A LENDA DE KÓRA & ALSVID - parte 10: O Voto Fiél
— Victor esteve aqui há alguns meses — disse Annabelle —, e me propôs uma aliança. Disse que odiava as fadas, que temia o armamento que estava correndo, e por causa disso gostaria de tirá-las de Asgarnofe. Ele disse que em breve se casaria com a princesa de Elgartem, mas ainda não era poder suficiente. Precisava se tornar rei...
Kóra interrompeu aos berros a feiticeira:
— Foi você... Então foi você quem deu o veneno a victor!
— Ainda não terminei Kóra! — disse a feiticeira com o olhar triste. — Pois bem, Victor disse que se o rei ficasse doente, ele poderia substituir Ottavius e assim teria poder para incentivar o fim do acordo de uso de seres sobrenaturais. Perguntou se eu tinha algo que deixasse o rei de Elgartem doente, apenas pelo tempo necessário para que colocasse seu plano em prática. Então lhe dei um frasquinho de Friga, uma substância muito poderosa. Aconselhei ele a utilizar apenas uma gota, uma vez por semana e por um periodo não maior que um mês... Mas parece que não foi o que ele fez.
— Me diga, como foi que pôde confiar nele? — disse Kóra indignada. — Por que deu esse veneno para ele usar em meu pai? Me diga, me diga!
— Não era para as coisas serem assim... — disse Annabelle, com o olhar baixo. — Era um acordo que seria lucrativo para mim. Mas ele traiu a nossa confiança e continua um aliado firme das fadas.
— Você entregou o futuro de nosso mundo nas mãos de Victor, por causa de uma rivalidade tola?! — Kóra bufou.
— Agora não é momento de discutirmos tais motivações. Te trouxe aqui para me ajudar.
— Ajudar você?
— Sim — disse Annabelle. — Mas antes de lhe dizer do que se trata, quero que veja isso.
Annabelle moveu os braços no ar, e apareceram algumas luzes opacas que começaram a tomar forma.
— Aqui vocês poderão ver tudo que não estava ao alcançe de vocês — disse Annabelle.
Na parede da caverna apareceram imagens da guerra. Kóra ficou em silêncio, observando tudo atentamente.
Viu milhares de soldados serem mortos, moradores tendo suas casas destruidas e famílias inteiras sendo dizimadas.
As chamadas feiticeiras Agnósticas – aquelas que passaram a viver entre os humanos -, foram atacadas e assassinadas pelas fadas, que estavam armadas com lanças e espadas.
— As fadas foram armadas por Elgartem, a pedido de Victor — disse Annabelle, cuja a voz fraquejou durante um momento de comoção — Está matando outras de nossa raça...
As imagens continuaram pipocando e Kóra viu o róz chegar de terras distantes para atacar Ofidis.
— Esse lobo que vocês vêem — disse Annabelle —, chama-se Éron. É o pai de Victor, que há tempos foi enfeitiçado por ter cometido graves crimes.
— Eu pensava que era tudo uma lenda. — disse Kóra.
— Saiba que não Kóra, mas não se culpe... a maioria acha que ele está morto. Apenas entre os miseráveis de Asgarnofe a história de Éron se mantêm forte.
“Victor era criança quando isso aconteceu e foi adotado por uma outra família de condes. Ele trocou de identidade, e por isso não se associa o nome dele ao pai; eu mesmo não soube de imediato de quem se taratava. Apenas depois de uma longa pesquisa descobri quem era.
— Se isso que está dizendo é verdade, então...
— Sim, sim — interrompeu Annabelle. — Nos últimos anos ele enviou mensagens ao pai e contou o que pretendia fazer. Éron foi enviado a Ofidis, a pedido de Victor; o róz mestre nos avisou da visita de um humano a Musfélrren há algum tempo, e eu não tive dúvida de quem se tratava.
“Mas o róz não estava à sua procura... ele queria matar Alsvid provavelmente, pois não é do interesse dele que você morra.”
— Pois eu quase morri, se não fosse o Alsvid — disse Kóra.
— É, mas deve agradecer a nós também — disse Annabelle.
— Vocês?
— Exato. Assim que soubemos da visita de Victor a Musfélrrem e da partida de Éron, fomos dar uma lição naquele lobo insolente, e é claro, fomos salvar você.
Kóra e Alsvid se entreolharam. O rapaz manteve-se calado em seu canto.
— Então foram vocês que desapareceram com o lobo! — disse Kóra entendendo tudo. — Mas o que fizeram com ele? Mataram ele?
— Bem...
Há centenas de quilômetros dali, em pleno Ártico, Éron encontrava-se perdido num enorme deserto de gelo. O lobo uivava, choramingava, e tremia sem parar devido ao frio congelante. “Malditas feiticeiras!” — resmungava o lobo, enquanto caminhava com dificuldade em meio a neve.
— Bem, não o matamos — sorriu Annabelle. — Só o enviei para um lugar bem exótico... ele vai sobreviver.
As feiticeiras começaram a rir e nem Kóra nem Alsvid conseguiam entender o porquê disso.
A euforia delas acabou quando as luzes tomaram outras formas, e revelaram um calabouço onde algumas feiticeiras agnósticas eram mantidas vivas.
— Eu reconheço esse lugar! — exclamou Kóra.
— Sim, é o castelo em Elgartem — disse Annabelle, confirmando o pensamento de Kóra. — Victor está mandando prender e torturar algumas fadas agnósticas. Ele está tentando descobrir nossos pontos fracos, pois creio que quer acabar conosco.
— Por que ele faria isso? — disse Alsvid, rompendo seu silêncio. — Ele não fez até um acordo com vocês?
— Sim, mas foi tudo uma trapaça — disse Annabelle olhando meio torto para Alsvid. — Ele nos usou, como usou a você e a muitos outros. Victor nos odeia pelo que uma de nós fez ao pai dele. Também odeia Ofidis e Elgartem, pois foram as duas nações que condenaram Éron. Isso não trata-se apenas de um joguinho de poder, trata-se de vingança. Eu não deveria ter feito um acordo com ele, mas fui tentada pela propósta daquele traidor...
— Você então tem noção de que tudo isso começou por sua aceitação aos planos mesquinhos de Victor — disse Kóra, com rancor na voz.
— Sim, tenho.
— E por que então não faz nada?
— Eu farei, mas preciso de sua ajuda Kóra — disse Annabelle, demonstrando-se um pouco envergonhada em pedir algo à moça.
— Por que acha que eu vou me aliar a você?
Annabelle apontou para a parede, onde as luzes se tornaram escuras e melancólicas. Naquele momento viu-se a invasão que ocorrera na casa de Valquiria: Victor na procura incessante por algum pertence de Alsvid para entregar a Éron; as tochas jogadas na velha casa; o incêndio; os últimos minutos de vida de Valquiria, que até o último instante lutou pela sobrevivência...
Ao verem a cena, Kóra e Alsvid ficaram extremamente chocados com a crueldade de Victor. Não acreditavam no que viam.
— Ele não pode ter feito isso! — gritou Alsvid, desesperado.
— Valquiria... — murmurou Kóra com algumas lágrimas escorrendo pelo seu rosto.
— Ele não vai parar — disse Annabelle, comovida (dizem que foi a primeira vez que uma feiticeira se comoveu com uma vida humana). — Tanto você como eu, estamos sendo afetados por ele. A única maneira de pararmos Victor, é se trabalharmos em conjunto. Sozinhos, nenhum de nós vai resistir ao poder dele, que parece crescer cada vez mais.
— De que forma pretende que eu a ajude?
Annabelle hesitou em revelar o plano, mas enfim abriu o jogo.
— Quero que se entregue — disse a feiticeira
— O que? — Kóra não acreditava no que acabara de ouvir.
— Se você se entregar, a guerra vai parar...
Kóra pegou uma pedra no chão e a arremessou com raiva contra a feiticeira, que conseguiu se esquivar.
— Como tem coragem de me propor isso? — disse Kóra.
— Se você se entregar, a guerra vai parar e as tropas vão relaxar. Victor se sentirá vitorioso, e é na confiança dele que encontraremos nossa vitória. Lembre-se que neste exato momento, quase todo o contigente de Elgartem encontra-se em campo de batalha, e se a guerra acabar, ainda vão demorar dias para que todos retornem. Você se entregará, então vamos te resgatar e destronar Victor.
Kóra agora entendeu o plano de Annabelle, mas ainda estava insegura. O plano era muito arriscado ao seu ver.
— Não sei... e se der errado?
— Bem, então o nosso destino será jogado aos ventos — disse Annabelle.
— Você não disse que Elgartem está vázia? — indagou Alsvid, ainda com os olhos avermelhados pelo choro contido. — Não seria possível invadir agora?
— Eu não disse vázia, só disse que a maioria dos soldados está fora. Mas esses que ficaram não me preocupam...
— E então? Por que não invadir agora?
— Não sei se você sabe, mas Victor pediu a Asgarnofe um pequeno apoio. Uma legião de fadas está em Elgartem, fazendo a segurança do rei até que a guerra acabe. Invadir agora seria suicídio, e a guerra continuaria da mesma forma. Entenderam os meus planos? Desarticular as defesas do inimigo, fazendo ele pensar que ganhou o jogo.
— E será que posso de fato confiar em você? — perguntou Kóra, desconfiada.
Annabelle proferiu algumas palavras, e na palma de sua mão surgiu um pequeno broche em forma de um beija-flor.
— Isto é um Voto Fiél — disse a feiticeira. — É um juramento meu de que se você precisar da minha ajuda, eu terei que ajudá-la. Se eu quebrar o juramento, perco os meus poderes.
A feiticeira prendeu o broche na roupa de Kóra.
— Voto Fiél... — disse Alsvid pensativo. — Já ouvi falar disso alguma vez.
— Sim, é provável — disse Annabelle. — Como sabe, as feiticeiras agnósticas não tem poderes... São aquelas que fizeram um Voto e não puderam cumprir. Me tornarei uma delas se eu te desapontar Kóra.
— Está bem — disse Kóra. — Eu te ajudarei, mas acho que eu preciso de uma ajudinha sua agora.
Ela mostrou o tornozelo inchado a Annabelle, que simplesmente o tocou e em segundos Kóra já se encontrava totalmente curada.
— Eu te levarei de volta a Ofidis em duas horas, certo — disse Annabelle. — Agora gostaria que descansassem e comessem algo.
Algumas feiticeiras trouxeram frutas e água fresca, e logo em seguida se retiraram, deixando Kóra e Alsvid a sós.
— Seu tornozelo está melhor? — indagou Alsvid.
— Não sinto mais nada!
Houve um momento incômodo de silêncio entre os dois, até um deles falar.
— Sabe Kóra, quando isso tudo acabar... — começou Alsvid. — Bem, foram dias terríveis esses, e quando isso tudo acabar quem sabe poderiamos...
— Se poderiamos ficar juntos? — disse Kóra, decifrando o pensamento dele.
— Caso você não se importar em eu ser quem sou.
A resposta de Kóra veio em forma de um beijo que ela deu em Alsvid. Por alguns minutos eles ficaram abraçados, viajando naquele momento único.
— Eu te amo Alsvid... — disse Kóra. — Você tem sido muito importante pra mim.
— Eu digo o mesmo Kóra.
— Independente do que aconteça apartir de agora, quero que saiba que nunca vou me esquecer de você.
— Não se preocupe Kóra — disse Alsvid beijando-a. — Isso não é uma despedida, disso pode ter certeza.
Depois de passadas as duas horas, Annabelle retornou sozinha.
— Está pronta Kóra? — perguntou ela.
— Estou, mas tenho uma pergunta... Onde Alsvid entra nessa história toda?
— Ah, abrirei uma exceção, e ele irá conosco no momento da invasão — disse Annabelle.
— Não se preocupe Kóra — disse alsvid. — Eu vou ficar bem. Tome cuidado, ouviu bem?
— Sim, claro — Kóra beijou Alsvid. — Nos veremos em breve.
Annabelle segurou a mão de Kóra e as duas desapareceram repentinamente. Alsvid permaneceu ali, sentado.
Kóra fechou os olhos e quando voltou a abri-los, se deparou com um ambiente de caos.
Era noite e elas haviam chegado em uma região de Ofidis próxima ao castelo, de onde era possível ver a grande cidade em volta das ruínas do palácio. As casas estavam em chamas, e haviam várias pilhas com corpos de moradores. O cheiro de carne queimada era insuportável.
— Que horror! — disse Kóra impactada com a cena que vira.
— Acho que estou ouvindo algo — disse Annabelle. — Acho que soldados estão vindo!
— O que eu faço?
— Nada, só espere. Daqui a dois dias, quando amanhecer, você será resgatada.
— Não seria uma boa idéia, se quando eu fosse capturada, eu contasse que na verdade eu fugi por conta própria?
— Experimente... — disse Annabelle.
Ouviu-se o barulho de cascos de cavalos e logo apareceram dez cavaleiros de Asgarnofe. Quando Kóra olhou para o lado, a feiticeira já havia desaparecido.
— Identifique-se! — ordenou um dos soldados.
O nervosismo paralizou Kóra, sua voz insistia em não sair.
— Identifique-se! — repetiu o soldado. — Identifique-se ou será morto como o resto do povo.
— Kóra! — disse ela finalmente. — Sou a rainha Kóra de Elgartem.
O soldado desceu do cavalo espantado e empunhando sua espada, encarou Kóra por uns instantes.
— É a rainha! — gritou ele.
Os outros soldados desceram de seus cavalos e se curvaram diante de Kóra.
— Perdão rainha — disse um deles. — Não sabiamos que era a senhora! Suspeitávamos que até já estivesse morta. É bom saber que aqueles bárbaros a libertaram!
— Eles não são bábaros! — disse Kóra. — Eu fugi por conta própira! Foi tudo um engano!
Eles olharam sérios para Kóra, e um deles balançou a cabeça, como se sentisse pena dela. O soldado que liderava o grupo se virou para os outros, e num tom de voz baixo disse:
— Coitada... Ela pensa que eles eram bons!
— Devem ter feito lavagem cerebral nela — sussurou outro.
Kóra ia retrucar, mas desistiu. Sabia que mesmo que eles acreditassem nela, não adiantaria muito; estavam sob o efeito das mentiras de Victor, que pareciam se tornar verdades agora.
Ela acompanhou os soldados até as fronteiras de Ofidis, onde foi recebida pelo general de Asgarnofe. Não falava, apenas sorria e respondia com movimentos de cabeça, pois preferia se manter quieta.
Numa tenda ela permaneceu aquela noite e a manhã do dia seguinte. Após a refeição do meio-dia, os céus foram tomados por dezenas de dragões: a comitiva do rei chegara.