A LENDA DE KÓRA & ALSVID - parte 12: O pacto

O sol já tinha nascido, quando eles se aproximaram de Elgartem.

— Estamos atrasados — disse Annabelle. — Mas isso não vai nos atrapalhar.

A feiticeira ordenou que dez róz cercassem toda a fronteira de Elgartem, e impedissem a entrada de qualquer exército. Outros quinze foram ficando pelo caminho, em pontos estratégicos e os quinze que sobraram se aproximaram da região do castelo.

Os lobos derrubaram as cinco torres de vigilância, causando um grande estrondo. O barulho alertou os soldados que estavam próximos ao castelo, e logo várias trombetas soaram.

— Alsvid — disse Annabelle. — Quero que vá buscar Kóra.

— Como vou saber onde ela está?

— Eu sei — disse o lobo que o levava. — Em Skog você estava com o cheiro de uma mulher, e não era nenhuma das feiticeiras. Consigo sentir o cheiro da rainha, que está na parte oeste do castelo.

— Ótimo — disse Annabelle se afastando com Turlyson. — Vá buscá-la, que em breve vou ao seu encontro.

Assim que eles se distanciaram, Alsvid olhou para o lado e viu uma saraivada de flechas cair sobre o grupo de feiticeiras montadas nos lobos. Elas se protegeram com seus escudos e os lobos apenas chiaram; era como se as flechas fossem agulhas que os espetavam.

O lobo de Alsvid deu uma volta por trás do castelo e desceu então as montanhas a oeste. O róz parou.

— Ela está naquele quarto — disse o animal. — Mas sinto o cheiro de um homem... se não me engano, é o mesmo cheiro do filho de Éron.

— Victor?

— Creio que sim.

— Então temos que tirá-la de lá! — gritou Alsvid.

— Segure-se firme em mim — ordenou o lobo.

Numa patada poderosa, o róz derrubou a parede e expôs o quarto onde estavam de fato Kóra e Victor. A rainha ficou pálida.

O róz colocou a cabeça para dentro do quarto, e Alsvid se revelou.

— Estou aqui Kóra.

— Alsvid? — disse Kóra. — Que susto!

Victor foi se afastando lentamente, e o lobo foi o acuando.

— Acho que o seu joguinho acabou, Conde falsário — disse Alsvid.

Nesse momento Victor reconheceu o rapaz.

— Você! — berrou ele. — Então você é Alsvid? O lacáio insubordinado da torre do sol!

— Sou eu sim — confirmou — e eu vou ter o maior prazer em te expulsar deste reino.

Num movimento rápido Victor retirou do bolso um frasquinho que pegara logo que vira a invasão, e o arremessou contra o chão aos pés do róz. O vidro quebrou e a mariposa saiu voando rapidamente.

O lobo se afastou bruscamente - derrubando Alsvid -, e em seguida o animal caiu paralisado no pátio do castelo aos pés das montanhas.

Kóra foi ao encontro de Alsvid.

— Você está bem? — perguntou ela.

— Sim, não se preocupe foi só uma queda — disse o rapaz se levantando. — Quem deve se preocupar é esse covarde.

Alsvid foi em direção a Victor e lhe aplicou um soco.

— O que foi — disse Victor com um sorriso, logo após ser golpeado. — Não gostou de cair do “cavalo”?

Victor então revidou o golpe, e logo eles estavam se engalfinhando, com socos, chutes e pontapés.

Eles rolaram no chão e sairam para o corredor. Kóra gritava inutilmente por ajuda.

A moça pegou um vaso do corredor e atingiu Victor, que soltou Alsvid.

— Sua cadela! — esbravejou ele, dando um soco em Kóra que caiu no chão com o nariz sangrando.

— Ah, seu covarde! — gritou Alsvid.

Eles novamente entraram em luta corporal e em um momento infeliz, Victor conseguiu alcançar um punhal exposto num pedestal no corredor, e atingiu Alsvid no abdômen.

O rapaz levou as mãos à barriga e caiu no chão sangrando muito. Kóra gritou desesperada tentando socorre-lo, mas Victor a impediu, agarrando-a pela cintura e a colocando sobre o seu ombro esquerdo.

— Me larga seu monstro! — disse ela esperneando.

— Cala essa boca! — gritou Victor.

Ele rapidamente saiu daquela área do castelo, levando Kóra consigo.

No lado de fora, Annabelle se afastara, mas a batalha continuava.

Quase todos os róz tinham sido imobilizados por inúmeras mariposas que foram soltas pelos guardas do castelo. As feiticeiras que caiam dos lobos, se levantavam e já partiam contra os guardas.

Nos céus a batalha também estava sangrenta. Dragões montados por soldados e feiticeiras colidiam no ar, brigavam, se estraçalhavam. Muitos caíram de ambos os lados.

Por serem mulheres muito belas e com uma aparência frágil, não seria errado dizer que as feiticeiras foram subestimadas. Quando foram notar que a aparência delas havia lhes enganado, já era tarde demais para os homens de Elgartem.

Percebia-se aos poucos que as feiticeiras estavam se tornando vitoriosas, pois a cada feiticeira derrubada, vinte homens eram eliminados. Os soldados recuaram temerosos e as feiticeiras invadiram os calabouços do castelo, onde trinta feiticeiras agnósticas encontravam-se presas.

Elas foram libertadas, e ajudaram as feiticeiras de Skog a reanimar os lobos que encontravam-se imóveis como estátuas.

No interior do castelo, Victor andava apressado pelos corredores vázios, onde ouvia-se apenas os gritos de Kóra pedindo socorro.

Quando Victor virou à direita em um dos corredores principais, deu de cara com Annabelle.

— Onde vai com tanta pressa? Eu poderia pensar que está fugindo — disse Annabelle sarcástica.

— Saia da minha frente, sua bruxa! — disse ele.

— Coloque Kóra no chão.

— Está bem.

Victor a colocou no chão, mas aplicou-lhe uma gravata e pôs o punhal no pescoço de Kóra.

— Pronto, está no chão — disse Victor. — Agora deixe-me passar ou eu mato ela.

— Mate ela, que eu o mato — ameaçou Annabelle.

Victor riu friamente:

— Acho que não está em condições de negociar. Mesmo que me matasse, eu morreria como um herói, tentando salvar a jovem rainha e o Conselho Escarlate iria ordenar que todos os exércitos do mundo fossem contra seu povo imundo.

Annabelle se irritou com o que Victor disse, mas não se moveu do lugar.

— Tem certeza que morreria como um herói? — questinou a feiticeira.

— Mas é claro! — exclamou ele. — Esse conselho de velhos está em minhas mãos, e eles nem ao menos desconfiam de tudo que eu fiz. Matei o rei embaixo de seus narizes e eles nem perceberam.

Annabelle começou a rir. Victor estranhou o comportamento da feiticeira.

— Não é momento de rir, bruxa — disse ele. — Por que está rindo?

Ela respondeu a pergunta abrindo uma porta ao lado, de onde emergiu metade dos homens do Conselho Escarlate, todos muito irritados. Victor arregalou os olhos.

— Estávamos ouvindo tudo — disse Norwell. — Essa feiticeira ameaçou nos matar se não viéssemos com ela, mas agora tenho é que agradeçê-la. Seu reinado acaba aqui Victor.

— Se afastem! — gritou ele. — Vocês não vão me tirar a coroa, pois se fizerem isso, eu mato ela!

Victor apertou o punhal contra o pescoço de Kóra.

— Largue ela — disse Annabelle. — Se não o fizer, acabará como o seu pai!

— E você acha que eu terei um fim diferente se eu a largar?

De repente Alsvid apareceu cambaleando e atingiu as costas de Victor com uma lança que pegara de uma amardura do castelo. O homem soltou um grito horrendo de dor.

— Não — disse Alsvid. — Eu te mataria de qualquer jeito.

Kóra conseguiu se desvencilhar e caiu no chão, sendo rapidamente socorrida por Norwell.

— Isto é pela minha mãe — disse o rapaz.

Alsvid empurrou ainda mais a lança, que atravessou o coração de Victor. O homem tentou dizer algo, mas suas forças se esgotaram e ele tombou morto.

— Você está sangrando Kóra — disse Norwell preocupado, linpando o nariz dela com a manga de suas vestes.

— Não me importo. Quero que vejam Alsvid!

O rapaz ajoelhou-se ao chão. Estava pálido e tremia com violência; havia sangrado muito e suas roupas estavam tingidas de vermelho. As pernas de Alsvid perderam a força para se sustentarem, e ele caiu no chão, gemendo de dor.

— Alsvid! — Kóra foi até ele. — Aguente firme!

— Está doendo — disse ele, já com a voz enfraquecida.

— Ajudem ele! — berrou Kóra se debulhando em lágrimas, enquanto segurava firme uma das mãos do rapaz.

Norwell e Annabelle se aproximaram. O velho mediu o pulso de Alsvid e a expressão no rosto de Norwell não foi nada boa.

— Está com o pulso fraco — disse Norwell, retirando seu casaco. — Precisamos tentar estancar o sangramento.

Norwell enrolou o casaco e o pressionou contra o ferimento na barriga de Alsvid, mas o sangramento não parava.

— Tente ficar acordado Alsvid — disse Annabelle verificando as pupilas dele. — Tente ficar acordado e fale conosco.

— Não... Não consigo — disse ele com dificuldade. — Estou ficando sem ar.

— Aguenta firme! — pedia Kóra. — Você não pode me deixar... eu te amo!

— Eu também te amo...

O tom de voz dele se assemelhava a um sussuro, de tão fraco que o rapaz se encontrava. As pálpebras de Alsvid queriam se fechar. Sua respiração ficava cada vez mais fraca.

— Faça alguma coisa Annabelle! — disse Kóra em desespero. — Não pode deixá-lo morrer!

A feiticeira colocou as mãos sobre o peito de Alsvid, mas nada fez.

— Eu não posso fazer nada — disse Annabelle aflita. — A alma dele está se esvaindo! Não posso impedir que a alma dele abandone este corpo. Infelizmente não tenho poder para isso.

Kóra arrancou o broche que Annabelle lhe dera e apontou para ele:

— Você jurou que se eu precisasse, iria me ajudar. Agora eu preciso de sua ajuda!

— Um Voto Fiél? — indagou Norwell. — Olhando curioso para o broche.

— É sim — confirmou Annabelle. — Mas acho que perderei meus poderes... Não consigo pensar em nada!

Annabelle tentava raciocinar, mas parecia que os pensamentos fugiam como borboletas.

— Vamos Annabelle! Salve-o! Salve o Alsvid — gritava Kóra. — Você tem que me ajudar!

A feiticeira se desesperou, pois sentia o poder do Voto Fiél agir: cada vez que Kóra clamava por ajuda, Annabelle sentia como se um pedaço de seu coração fosse arrancado a força

— Morphus Vitae — disse Norwell, como se pensasse alto.

Annabelle o encarou séria. Em seus olhos podia-se enxergar uma insegurança como nunca vista antes.

— Impossível — disse ela. — Não conseguiria fazê-lo. É um dos mais poderosos feitiços que existem.

— Sei disso. Eu estava presente quando a lendária feiticeira Sol conjurou o feitiço que transformou Éron num róz. Estou certo de que é capaz de executar tal encantamento.

— Mesmo que eu seja capaz... esse feitiço só pode ser feito em conjunto com um humano. E acho que não há nenhum humano por aqui que saiba esse encantamento.

— Está enganada, eu sei — disse Norwell. — Eu e Sol, realizamos o feitiço que transformou Éron. Lembro-me perfeitamente de cada verso...

Ele foi interrompido por Kóra, que nesse ponto praticamente se afogava no próprio choro.

— Parem de conversar! Ele está morrendo!

— Está bem — disse Annabelle para Norwell. — Faremos isso.

— Kóra — disse Norwell. — Não vamos poder salvá-lo, não como o Alsvid que você conheçe.

— Como assim? — indagou ela.

— Vamos usar um feitiço antigo para transformá-lo em um animal.

— O que?

Para Kóra, o que Norwell acabara de dizer era um absurdo. Transformá-lo em um bicho?

— Exatamente Kóra — Annabelle tentou explicar rapidamente. — Não posso impedir que esse corpo que foi corrompido morra, pois a linha da vida humana de Alsvid já se rompeu. Entretanto, se eu transformá-lo em uma criatura não humana antes que dê o seu último suspiro, a alma dele não vai conseguir abandonar nosso mundo.

Kóra olhou para Alsvid. Sentiu seu próprio coração se apertar. Não queria perdê-lo.

— Faça, rápido — disse Kóra.

Rapidamente Norwell e Annabelle deram as mãos em volta de Alsvid, e começaram a murmurar alguns versos na língua das feiticeiras. Ambos pareciam ter entrado num transe.

As velas do corredor se apagaram, deixando o corredor numa penumbra. Os dois então se calaram.

— Acabou? — perguntou Kóra aos soluços, não notando nada de diferente.

Annabelle e Norwell se afastaram de Alsvid, que continuava a agonizar no chão.

— Sim... acabou — disse Annabelle.

Os três ficaram olhando para o rapaz, que não demorou para se contorcer bruscamente e dar um longo suspiro. Depois ficou imóvel. Kóra se decepcionou.

— Ele morreu! — disse ela não acreditando no que via.

Inesperadamente Norwell e Annabelle seguraram Kóra e puxaram-na para longe do corpo.

— O que estão fazendo? Me larguem.

— Devemos nos afastar — disse Norwell.

— Nos afastar? Por que?

De repente, no lugar onde estava o corpo de Alsvid, surgiu uma luz muito forte que aumentou a sua intensidade e ofuscou a visão de todos.

A luz branca se mutou, dando origem a outras cores que se entrelaçavam e emitiam notas musicais tão belas e irreais, que os ouvidos de Kóra não conseguiam entender. Entretanto, ela ficou hipnoztizada pela melodia que ecoava pelos corredores vázios.

O brilho pôde ser visto de fora do castelo, e há milhas dali, era possível ouvir a melodia perfeita que enchia de esperença e paz o coração daqueles que a ouviam. O ódio e a intolerância desapareceram, e Elgartem se encheu de vida como jamais se vira.

A música foi diminuindo, até se tornar inaudível para simples ouvidos humanos. As cores desapareceram, e aquele grande clarão cessou.

Os três estavam zonzos, bastante aéreos. A visão deles encontrava-se estranhamente embaçada, mas lentamente foi voltando ao normal. Ao olhar para o lugar onde estava o corpo de Alsvid, Kóra ficou surpresa e ao mesmo tempo encantada.

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 02/08/2009
Reeditado em 02/08/2009
Código do texto: T1732735
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