o correto é "veni, vidi, VICI" - veni de venire (vir, vim), vidi de videre (ver, vi) e vici de vincere (vencer, venci).