A LENDA DE KÓRA & ALSVID - parte final: Ágatha
A primeira reação de Kóra foi esfregar os olhos para se certificar de que estava enchergando bem. No chão não havia mais corpo algum.
À sua frente, encontrava-se um pássaro majestoso, com penas vermelhas que brilhavam como brasa. Seu bico era longo e possuía grandes asas que se movimentavam com elegância. A cauda do pássaro era comprida e na extremidade, lembrava as pontas de muitas tesouras. A ave começou a cantarolar num tom de alegria, enquanto batia as asas e voava sem sair do lugar.
— Esse pássaro... — disse Kóra.
— Sim, é ele — sorriu Norwell.
— Estenda o braço e chame-o — sugeriu Annabelle aos ouvidos de Kóra.
Receosa, ela estendeu o braço vagarosamente, chamou por Alsvid e instântaneamente o pássaro pousou com delicadeza sobre o antebraço dela. Ao olhar para ele, Kóra não teve dúvida de que a alma de Alsvid permanecia viva; aqueles olhos azuis tinham uma profundidade incomensurável, pareciam ser o espelho de um oceano secreto, as portas de um espírito sereno e bondoso.
— É um Áltrius — disse Annabelle, feliz. — Escolhi transformá-lo nessa espécie de pássaro, pois durante nossa viagem até aqui, ele comentou comigo sobre sua admiração por essas aves raríssimas. Disse amar o canto suave dos Áltrius.
— Ele me entende? — indagou Kóra, chorando agora de alegria.
— Sim, entende. Mas creio que você não possa entendê-lo... pelo menos não na língua dos homens.
— Ele não fala?
— Não — respondeu Annabelle. — Dizem que no início dos tempos eles falavam, mas quando os humanos passaram a caçá-los, os Áltrius renegaram o conhecimento que possuíam e nunca mais falaram a língua dos homens.
— Preciso lhe dizer também uma coisa Kóra — disse Norwell.
— O que?
— Bem, o Morphus Vitae é uma feitiço que poderiamos chamar de “pacto” — explicou Norwell. — O transformado, cria uma ligação com aqueles realizadores do ritual e ele só morre, quando as duas partes que conjuraram o feitiço falecerem.
— Hum...quer dizer que enquanto você e Annabelle viverem, Alsvid viverá. É isso? — perguntou ela, tentando entender a situação.
— Sim — disse Norwell. — Veja bem Kóra. Eu acho que não viverei muito, pois já sou um pobre idoso, mas a Annabelle é uma feiticeira e pode viver por séculos, até milênios. Contudo, se ela for morta, Alsvid consequentemente morrerá também.
— Entendi. Alsvid pode morrer agora, ou daqui há eras.
— Exato. Só não quero tenha frustrações no futuro.
— Sim, entendo...
Kóra estava tão encantada com Alsvid, que nem notou a presença de várias feiticeiras que chegaram. Elas olhavam curiosas para o pássaro, e cochichavam entre si à respeito da beleza da ave.
A guerra acabara definitivamente naquele dia e foi a última vez que feiticeiras e lobos pisaram em Elgartem.
Victor estava morto, e seu corpo fora jogado no mar. Uma corda com uma pedra presa na ponta, foi amarrada no pescoço do “conde” e seu corpo arremessado aos peixes e tubarões.
O Conselho Escarlate assumiu o poder de Elgartem com o próprio apoio de Kóra, que confirmou que não iria se casar com ninguém mais.
As sequelas da guerra foram irreversíveis, mas o mundo procurou se reerguer. Elgartem se recuperou, e junto de asgarnofe, ajudou a reconstruir a devastada Ofidis.
Algum tempo depois do fim da guerra, Norwell visitou Kóra e disse estar deixando Elgartem para trás.
— Sabe, já estou muito cansado, e decidi partir em uma viagem pelo mundo — disse Norwell. — Realmente não sei nem mesmo se vou retornar, então vim me despedir de você, Kóra, e também vim para lhe dar isto — o velho retirou de seu bolso uma pequena carta, com o selo do Conselho Escarlate.
— O que é isto, senhor?
— Hum, digamos que é um presente meu — disse ele sorridente. — Mas não abra já!
— Por que não? — indagou Kóra, enquanto examinava a carta pelo lado externo.
— Porque acho que deve estar mais madura para ler o conteúdo... Mas não pense que estou lhe chamando de imatura! Não me interprete mal. Apenas prometa que vai esperar um tempo, até isso tudo que ocorreu esfriar. Promete?
— Hum... está bem — concordou Kóra.
— Ótimo — disse Norwell, satisfeito com a fácil aceitação da moça — Agora vou-me embora. Cuide-se Kóra!
— Me cuidarei senhor.
Eles se despediram e ela guardou a carta no fundo de um baú de tralhas. Os anos então se passaram, Norwell nunca mais retornou, e ela se esqueceu da carta.
Kóra viveu por muito tempo ao lado de Alsvid, que não desgrudava dela um só instante. Ambos aprenderam a se comunicar em uma língua que eles próprios inventaram, “a língua dos ventos”. Eram companheiros inseparáveis.
Inevitavelmente o tempo castigara Kóra, e ela sentia que seus dias na Terra não se prolongariam muito mais. A idéia de deixar Alsvid a assustava.
Num dia frio de inverno, ela revirava a suas coisas em busca de um velho casaco, quando encontrou a carta esquecida. Não hesitou em abri-la, e em ler o seu conteúdo:
“Querida Kóra,
Apesar de minha partida, pode ter certeza de que meu coração sempre se lembrará de Elgartem. Parto rumo a uma estrada desconhecida, mas deixo com você a esperança de um novo início.
Sei que ama Alsvid, e sei que apesar de ser agora um Áltrius, ele também te ama. Encaro a morte como um novo começo, mas recomeçar em vida também é possível, sendo uma atitude louvável e corajosa.
Existe em Asgarnofe, uma curandeira que tem o domínio do Morphus Vitae. Ela pode junto de Annabelle conjurar esse encantamento.
Deixo com você a chance de escolher um caminho diferente a se seguir. Espero que reflita, e que a sua escolha seja a mais correta.
* Margareth Lebouf, residente em Asgarnofe, no condado de Trynia, esquina da rua Aurora com a alameda Boreal *
Ao terminar de ler a carta, Kóra encontrava-se levemente confusa, mas gradualmente foi compreendendo o raciocínio de Norwell.
Ele dara a Kóra a chance de escolher entre ficar ou partir; morrer em breve, ou viver pelo resto dos seus dias ao lado de Alsvid, também na forma de um animal.
A sua decisão não tardou em ser feita, e ela saiu à procura de Margareth. Kóra viajou a Elgartem. Chegou ao endereço escrito na carta, e se deparou com uma casinha muito humilde, com aspecto abandonado.
Kóra bateu à porta, e uma jovem moça lhe atendeu
— Olá, eu gostaria de falar com Margareth Lebouf — pediu Kóra educadamente.
A jovem ficou com o semblante triste, com o olhar por um momento distante, como se recordasse de algo infeliz.
— Bem — disse finalmente. — Ela é a minha mãe, mas ela... ela já faleceu.
— Ó, sinto muito querida — disse Kóra, não conseguindo esconder seu desapontamento.
— Não, tudo bem. Mas a senhora conhecia minha mãe?
— Não, não conhecia, mas um amigo me indicou ela. Eu precisava que ela me desse uma ajudinha...
A moça estava encantada com o pássaro pousado sobre o ombro de Kóra, parecia estar feliz em ver Alsvid, apesar de nunca tê-lo conhecido.
— É incrível o seu Áltrius — disse ela. — Como se chama?
— Alsvid. E como você se chama? — perguntou Kóra.
— Ágatha — disse a moça, olhando estranhamente para Kóra. — E a senhora, como se chama?
— Sou Kóra, vim de Elgartem.
Ágatha fitou a senhora, como se estivesse reconhecendo-a.
— Senhora, será que podria entrar um momentinho?
— Entrar? Hum.... está bem — concordou Kóra para não fazer uma desfeita para a jovem.
A casa praticamente não tinha móveis. Ágatha morava sozinha provavelmente. Ela era muito pobre, e isso se refletia em suas roupas surradas, e em seu semblante ligeiramente tristonho.
Assim que elas entraram, Ágatha começou a revirar um monte de pergaminhos empoeirados até achar o que queria. Ela leu atentamente o que estava escrito e não teve dúvidas.
— Morphus Vitae — disse Ágatha de repente.
— O que foi que disse? — perguntou Kóra surpresa.
— Morphus Vitae — repetiu ela. — Minha mãe antes de morrer escreveu nesse pergaminho sobre você. Parece que um senhor chamado Norwell pediu para que ela me instruísse, para te ajudar, caso ela morresse antes de você procurá-la.
— E como sua mãe te instruiu?
— Ela me ensinou ao encantamento do Morphus Vitae.
— Fala sério? — indagou Kóra.
— Sim senhora.
— Eu preciso que venha comigo — disse Kóra.
— Pra onde vamos?
— Para Skog.
Ágatha deu um pulo. Inicialmente rejeitou tal convite.
— Eu não posso ir a Skog! Isso é loucura! — afirmou ela.
— Mas é necessário uma feiticeira para realizar o encantamento.
— Realizar o encantamento? — indagou Ágatha, incrédula no que ouvira. — Eu pensei que a senhora só iria querer aprender o feitiço, afinal, quem a senhora quer transformar em animal?
— Quero transfomrar a mim mesmo — disse Kóra, com a voz calma.
Ágatha ficou pasma.
— E por que a senhora iria querer isso?
Com muita tranquilidade, Kóra explicou tudo que ocorrera, e fez uma propósta irrecusável: se Ágatha ajudasse no ritual do Morphus Vitae, ela poderia ir morar no castelo em Elgartem, que passaria a ser seu.
A moça pensou muito, pois estava impactada pela propósta. Depois de muitos minutos de refelexão, ela concordou em ajudar.
Já em Elgartem, Kóra surpreendeu a nação inteira, ao anunciar que partiria em uma viagem sem volta, e que aquela jovem mulher seria a nova moradora do castelo.
No dia seguinte ao anúncio polêmico, Kóra partiu com Alsvid e Ágatha rumo a Skog.
Elas chegaram naquela região desolada e se dirigiram até a caverna onde Kóra estivera anos antes.
— A senhora tem certeza de que é seguro? — indagou Ágatha temerosa.
— Acalme-se Ágatha, a líder delas é minha amiga.
Antes de entrarem na caverna, Annabelle apareceu. O tempo não havia mudado em nada a feiticeira, que continuava bela e juvial. Ágatha ficou pálida ao vê-la.
— Kóra? — indagou Annabelle. — Você veio pelo motivo que imagino?
— Sim, quero me submeter ao Morphus Vitae — disse Kóra com convicção.
— Tem certeza mesmo? Sabe que depois de feito, não terá volta.
— Sim, estou ciente de tudo Annabelle — disse Kóra irredutível. — Eu quero que me transforme num Áltrius, pois sinto que minha vida já está se esvaindo, e não quero me separar de Alsvid. Assim, eu e ele morreremos juntos no dia em que você se for Annabelle. Em vida, permaneceremos sempre juntos.
— Está bem... — disse Annabelle, meio a contra gosto. — Mas quem é esta? Ela que veio pra ajudar? — perguntou a feiticeira, apontando para Ágatha.
— Sou Ágatha. Eu vim para ajudar.
— Se conseguir... — disse Annabelle, um pouco indiferente.
— Estou certa de que ela conseguirá — disse Kóra.
Dentro da caverna Kóra se sentou sobre uma pedra, e Ágatha e Annabelle deram as mãos.
— Fique calma Ágatha — disse Annabelle, notando o nervosismo da moça. — Eu não mordo!
Ágatha acabou soltando um sorrisinho, e logo já estava se sentindo mais à vontade.
O ritual então teve início, seguindo o mesmo padrão do ritual de Alsvid. Kóra ficou tensa, imaginando se daria tudo realmente certo. Então elas acabaram de proferir as palavras, e se afastaram, carregando Alsvid.
Inicialmente Kóra não sentiu nada, mas logo seu corpo pareceu estar em chamas. Ela tentava gritar mais não conseguia. Então tudo ficou escuro e Kóra sentiu como se o seu corpo estivesse sendo dilacerado por inúmeras lâminas, e ela nada podia fazer.
Uma sensação estranha lhe tomou de assalto. Sua pálpebras ficaram pesados e ela começou a adormecer; antes disso escutou novamente aquela bela melodia que ouvira anos antes. Ela então perdeu a consciência.
Quando o clarão cessou, Ágatha e Annabelle se adimiraram com a bela ave que Kóra havia se tornado. Era muito parecida com Alsvid, mas suas penas eram azuis, e seus olhos verdes como duas esmeraldas.
Rapidamente Alsvid foi ao encontro de sua amada, que agora se tornara também um Áltrius. Ambos batiam suas asas e cantavam, alegres. Ficariam juntos talvez por séculos.
Ágatha retornou a Elgartem, onde passou o resto dos seus dias, e onde também constituiu uma família. Annabelle continuou como a líder das feiticeiras de Skog, e nunca mais saiu daquela terra.
Kóra e Alsvid tornaram-se livres, vivendo junto a natureza, e desfrutando diáriamente um a companhia do outro. De vez em quando eram vistos por andarilhos, mas pouco se soube deles com o passar do tempo. Aos poucos se tornaram uma lenda que era contada para as crianças antes de dormirem: A lenda de Kóra e Alsvid.