PROSA MITOLÓGICA - CONTO 10 - O BEIJO DE TÂNATOS

BEIJO DE TÂNATOS

40 GRAUS

O monarca se debate na cama, a febre não cede nem mesmo diante dos mais poderosos ungüentos. Os constantes sacrifícios aos deuses não dão o retorno esperado.

O corpo já magro e o aspecto pálido não escondem as feições de um homem belo e poderoso. As cicatrizes espalhadas são as provas de que este é um guerreiro valente, que desde seus 16 anos está acostumado ao manejo da espada. Conhece muito bem um campo de batalha.

Ela entra alegre, dançando uma música imaginária. É bela e jovem, usa trajes leves e transparentes. Aproxima-se do leito do monarca.

- Meu rei, tenho saudades de ti.

O rei tenta sentar-se em sua cama, mas está fraco demais. Mesmo deitado, ele ainda encontra forças para falar.

- Quem és? Como conseguiste entrar aqui?

Ela sorri. Continua a executar sua dança, indo até o outro lado do quarto, voltando a se aproximar do doente.

- Não me conheces, meu rei? Sou tua companheira há muito tempo, sei muito de tua vida.

- Guardas, guardas...

- Poupa tua energia, meu rei. Eles não vão escutá-lo.

- És uma deusa?

- Ah, quem dera, meu rei. Mas conheço os humores dos deuses, sei suas vontades, suas manias, suas vaidades e os seus desejos mais secretos.

- Como entraste aqui?

- E isso interessa? Não basta saberes que estou aqui? Vamos, meu soberano, lembra-te de tua vida, afinal és o grande rei.

Ele se debate. Sua mente volta para o passado, na distante Pella, local de seu nascimento. Aos treze anos, fora entregue aos cuidados de Aristóteles, o mais famoso sábio de seu tempo. Sob a orientação do mestre estudou: retórica, política, ciências físicas e naturais, medicina e geografia, ao mesmo tempo em que se interessava pela história grega e pela obra de autores como Eurípides e Píndaro. Além disso, se destacou na doma de animais.

Ele lembra do cavalo que o acompanhou por cerca de treze anos. Um animal notável, domado pela coragem e astúcia do então príncipe. E tão importante fora esse companheiro, que fundara uma cidade em sua homenagem.

Lá fora, a lua cresce, iluminando a bela Babilônia, capital do gigantesco império fruto de sua obra guerreira e administrativa. Uma nova onda de frio percorre seu corpo, o rei se debate e sente calafrios. Entre uma onda e outra, sua mente divaga.

- Grande rei, contai-me sobre as lendas de teu nascimento.

- Não dizes ser enviada pelos deuses? Como não sabe dessas lendas?

- Ah, grande monarca, há coisas que são mais válidas quando se ouve da própria pessoa.

Ela se aproxima do rei e o perfume que exala de seu corpo é forte. Não estivesse o monarca em tão grave estado de saúde e o resultado daquele encontro seria diferente, ela sabe disso. O enfermo, novamente acometido pelos calafrios, faz um grande esforço, sua mente retorna a sua terra natal.

Muito mistério cerca seu nascimento. Para alguns, seria filho do próprio Zeus, que chegou a ser flagrado pelo marido de sua mãe durante uma visita noturna. Lenda ou realidade? Ele aproveitou essa lenda e se fez reconhecer como um autêntico deus em toda a Grécia.

A figura paterna fora importante para a formação de seu caráter. O velho monarca passou ao "filho" muitos conhecimentos, ensinando-o a administrar com coragem e sabedoria, garantindo-lhe a melhor educação possível.

Nem tudo foram flores no relacionamento com o pai. Certa feita, ele, embriagado, avançou na direção do príncipe, espada em punho, mas caiu ao chão, sem conseguir levantar-se sozinho. Tal feito provocou uma frase que passou para a História:

- Meu pai quer passar da Europa para a Ásia, mas não consegue passar de uma mesa para outra. (Europa? Ásia? Nessa época?)

Isso lhe rendeu nove meses de afastamento da corte.

Com a mente enevoada pelas lembranças, o monarca enfim consegue dormir.

41 GRAUS

- Meu rei, meu rei...

- Ainda aqui?

- Sim, meu senhor, ainda estou aqui.

O sorriso dela cativa o soberano. A dança que ele presencia é sensual, exuberante.

- Vais ter visitas, meu rei. Seus companheiros de armas querem ver-te.

Um de seus generais entra no quarto e parece não ligar para a jovem que continua dançando e sorrindo. Ele faz um pedido ao rei, que concorda.

A febre aumenta, o corpo maltratado suporta com dificuldades uma luta insana. As ondas de frio e de calor se sucedem ininterruptamente. Os médicos que tratam dele vão, aos poucos, perdendo as esperanças: o diagnóstico é terrível. Tal informação vaza, consternando os fiéis soldados que fazem questão de desfilar perante o homem que os conduziu a tantas glórias e vitórias.

Em um raro momento de lucidez, o rei sorri ao ver seus velhos companheiros de armas. Ninguém parece notar a incansável dançarina, ela parece estar em todo lugar, assim como em nenhum deles. Novas lembranças voltam à mente do enfermo.

Queronéia. Os exércitos reunidos de Tebas e Atenas ousam desafiar as tropas de seu reino. A batalha é sangrenta e renhida, e o ainda jovem príncipe, no comando da cavalaria tem o mais mortal combate em dezoito anos de vida. À frente de suas forças, o conceituado Batalhão Sagrado de Tebas, homens corajosos e poderosos que não tremem diante de nenhum inimigo. Mas os deuses sorriem para o valente herdeiro. A vitória é tão completa e arrasadora que chega a provocar ciúmes no pai.

Porém, a problemática convivência entre pai e filho é violentamente interrompida. Durante uma festa, o pai é assassinado diante de toda a corte. Aos vinte anos, o príncipe se torna o herdeiro do reino e das pretensões do finado rei.

Mas antes de partir para aquela que seria sua grande obra guerreira, um último empecilho. Tebas, sempre ela, se revolta, expulsa as tropas de ocupação e desafia novamente o poder do seu opressor.

A resposta do jovem rei é violenta. Marcha contra os tebanos, toma a cidade e a arrasa. Milhares de sobreviventes são vendidos como escravos, em um claro aviso para qualquer cidade que pretenda se revoltar no futuro.

Com a pacificação da Grécia, é chegado o grande momento. Em um lance de astúcia, ele se faz nomear Estratego da Liga de Corinto e começa a reunir suas tropas. Chegara o momento de empreender a mais fantástica e ousada incursão militar de toda a História.

Com o exército reunido e pronto para marchar, ele se desfaz de seus bens materiais, pois tinha em mente que essa era uma viagem sem retorno. Se não triunfasse, dificilmente voltaria vivo para casa.

Enfim, suas tropas atravessam o Helesponto, a fronteira entre a Europa e a Ásia. À sua frente, um gigantesco império, e conquistá-lo é o desejo do jovem rei. À frente de seus pouco mais de 35.000 homens, enfrenta o adversário em Granico. A desproporção entre suas tropas e as do inimigo é imensa, para cada soldado dele há no mínimo cinco adversários. Mas ele é um predestinado. Com segurança, leva suas tropas à vitória, abrindo caminho para a conquista da Ásia Menor, um feito surpreendente e absolutamente impensável até então.

A vitória o leva à posse de parte do tesouro real do inimigo. Com esses recursos, manda construir um templo para Zeus em Sardes, região da Lídia. Segue seu avanço até a cidade de Górdio, onde uma lenda conta que aquele que conseguir desfazer o famoso nó terá assegurado o domínio da Ásia. Destemido e ao mesmo tempo temerário, ele ergue a espada e com um só golpe corta o nó, e segue sua marcha heróica e destemida.

- És um protegido dos deuses, meu rei. Teus feitos são notáveis, o grande Zeus parece proteger-te.

- Sou descendente dos deuses, como se não soubesses.

42 GRAUS

Ele se debate em desespero no leito. Seus generais à sua volta, impotentes diante da feroz doença que aos poucos mina a resistência do seu rei. Alguns, mais práticos, já se perguntam o que será do gigantesco império sem a presença daquele que o fundou. O príncipe herdeiro ainda é uma criança, incapaz de governar.

- Eles estão preocupados contigo, meu senhor.

- Eu sei, e tu? Também preocupada com meu destino?

- Isso importa, meu senhor?

- Não sei o que os deuses me reservam, e, dito isso, ele sente mais calafrios.

O rei agora delira, sua mente regride ao passado e retorna para as planícies de Isso.

O rei inimigo reuniu um gigantesco exército, tropas de todas as regiões foram convocadas, assim como povos bárbaros e mercenários, muitos destes, gregos. E todos estão decididos a derrotar de vez as pretensões do odiado adversário.

A batalha é dantesca e sangrenta, mas novamente o conquistador consegue vencer e desbaratar o enorme exército do adversário, abrindo caminho para o Oriente próximo.

No Egito se faz reconhecer como faraó, funda uma cidade que será, em futuro próximo, a maior e mais próspera do mundo. Empreende uma viagem até o Oásis de Siwa, onde é reconhecido como filho de Amon-Rá, assegurando o direito de reinar sobre o Egito como um legítimo sucessor dos faraós.

Sem descanso, faz a guerra contra Tiro e Sidon, cidades fenícias que se recusam a reconhecê-lo como soberano.

Enfim, retoma o caminho das batalhas e conquistas, e com pouca resistência entra nas chamadas cidades imperiais: Persépolis, Susa, Babilônia, Écbatana. Mas o inimigo ainda não se deu por vencido, há uma nova batalha a ser travada.

Ele avança e encontra o rei adversário em Gaugamela. O confronto é sangrento e por pouco suas forças não são derrotadas. Porém, a valente cavalaria derrota o adversário nas Arbelas e garante com isso a vitória completa e arrasadora. O rei inimigo foge, deixando para trás sua esposa e filha, que são tratadas com grande deferência pelo vencedor.

A partir daí, o conquistador avança pelo restante do império inimigo, em uma perseguição sem descanso ao rei derrotado. Este é traído e morto pelos seus próprios generais, provocando uma ira insana no vitorioso. E sem se importar com as dificuldades, ele persegue os assassinos e vinga cruelmente o assassinato do adversário.

Envia o corpo do derrotado para a mãe deste, para que possa ter os ritos fúnebres e as homenagens justas.

A guerra deveria findar, mas o conquistador, tomado pela febre da vitória avança para a mítica Índia onde lhe faz combate o valoroso rei Poro e seu enorme exército. Ali é travada a mais dura batalha dentre muitas, seu exército se assusta com os elefantes empregados pelo novo inimigo, mas a vitória mais uma vez lhe sorri.

Então acontece o que ninguém seria capaz de supor. Os soldados se recusam a prosseguir, os anos ininterruptos de guerras e privações, marchas e combates já não são mais suportáveis pelos guerreiros. Ele concorda, relutante, com a petição de sua tropa e retorna a Babilônia, eleita capital do vasto império.

43 GRAUS

- Tua vida foi cheia de aventuras, meu senhor.

- Sim, durante toda minha existência fui combatente, conquistei o inimigo de meu povo, criei uma nova civilização, uni o Ocidente ao Oriente.

- Tenho um pedido a fazer, meu soberano.

- E qual é?

- Meu tempo aqui se esgota, quero um beijo teu.

- Um beijo? Ficaste esse tempo todo aqui para me dar um beijo?

- Não, meu senhor. Fiquei aqui pois fui tua companheira inseparável.

- Falas por enigmas, mulher. Afinal, quem és tu?

- Ah, ainda não me reconheceste? Desde tua mais tenra idade, tenho acompanhado tua vida. Fui tua companheira em Queronéia, Granico, Isso, Gaugamela, Arbelas. Em todos esses locais estive ao teu lado.

- Mas quem és tu, mulher? Fale de vez.

Ela não responde, apenas sorri, se aproxima de Alexandre e lhe dá um longo e profundo beijo. O grande conquistador sente um último calafrio e Tânatos, agora em sua verdadeira aparência cadavérica, sua companheira inseparável nas carnificinas e combates lhe desfere o golpe de misericórdia, levando a alma do grande guerreiro para seu último descanso.