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Um grande escuro, sem fundo e quase sem fim era tudo. Mergulhado nele, caído no meio daquele negrume estava o pequeno garoto. Nascera ali ou, talvez, fora deixado de castigo, trancado, fechado e, provavelmente, esquecido. Aos poucos, explorou o escuro, movido apenas por mãos, dedos e toques e um lugar feito apenas de tato formou-se em sua mente. Feito de texturas, temperaturas e sensações ásperas e frias. Não havia muito que explorar, na verdade, apenas um cúbico. Já entediado, sentou-se no chão, abraçou os joelhos e pela primeira vez dormiu. No entanto, dormir não é o mais importante, nunca foi, em nenhum lugar ou em qualquer tempo. Dormir é apenas o trampolim. Embora não seja mais do que isso, dormir é o bastante, em outras palavras, é um trampolim que está na altura exata e que consegue fazer com que qualquer um salte para um infinito de luz e cores, todas as cores.
Ele pulou de braços abertos e olhos fechados, em um instante, cruzou o primeiro céu e atravessou todas as nuvens imaculadas que havia em seu caminho sem destino ou com destinos demais para ousar escolher apenas um. O garotinho sonhou. O mais poderoso sonho que houve, o mais puro e encantado. Mas há a inevitável sina dos sonhos, de toda a magia do quase existir, e da qual o primeiro sonho também não pôde escapulir, havia a morte. No momento em que despertou, o garoto sentiu, pela primeira vez, o sabor delicado e amargo da perda, da distância e, por último, da saudade. Quando emergiu do azul, ele voltou para o escuro sem cor, sem sonho. Estava preso outra vez no pequeno quarto, em seu grande castigo. Logo se ocupou de relembrar-se de tudo o que havia animado e colorido em seu sonho. Em seguida, sem perceber que havia mudado de empreitada, já estava imaginando com quais outras maravilhas gostaria de preencher os próximos sonhos e esses teriam que ser imensos, gigantescos, tão grandes quanto o escuro sem fim.
Mais uma vez o garoto dormiu e dessa vez, sonhou com ainda mais força. Todos os desejos e planos que ele imaginara estavam lá, como se nunca houvesse sido de outra forma. Havia monstros grandiosos, feitos de bondade e bravura. Havia criaturas rabugentas e diminutas, havia outras que falavam e resmungavam e viviam nas nuvens, havia ainda outras que cantavam e choravam e viviam escondidas no mais profundo oceano. Havia, por fim, o infinito, tudo o que é possível haver entre o começo e o fim que, na verdade, é o recomeçar mais uma vez, o limite que separa um começo do outro.
Os sonhos do garotinho tornaram-se um mundo, um lugar muito mais real do que a própria realidade. Um lugar com muito mais vida, sentimentos e vontades do que o escuro. Era muito mais rico, brilhante e real. Nos sonhos, pensar em um lugar envolto em escuro absoluto era um absurdo, era a mais maluca das idéias. Um escuro sem fim só poderia ser uma piada ou, quem sabe, uma história muito bem planejada para amedrontar ou castigar as crianças levadas. Embora os sonhos fossem a realização dos desejos mais verdadeiros do coração do garotinho, mais fortes do que a realidade nebulosa que o envolvia, os sonhos completavam o seu ciclo e desapareciam, desfaziam-se no exato instante em que o garotinho abria os olhos e mais uma vez voltava ao escuro, à cegueira.
Em um sonho, no quarto ou quinto, um respeitado rei do mar viajou até uma cidade esculpida em uma montanha cercada de nuvens. Lá ele encontrou um famoso feiticeiro que, por sua vez, convocou a imperatriz de todas as fadas do céu. Da mesma forma, as mais fortes e importantes criaturas dos sonhos reuniram-se. Houve um conselho em um grande castelo de pedra azul. Houve grandes controvérsias e inúmeros desentendimentos, mas havia um único assunto que realmente precisava ser resolvido e, por sorte, ele era do interesse de todos. Aliás, toda a vida, todo o sonho, dependia do que se resolveria naquele conselho. Era preciso encontrar uma forma de dar vida plena aos sonhos, de fazê-los durar mais do que uma noite de sono. Precisavam alcançar o deus do escuro e mergulhá-lo em um sono profundo, em um abismo de sonhos de onde nunca mais poderia sair. A solução não era fácil de ser encontrada, mas depois de muito refletir, ponderar e conversar, encontraram uma canção de ninar. Sim, uma canção, uma música infinita, tecida com as mais puras e sedutoras melodias. Decidiram que as belas Sentinelas de Vohzia cantariam para o deus, cantariam a música do tempo e então os sonhos seriam perpétuos.
No sétimo sonho, as Sentinelas subiram até os patamares das estrelas, guiadas pelas criaturas das montanhas, cruzaram as pontes de nuvens e os desfiladeiros de breu. Quando chegaram ao quase total escuro, já sabiam o que fazer. Cada uma ergueu sua doce voz e em uníssono geraram a canção do tempo e o sétimo sonho não mais acabou.
A cada dia sem despertar, sem desmanchar, o sonho ficava maior e mais real e o escuro mais distante e perdido. Houve, então, um momento derradeiro, quando uma criatura do sonho morreu e com ela a última lembrança da antiga realidade. Ela era a única criatura que ainda se lembrava da realidade, do escuro absoluto e dos sonhos intermitentes. Naquele momento, quando a última lembrança se desfez, a realidade se refez. Uma magia desprendeu-se do escuro e realizou o sonho. Não havia mais escuro, ele acabara e sobre sua inexistência ergueu-se o antigo sonho que, agora, era tudo o que existia.
O sétimo sonho do pequeno garoto do escuro ocupou toda a existência com suas formas amalucadas e suas imagens multicores. Tudo aquilo que um dia fora sonho tornou-se real e mais uma vez a magia recomeçou. Perdidos naquele mundo quase infinito, repleto de interesses pessoais e cidades cada vez maiores, as criaturas começaram a enfraquecer. A canção do tempo se estendeu por milhares de anos e as sombras de um mundo de cores mágicas ficaram para trás e nem mesmo eram cogitadas pelos prédios de vidro, pelos carros confusos, pelas rodovias sem rumo e pelas pessoas, pelas pessoas de carne e osso e nada mais.
A realidade definhou e um novo escuro a envolveu e mais uma vez estava perdida. No entanto, sempre que o iminente, que o lado de fora desmorona aparece um esconderijo, um trampolim. Quando tudo parecia estar no limite, encontraram outro começo e saltaram do alto do trampolim. Aos poucos, a realidade começou a dormir e todas aquelas criaturas insensatas descobriram que podiam sonhar e sonharam.
Os antigos sonhos, acreditando que sua existência era real, foram capazes de sonhar loucuras e desejos, libertos de qualquer realidade. Os novos sonhos surgiram em um grande Céu e pousaram sobre as nuvens, sobre os cumes das Montanhas do Fundo ou simplesmente continuaram flutuando, deslizando apenas pelo sabor de não pertencer a lugar algum. Em poucas noites o Céu já estava cheio das grandes bolhas de sonho, cada uma fruto da mente de um sonhador. Elas se multiplicaram e, mais uma vez, os sonhos ganharam vida e vontade. Os seres dos sonhos construíram sua história. Ergueram cidades, elaboraram diretrizes, descobriram mistérios e estabeleceram dogmas. Os sonhos tornaram-se um novo mundo.
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Obs.: Este texto faz parte da descrição de um cenário escrito para ambientar uma aventura de RPG.